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A síndrome de Al Capone

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de dezembro de 2015

Jamais esqueci a cena do filme “O Massacre de Chicago” (St. Valentine’s Day Massacre, 1967) em que Al Capone, representado por Jason Robards, esmigalha com um taco de beisebol a cabeça de um companheiro traidor.
Robards, ator impecável, transmite com precisão a ambigüidade do ódio vingativo que se adorna de uma encenação histérica de indignação moral ao ponto de confundir-se com ela.
É um quadro bem conhecido, banal até, nos anais da psicanálise e da psiquiatria forense: a consciência moral do assassino, sufocada e manietada no fundo do inconsciente, vem à tona em forma invertida e se transmuta em inculpação exagerada e teatral dos seus desafetos.
Quanto mais crimes hediondos o sujeito carrega no seu currículo de horrores, mais eloquente e persuasiva a sua afetação de dignidade ofendida.
Mil vezes descrito nos tratados médicos, o fenômeno, no entanto, continua desconhecido da maior parte dos analistas políticos, que não o enxergam nem mesmo quando ele fornece a explicação cabal e óbvia da conduta de certos grupos, facções e partidos.
O critério para reconhecê-lo é simples e infalível: quando o discurso de inculpação moral hiperbólica provém de alguém que cometeu crimes piores do que aqueles que aparentemente o indignam, você está diante do episódio de St. Valentine’s Day Massacre reencenado.
E aí duas séries de fatos paralelos, ambas abundantemente comprovadas, não têm como deixar de por à mostra a conexão íntima que as liga no fundo mais tenebroso da consciência histérica:
(1) Quem são os campeões absolutos na produção de discursos de indignação moral no mundo? Os comunistas.
(2) Quem são os campeões absolutos na prática do genocídio, da tortura, das prisões em massa, do assassinato de inimigos políticos, da escravização de populações inteiras? Também os comunistas.
Há nisso, é claro, um elemento de premeditação manipulatória: “Xingue-s do que você é, acuse-os do que você faz.” Mas isso é só na cabeça dos mandantes supremos, dos engenheiros sociais pavlovianos, dos próceres da KGB, da Stasi ou da DGI.
Nas almas dos militantes,  o que veio de cima como truque publicitário se converte em reação emocional espontânea, num modo de ser e de sentir habitual e automático, sem premeditação alguma: cada um deles sente que esmigalhar as cabeças dos adversários é uma obrigação moral sublime, uma graça santificante.
Se o adversário vê nisso algum mal, é a prova definitiva de que ele é um fascista sanguinário e, portanto, mais um motivo justo para lhe esmigalhar a cabeça.
A naturalidade quase ingênua com que essa gente se sente ofendidíssima com meras opiniões e reage mediante apelos ao assassinato político seria inexplicável sem a “síndrome de Al Capone”. A desproporção entre estímulo e resposta revela que, além do estímulo aparente, está em jogo uma motivação suplementar oculta.
Essa motivação é um mecanismo circular: Nada sufoca mais eficazmente o clamor da consciência moral do que sua imitação histérica invertida –alimentada, por sua vez, pelo próprio clamor sufocado que lateja no fundo do inconsciente.
Toda semana aparecem novos exemplos. Desta vez foi a chuva de ameaças de morte a Donald Trump porque quer vetar a entrada de muçulmanos no país até que sejam investigados e liberados.
A proposta do candidato tem ampla base constitucional reforçada por vasta jurisprudência da Suprema Côrte, mas a massa esquerdista indignada não aceita sequer discuti-la: quer suprimi-la matando o seu autor.
A “sindrome de Al Capone” deitou raízes tão fundas nas almas dos militantes esquerdistas, que até aqueles que jamais cometeram crime algum estão sempre em guarda contra a mera possibilidade de tomar consciência dos horrores praticados por seus correligionários, defendendo-se dessa perspectiva temível mediante o mesmo reflexo de inculpação projetiva hiperbólica.
Mesmo o mais inocente e bocó dentre os idiotas úteis do petismo ferve de indignação cívica contra o deputado Eduardo Cunha, como se os delitos menores e não provados que a este se atribuem fossem a causa da desgraça nacional, muito acima do Petrolão, do Mensalão e do rombo das contas públicas.
Sentindo-se acusado por tabela, arma-se de um taco de beisebol verbal e sonha em rachar cabeças como se fosse uma miniatura de Al Capone.

Falsificação integral

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de maio de 2014

          

Já nos primeiros dez minutos do seu debate com Flávio Morgenstern no Grêmio Politécnico, sobre a ditadura militar (ver aqui), o prof. Igor Fuser exemplificou com rara concisão a regra de que ninguém pode mentir com eficiência se não falsifica primeiro a própria Ele começou se queixando de que não há espaço para debates sobre o tema na grande mídia, onde reina a versão oficial única e indiscutível. Quem o ouvisse acreditaria, portanto, estar diante de um porta-voz da minoria amordaçada. Uma vez transmitida essa impressão, o prof. Fuser estava livre para impingir à platéia, sem temor de represálias, a mesma versão oficial à qual ele parecia se opor. E assim ele fez.
Essa versão é a seguinte: Em 1964 um governo democrático estava empreendendo, por vias legais democráticas, algumas reformas patrióticas que alarmaram o capital estrangeiro, o qual então se mobilizou para derrubar o presidente e instaurar uma ditadura.
É o que toda a mídia alardeia há mais de vinte anos, o que se repassa às crianças em todas as escolas do país, o que se imprime e reimprime em livros e mais livros de História. E foi o que o prof. Fuser repetiu com a cara mais bisonha do mundo, bem protegido sob a sua aparência enganosa de contestador da uniformidade.
É versão cem por cento falsa.
Em primeiro lugar, João Goulart não promoveu reforma nenhuma. Falou muito em reformas, mas até o último dia o Parlamento lhe implorou que enviasse ao menos um projeto delas, coisa que ele adiou, adiou e acabou não fazendo nunca. A lei mesma da remessa de lucros, que segundo o prof. Fuser teria sido a “causa imediata” do golpe, só o que Goulart fez com ela foi sentar-se em cima do projeto, que acabou sendo aprovado por iniciativa do Congresso, sem nenhuma participação do presidente. Se a fúria do capital estrangeiro contra essa lei fosse a causa do golpe, este teria se voltado não contra Goulart e sim contra o Congresso – Congresso que, vejam só, aprovou o golpe e tomou, sem pressão militar alguma, a iniciativa de substituir Goulart por um presidente interino.
Em segundo lugar, é falso que Goulart governasse por meios democráticos. Num governo democrático, o executivo não reina como um monarca absoluto, mas obedece as leis e cede às decisões do Congresso democraticamente eleito. Goulart fez tudo o que podia para fechar o Congresso, mandou invadir com tropas militares o Estado da Guanabara, fortaleza da oposição, e prender o governador Carlos Lacerda, matando-o se resistisse (a operação falhou por um triz). Não hesitou mesmo em usar contra esse Estado o recurso stalinista da “arma da fome”, vetando, através do seu cunhado Leonel Brizola, o fornecimento do arroz gaúcho que era uma das bases da alimentação do povo carioca. Como se isso não bastasse, protegeu a intervenção armada de Cuba no território brasileiro, ocultando as provas e enviando-as, por baixo do pano, a Fidel Castro. É eufemismo dizer que Goulart tramava um golpe de Estado: seu mandato foi uma sucessão de golpes de Estado abortados.
Terceiro: não houve nenhuma, literalmente nenhuma participação americana na preparação do golpe. A famosa “Operação Brother Sam”, tão demonizada pela esquerda, nunca foi nem poderia ter sido nada disso, e só adquiriu essa aparência graças a uma vasta campanha de desinformação lançada pela KGB logo após o golpe, conforme confessou o próprio chefe da agência soviética então lotado no Brasil, Ladislav Bittman. Nesse ponto a mendacidade esquerdista chega a ser deslumbrante. Todos os jornais do país – a maldita grande mídia a que o prof. Fuser finge se opor – até hoje usam como prova da cumplicidade americana a gravação de uma conversa telefônica na qual o embaixador Lincoln Gordon pedia ao presidente Lyndon Johnson que tomasse alguma providência ante o risco iminente de uma guerra civil no Brasil. Johnson, em resposta, determinou que uma frota americana se deslocasse para o litoral brasileiro. Fica aí provado, na cabeça ou pelo menos na boca dos fúseres, que os americanos foram, se não os autores, ao menos cúmplices do golpe. Mas, para que essa prova funcione, é necessário escamotear quatro detalhes: (1) A conversa aconteceu no próprio dia 31 de março, quando os tanques do general Mourão Filho já estavam na rua e João Goulart já ia fazendo as malas. Não foi nenhuma participação em planos conspiratórios, mas a reação de emergência ante um fato consumado. (2) A frota americana estava destinada a chegar aos portos brasileiros só em 11 de abril. Ante a notícia de que não haveria guerra civil nenhuma, retornou aos EUA sem nunca ter chegado perto das nossas costas. (3) É obrigação constitucional do presidente dos EUA enviar tropas imediatamente para qualquer lugar do mundo onde uma ameaça de conflito armado ponha em risco os americanos ali residentes. Se Johnson não cumprisse essa obrigação, estaria sujeito a um impeachment. (4) As tropas enviadas não bastavam nem para ocupar a cidade do Rio de Janeiro, quanto mais para espalhar-se pelos quatro cantos do país onde houvesse resistência pró-Jango e dar a vitória aos golpistas.
Para completar: se não houve intervenção americana, houve sim  intervenção soviética, e profunda. Se até hoje a esquerda vociferante não conseguiu dar o nome de nenhum agente da CIA então lotado no Brasil – e, sem eles, como participar de uma conspiração? –, documentos recém-revelados provam – com  Em dez minutos, o prof. Fuser conseguiu falsificar nada menos que tudo.

Profetas russos e outras notas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de abril de 2014

          

Uns cento e tantos anos atrás, os intelectuais russos mais ligados à Igreja Ortodoxa alardeavam a plenos pulmões que no século XX a Rússia iria encabeçar uma grande revolução espiritual destinada a salvar o mundo da corrupção ocidental católico-protestante-judaico-ateística. O que veio foi a Revolução de 1917 e a maior perseguição anticristã de todos os tempos.

A Revolução, por sua vez, prometia um paraíso de paz, liberdade e prosperidade. O que veio foi a transformação da Rússia e de vários países em torno em matadouros humanos como ninguém tinha visto antes nem poderia jamais ter imaginado.

A pergunta decisiva da qual duguinistas e putinistas se evadem como baratas assustadas é a seguinte: Por duas vezes a Rússia já prometeu salvar o mundo e só conseguiu torná-lo mais parecido com o inferno. Vamos dar-lhe um novo crédito de confiança para que ela o faça uma terceira vez?

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Mais um exemplo de quanto valem as promessas russas. Uma das primeiras decisões de Leon Trotski como ministro das Relações Exteriores da Rússia Soviética, em 1917, foi divulgar o conteúdo de vários tratados secretos altamente comprometedores assinados entre as potências combatentes e iniciar uma campanha mundial pela abolição de todo segredo diplomático.

Nesse empenho ele recebeu o apoio entusiástico do então presidente dos EUA, Woodrow Wilson, que consagrou a ideia num dos seus famosos “Quatorze Pontos”.

O que Wilson não podia prever, mas Trotski não podia ignorar, é que a república soviética nascida sob a bandeira da transparência já planejava e iria em breve transformar-se num tipo novo de Estado, até então desconhecido: o Estado integralmente baseado no segredo, o Estado moldado e dirigido pela polícia secreta. A URSS elevou até às alturas de grande arte a técnica de ocultar por completo o funcionamento da sua máquina estatal, ao mesmo tempo que vasculhava e exibia o das nações ocidentais com toda a estridência e o fulgor do escândalo.

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Ciência é confrontação de hipóteses à luz dos fatos, mas essa comparação é impossível se você não confronta também fatos com fatos, pesando-os com equanimidade. Essa ideia jamais ocorreu à maioria dos historiadores do “regime militar” e está praticamente proibida na mídia nacional. A norma geral é tomar partido de uma hipótese e somar os fatos que a confirmam, sem tentar jamais impugná-la com outros que a contradizem. A simples tentação de comparar já é repelida in limine como pecado mortal. A norma geral é, quando aparece um fato adverso, inventar logo uma hipótese qualquer que pareça neutralizá-lo, e então apegar-se à hipótese em lugar do fato.

Digo isso porque, tendo absorvido intensamente a narrativa esquerdista e acreditado nela com a fé de um devoto entre os meus dezessete e 35 anos, só muito tarde me ocorreu examinar os fatos adversos, e então descobri que praticamente nenhum livro que os mostrasse tinha sido jamais lido ou consultado pelos historiadores bem-pensantes. A imensidão da literatura internacional sobre a KGB, por exemplo, estava totalmente ausente do mercado brasileiro, e mais ainda das bibliografias universitárias. A história da Guerra Fria, vista desde o Brasil, tinha e tem um só personagem: a CIA. O antagonista, a KGB, é só um mito distante.

Foi sobretudo essa experiência que, contra a minha vontade, e entre espasmos de revolta contra a maldita realidade reacionária, foi minando a minha confiança na esquerda, até reduzi-la, hoje em dia, a zero. Todo intelectual de esquerda que repita essa experiência deixará de ser de esquerda e perderá seu círculo de amigos, talvez até seu emprego, motivo pelo qual cada um foge dela como um rato foge de um gato.

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Por duas vezes, na semana passada, o sr. José Serra, em entrevistas à Folha e à TV Bandeirantes, reiterou sua crença, genuína ou fingida, em dois dos seus mais queridos mitos de juventude, que ele comunga aliás com toda a esquerda falante deste País: (1) Em 1964 não havia nenhum perigo de tomada do poder pelos comunistas, era tudo uma fantasia direitista. (2) A CIA estava ativíssima nos bastidores da política nacional, tramando e financiando o golpe de Estado com milhões de dólares.

Não o condeno por isso. Se até os historiadores de profissão consagraram essas balelas como dogmas inquestionáveis, por que haveria eu de exigir maior responsabilidade intelectual de um mero político, membro de uma classe cuja ocupação consiste unicamente, como todo mundo sabe, em dar boa impressão?

Se o sr. Serra fosse algo que se assemelhasse ainda que longinquamente a um historiador ou mesmo a um intelectual de qualquer tipo, eu lhe faria duas perguntas:

1. Como pode ele continuar negando o óbvio depois que documentos oficiais do governo soviético vieram a comprovar uma verdadeira invasão de agentes da KGB em todos os escalões do poder no Brasil da época? (Os dados, os nomes, os planos e as instruções estão no vídeo
https://www.youtube.com/ watch?v=Dbt1rIg8FbI, e logo vem mais.)
2. Como pode ele ter tanta certeza da presença atuante e decisiva da CIA, se todos os historiadores de esquerda somados, escarafunchando tudo durante cinqüenta anos com uma suspicácia anti-americana mórbida e uma irrefreável sede de escândalos, não conseguiram até hoje descobrir o nome de nenhum, absolutamente nenhum agente da CIA que estivesse comprovadamente lotado no Brasil na época?

Sendo porém o sr. Serra o que é, não vou lhe perguntar é coisa nenhuma.

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