Posts Tagged Jornal do Brasil

Ideal insano

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 29 de novembro de 2007

Em 1996, como eu denunciasse o avanço comunista na América Latina, o diretor da Folha de S. Paulo , Otávio Frias Filho, naquele tom de serenidade olímpica que no Brasil vale como prova de superior entendimento, acusou-me de açoitar cavalos mortos. Não duvido de que sua opinião expressasse o sentimento geral.

Decorridos onze anos, e estimulado sobretudo pela visibilidade obscena do sr. Hugo Chávez, o reconhecimento do acerto das minhas análises começa a despontar aqui e ali, até mesmo em publicações que um dia me demitiram (não é o caso da Folha ) por teimar em falar do assunto então considerado o cúmulo da impertinência.

Não é preciso dizer que a relutância coletiva em admitir os fatos se inclui entre as causas coadjuvantes do crescimento subseqüente dos próprios males cujo surgimento eu assinalava.

Descontadas a cumplicidade consciente, a insensibilidade presunçosa das classes falantes e a lentidão proverbial do processo cognitivo brasileiro (o filósofo Raymond Abellio dizia que aqui as idéias jogadas ao solo não germinam: afundam e só voltam à tona decorridas muitas eras geológicas), várias causas concorreram para essa demora suicida.

A mais decisiva está na própria índole proteiforme do movimento revolucionário, que desaparece e ressurge a cada geração com nova forma e nova identidade, desorientando os que só aprenderam a reconhecê-lo pela sua fachada anterior.

A observação direta do fenômeno e a extensa freqüentação dos melhores estudos já empreendidos a respeito – sobretudo os de Albert Camus, Norman Cohn, Eric Voegelin, Marcel de Corte, Joseph Gabel, James Billington, Thomas Molnar, Luciano Pellicani e outros tantos — acabaram por me persuadir de que a unidade desse movimento não pode ser apreendida no plano dos meros discursos ideológicos e muito menos no das propostas políticas concretas, mas requer a sondagem de uma estrutura de percepção do mundo , a qual subjaz, íntegra e permanente, à variedade desnorteante dos pretextos e das estratégias que se sucedem na periferia mais visível da História.

Como o campo de observação da mídia é precisamente essa periferia, é quase inevitável que os recuos temporários e as trocas de formato da onda revolucionária lhe pareçam extinções definitivas ou transmutações de essência. A própria palavra “comunismo” torna-se enganadora quando a tomamos como nome de um sistema econômico definido e não do puro movimento que a ele conduz, ou promete conduzir, bem como dos submovimentos a que dá origem, alguns aparentemente antagônicos ao comunismo enquanto fórmula ideológica explícita.

A estrutura subjacente a que me refiro – nascida entre as heresias cristãs do início da era moderna — consiste num profundo distúrbio na percepção do tempo histórico, ilusoriamente tomado pela mente revolucionária como cenário possível de uma mutação apocalíptica que, na concepção bíblica originária, transcende toda temporalidade e não pode nem mesmo ser pensada como capítulo da História. Paródia mundana do Juízo Final, o ideal revolucionário falseia na base a experiência humana e por isso mesmo é tão prolífico em engendrar substitutivos alucinógenos capazes de ludibriar não só seus militantes e simpatizantes, mas também seus adversários e principalmente suas vítimas.

Apreender a unidade profunda do movimento revolucionário ao longos dos tempos é a condição prévia para impedir, se possível, que mais algumas centenas de milhões de cadáveres inocentes venham a se somar, nas décadas vindouras, àquelas que no século passado celebraram as glórias macabras de um ideal insano.

O ano em que o tempo parou

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 22 de novembro de 2007

Se 1968 ainda é chamado “O Ano Que Não Terminou”, é porque não terminou mesmo — nem dá sinais de pretender fazê-lo tão cedo. Ao menos no Brasil é assim. Os trejeitos e cacoetes verbais que dominam o horizonte mental “dêfte paíf” ainda são em essência aqueles que então ecoavam pela rua Maria Antônia e pelos bares do Leblon, os dois pólos neuronais, Tico e Teco, entre os quais circulava o comércio local de idéias.

Isso não quer dizer que o Brasil esteja preso no passado. Está é fora do tempo. Na França, nossa principal fornecedora de gadgets intelectuais, 1968 não foi propriamente um capítulo da História, foi uma crise abrupta de esquecimento, quando o acesso cognitivo a milênios de tradição cultural se tornou inviável graças ao consumo conspícuo de dois poderosos estupefacientes. De um lado, veio a repentina substituição do ensino tradicional baseado em letras clássicas e ciências físicas pela nova cultura de sexo, drogas, rock’n roll e guevarismo, criada para atender a um público de adolescentes que a prosperidade da classe média no pós-guerra transformara em consumidores independentes e vorazes (o processo está relativamente bem documentado na obra apologética Linguistique et Culture Nouvelle , de Philippe Rivière e Laurent Danchin, Paris, Éditions Universitaires, 1971). De outro, as próprias instituições nominalmente encarregadas de conservar a inteligibilidade do passado foram incapacitadas para essa tarefa pela disseminação epidêmica da moda “desconstrucionista”. Se a alfabetização consiste em construir pontes entre os sinais escritos e o mundo da experiência exterior e interior, é evidente que dinamitar essas pontes, fazendo da linguagem um universo auto-referente, não pode resultar em nenhuma elevação do nível de compreensão da cultura, e sim apenas numa forma superior de analfabetismo, praticamente irreversível por vir legitimada pelo aval da intelectualidade acadêmica, aliás a mais presunçosa e pedante que já existiu. Também é patente que, na impossibilidade de apelar ao testemunho da realidade experienciada, o único critério de julgamento que resta é precisamente a palavra daquela intelectualidade, investida assim, gramscianamente, da “autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.

Cortando a comunicação com o passado, 1968 destruiu o senso de continuidade histórica, de modo que todo o progresso alcançado desde então no mundo do pensamento – e ele foi considerável – se deu à margem da zona desconstrucionista, tornando-se incompreensível ou totalmente invisível aos que permanecem dentro dela. Esses adolescentes perpétuos continuam fechados numa redoma de atemporalidade postiça, separados da história e da atualidade, entregues aos prazeres mórbidos da auto-referência narcisista psicoticamente repetitiva, que os vai tornando cada vez mais estúpidos e incapazes à medida mesma em que reforça a sua devoção aos mitos culturais e políticos de um ano lendário transfigurado em caricatura grotesca da eternidade.

Foi assim que a França saiu da história intelectual do mundo, e o Brasil, que nunca havia entrado nessa história senão como apêndice da França, saiu junto com ela sem nem perceber. O reinado da inconsciência que desde então se instalou no país, eliminando toda possibilidade de vida intelectual genuína ao menos dentro das fronteiras do establishment , está na origem da assombrosa degradação moral e política da qual hoje todos se queixam mas que, no fim das contas, é o destino que escolheram.

Três lições inesquecíveis

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 15 de novembro de 2007

O espetáculo reconfortante da humilhação pública do sr. Hugo Chávez foi um dos mais instrutivos das últimas semanas. Com ele aprendemos três lições: sobre o que é democracia, sobre o que é um rei e sobre como funciona (ou não funciona) a cabeça de um revolucionário. A primeira delas devemos ao presidente José Luis Zapatero, a segunda a Juan Carlos de Bourbon, a terceira ao próprio sr. Chávez.

(1) Ao exigir o respeito devido ao seu antecessor José Maria Aznar, que ali fôra ofendido por um orador insolente, o sr. Zapatero mostrou a diferença – que nem sempre há, mas deveria haver — entre esquerda democrática e esquerda revolucionária. Esta última acredita que seus projetos sociais são tão sublimes que fazem dela “o primeiro escalão da espécie humana”, como dizia Che Guevara, condição que a autoriza a ignorar solenemente os deveres morais e legais que pesam sobre as pessoas comuns e a investe do direito de mentir, trapacear, roubar e matar ilimitadamente em nome das belezas imaginárias de um futuro hipotético. Já a esquerda democrática, consciente da fragilidade das idéias humanas, pode lutar pelos seus projetos com entusiasmo, mas sabe que eles valem menos do que a regra do jogo em que concorrem com os do adversário. Para o revolucionário, só o que importa é modificar a sociedade – se não a natureza humana — de maneira integral e irreversível, passando por cima de tudo e de todos. O democrata, de direita ou de esquerda, sabe que nenhuma mudança introduzida por um governo é tão inquestionavelmente boa que deva a priori estar vacinada contra a possibilidade de que o governo seguinte a reverta. Zapatero mostrou que, na ordem democrática, ninguém tem a última palavra.

(2) Um rei não é um governante. É o comandante vitalício das Forças Armadas, o garantidor da autoridade dos governos sucessivos, o guardião de uma ordem que permanece enquanto os políticos passam. Com sua inesperada intervenção, o rei Juan Carlos não entrou no mérito do assunto em debate. Apenas garantiu, contra a insolência de um monólogo ditatorial histérico, o direito do seu chefe de governo à palavra. Não faltarão na mídia brasileira desinformantes cínicos o bastante para tentar impingir ao leitor um relato invertido, fazendo de Chávez o indiozinho indefeso, oprimido pela prepotência do colonizador. Mas a seqüência das imagens mostra claramente que foi Chávez o primeiro a oprimir o interlocutor, só se detendo, atônito, ante a entrada em cena de uma personalidade mais forte. Se as palavras dessa personalidade foram exemplarmente abruptas e cortantes, isso só mostra que não é próprio da função real tagarelar, mas tapar a boca dos tagarelas que se arrogam o monopólio da fala.

(3) Quanto ao sr. Hugo Chávez, fazendo diante da reprimenda aquela expressão inconfundível de perplexidade e medo, mostrou algo que há anos venho dizendo: todos esses líderes revolucionários, a começar por Fidel Castro, pelos chefes das Farc e pela multidão dos nossos terroristas indenizados por seus próprios crimes, são indivíduos fracos, covardes, frouxos, bons para atirar em manifestantes desarmados ou para matar pelas costas adversários desprevenidos, mas incapazes de qualquer ato de genuína coragem, que por definição é sempre um ato solitário. Valentes diante dos holofotes ou fortalecidos pela proteção de uma rede internacional de cúmplices, tão logo se vêem abandonados à própria sorte só o que sabem fazer é implorar como Che Guevara: “Não me matem! Não me matem!” Mostra-me os teus heróis e eu te direi quem és.

Veja todos os arquivos por ano