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Inteligência e verdade

Olavo de Carvalho

Duas aulas do Seminário de Filosofia, Curitiba, agosto de 1994

Transcrição de Luciane Amato, não revista pelo autor.

  1. Definição

Inteligência, no sentido em que aqui emprego a palavra, no sentido que tem etimologicamente e no sentido em que se usava no tempo em que as palavras tinham sentido, não quer dizer a habilidade de resolver problemas, a habilidade matemática, a imaginação visual, a aptidão musical ou qualquer outro tipo de habilidade em especial. Quer dizer, da maneira mais geral e abrangente, a capacidade de apreender a verdade. A inteligência não consiste nem mesmo em pensar. Quando pensamos, mas o nosso pensamento não capta propriamente o que é verdade naquilo que pensa, então o que está em ação nesse pensar não é propriamente a inteligência, no rigor do termo, mas apenas o desejo frustrado de inteligir ou mesmo o puro automatismo de um pensar ininteligente. O pensar e o inteligir são atividades completamente distintas. A prova disto é que muitas vezes você pensa, pensa, e não intelige nada, e outras vezes intelige sem ter pensado, numa súbita fulguração intuitiva.

A inteligência é um órgão — digamos assim: um órgão — que só serve para isto: captar a verdade. Às vezes ela entra em operação através do pensamento, às vezes através da imaginação ou do sentimento, e às vezes entra diretamente, num ato intelectivo — ou intuitivo — instantâneo, no qual você capta alguma coisa sem uma preparação e sem uma forma representativa em especial que sirva de canal à intelecção. Outras vezes há uma longa preparação através do pensamento, da imaginação e da memória, e no fim você não capta coisíssima nenhuma: cumpridos os atos representativos, a intelecção a que se dirigiam falha por completo; dados os meios, a finalidade não se realiza. A inteligência está na realização da finalidade, e não na natureza dos meios empregados. E se a finalidade dos meios de conhecimento é conhecer, e se o conhecimento só é conhecimento em sentido pleno se conhece a verdade, então a definição de inteligência é: a potência de conhecer a verdade por qualquer meio que seja.

O conceito da verdade, e as discussões todas que suscita, podem ficar para outra ocasião. Por enquanto, e tomando provisoriamente a palavra “verdade” em seu sentido vulgar de coincidência entre fato e idéia, bastam estas distinções elementares para nos levarem a perceber o quanto é errônea a direção tomada pela atual teoria das “inteligências múltiplas”, que dissolve a noção mesma de inteligência numa coleção de habilidades — que vão desde o raciocínio matemático até a destreza física e o traquejo social —, sem notar que todas estas capacidades e outras quantas similares são meios e que a inteligência não é um meio, mas o ato mesmo, o resultado a que tendem esses meios e para o qual nenhum deles é por si — nem a soma deles todos é por si — condição suficiente. A teoria das inteligências múltiplas surgiu como uma reação contra a teoria do QI, que por sua vez identificava a inteligência, exclusivamente, com a habilidade verbal, matemática e imaginativo-espacial. Mas é um caso típico de substituição de uma falsidade por outra. Sejam poucas ou muitas as habilidades com que se identifica a inteligência, o erro é o mesmo: confundir a inteligência com os instrumentos de que se serve.

Essa confusão acontece porque a maior parte das pessoas se conhece muito mal, mesmo nas coisas práticas e nos aspectos mais óbvios da vida. Quanto maior não seria sua dificuldade de captar a diferença sutil entre os atos representativos e a inteligência! Vendo sempre a inteligência atuar através do pensamento, da memória, da imaginação, do sentimento, confundem portanto o canal com aquilo que por ele passa, o veículo com o passageiro, e tomam por “inteligência” os meros atos mentais.

Esse equívoco acabou por ser oficializado e legitimado pela educação. De modo geral, todas as formas de ensino visam a incrementar as habilidades em que a inteligência se apóia, como a memória, a imaginação, o raciocínio etc., e não dão a menor importância a inteligência enquanto tal. O fato é que a entrada em cena dessas outras faculdades não acarreta necessariamente a da inteligência. Podemos desenvolver bastante o raciocínio verbal, ou a imaginação visual, ou a memória, ou a aptidão artística, sem que haja efetivamente uma inteligência dirigindo os seus passos — a prova é que várias dessas aptidões são mais desenvolvidas em certos retardados mentais do que no comum das pessoas. Aliás, se é através do raciocínio que às vezes inteligimos, também é através dele que nos enganamos. Do mesmo modo, às vezes a imaginação nos leva à compreensão real de alguma coisa, mas às vezes nos leva para longe da verdade. O desenvolvimento destas faculdades, imaginação, memória, raciocínio etc., não implica portanto necessariamente o da inteligência; também é verdade o vice-versa: que a inteligência é independente desses outros processos, que lhe servem de canais, instrumentos e ocasiões e nada mais. Mas o vice-versa não deve ser tomado em sentido rigoroso, pois uma inteligência resolutamente decidida a descobrir a verdade sobre alguma coisa acaba em geral encontrando os canais mentais pelos quais chegar ao seu objetivo, ou seja, ela desenvolve as “faculdades” de que necessita. Sem excluir portanto que haja casos de inteligências mesmo superiores mas carentes de meios ou canais específicos de atuação, digo que são exceções e raridades que antes confirmam a regra: o desenvolvimento dos meios não implica o da inteligência, o da inteligência leva quase que necessariamente à conquista dos meios.

Se definimos a inteligência como a capacidade humana de captar o que é verdade, também entendemos que o essencial do ser humano, aquilo que o diferencia dos animais, não é o pensamento, não é a razão, nem uma imaginação ou memória excepcionalmente desenvolvidas, embora tudo isto haja efetivamente no ser humano. Pois pensar, um macaco também pensa: ele completa um silogismo e até encadeia silogismos num raciocínio relativamente perfeito. Imaginação, até um gato possui: os gatos sonham. Por este caminho não encontraremos a diferença específica humana, aquilo que nos torna homens em vez de bichos. E, se é importante arraigar o homem no reino animal, para não fazer dele um ser angélico sem pés no solo, também é importante saber distingui-lo de uma tartaruga ou de um molusco por alguma diferença que não seja meramente quantitativa e acidental.

O que nos torna humanos é o fato de que tudo aquilo que imaginamos, raciocinamos, recordamos, somos capazes de vêlo como um conjunto e, com relação a este conjunto, podemos dizer um sim ou um não, podemos dizer: “É verdadeiro”, ou: “É falso”. Somos capazes de julgar a veracidade ou falsidade de tudo aquilo que a nossa própria mente vai conhecendo ou produzindo, e isto não há animal que possa fazer.

Mas, dirá o velho Pilatos em nós, quid est Veritas? Cada um de nós é um juiz romano, corrompido até a medula, a fazer de conta que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. A verdade da qual alegas nada saber, infausto Pôncio, a verdade é o quid — esse mesmo quid que, se desconhecesses, não poderias usar como medida de aferição para o termo “verdade”. Se pergunto quê é alguma coisa, se ignoro mesmo o que é alguma coisa, é porque a coisa que se me oferece nesse instante não cumpre, não atende perfeitamente a condição exigida na palavra quê — aquela consistência, aquela coesão do estar, do agir e do padecer, aquela patência e sobretudo aquela fatalidade, aquele não-ser-de-outro-modo, aquela impositiva ausência de perguntas — e da capacidade de fazer perguntas — que me sobrevém quando sei o quê. Ecce veritas. É o que basta por enquanto, sem prejuízo de posteriores discussões e aprofundamentos.

  1. Não existe inteligência artificial

Hoje em dia, quando se fala de “inteligência artificial”, mais certo seria dizer pensamento artificial, ou talvez imaginação artificial, porque uma determinada sequência de pensamentos, um conjunto de operações da mente, pode ser imitado de várias maneiras. Um conjunto é imitado, por exemplo, na escrita. A escrita é uma imitação gráfica de sons, que por sua vez imitam idéias, que por sua vez imitam formas, funções e relações de coisas. A escrita foi a primeira forma de pensamento artificial. Toda e qualquer forma de registro que o homem use já é um tipo de pensamento artificial, uma vez que implica um código de conversões e permutações, e neste sentido um programa de computador não é muito diferente, por exemplo, de uma regra de jogo: como no jogo de xadrez, onde se concebe uma sequência de operações com muitas alternativas, cristalizadas num determinado esquema que pode ser imitado, repetido ou variado segundo um algoritmo básico. Existem muitas formas de pensamento artificial, ou de imaginação artificial. Porém a inteligência, propriamente dita, não tem como ser artificial. O pensamento artificial é essencialmente uma imitação de atos de pensamento segundo a fórmula das suas sequências e combinações. Do mesmo modo podemos imitar a imaginação e a memória, se em vez de utilizar uma correspondência biunívoca entre signo e significado recorrermos a uma rede de correspondências analógicas. Dá na mesma: em ambos os casos, trata-se de imitar um algoritmo, a fórmula de uma sequência ou rede de combinações, que por sua vez imitam as operações reais da mente. Acontece que a inteligência não é uma “operação da mente”; ela é o nome que damos a uma determinada qualidade do resultado dessas operações, pouco importando qual a faculdade que as realizou ou qual o código empregado. É legítimo dizer que um indivíduo inteligiu alguma coisa somente quando ele captou a verdade dessa coisa, seja pelo raciocínio, seja pela imaginação ou seja lá pelo caminho que for. Até mesmo o sentimento intelige, quando ama o que é verdadeiramente amável e odeia o que é verdadeiramente odioso: há uma inteligência do sentimento, como há uma burrice do sentimento. A inteligência não reside na mente, mas num certo tipo de relação entre o ato mental e o seu objeto, relação que denominamos “veracidade” do conteúdo desse ato mental ( notem bem: veracidade do conteúdo, e não do ato mesmo ).

Aqui alguém poderia objetar que, quando um ato de pensamento artificial chega a um resultado verdadeiro, por exemplo quando um computador nos assegura que 2 + 2 = 4, este é um ato de inteligência, uma vez que nos dá uma verdade. A diferença, aqui, é a seguinte: o computador não intelige que 2 + 2 = 4, mas apenas realiza as operações que dão por resultado 4, segundo um programa ou algoritmo pré-estabelecido. Se ele for programado segundo a regra de que 2 + 2 = 5, ele não somente dará sempre este resultado, mas ainda o generalizará para todos os casos similares, segundo a regra 2a + 2a = 5a. A inteligência não consiste somente em atinar com um resultado verdadeiro, mas em admitir esse resultado como verdadeiro. Que significa “admitir”? Significa, primeiro, estar livre para preferir um resultado falso ( um computador pode ser programado para preferir os resultados falsos num certo número de ocasiões, mas sempre segundo um padrão préestabelecido ). Significa, em segundo lugar, crer nesse resultado, isto é, assumir uma responsabilidade pessoal pela afirmação dele e pelas consequências que dele derivem. A inteligência, neste sentido, só é admissível em seres livres e responsáveis, e o primeiro ser livre e responsável que conhecemos na escala dos viventes é o homem: nenhum ser abaixo dele possui inteligência, e se há seres superiores ao homem é um problema que não nos interessa no momento e cuja solução não interferiria no que estamos examinando aqui. A inteligência é a relação que se estabelece entre o homem e a verdade, uma relação que só o homem tem com a verdade, e que só tem no momento em que intelige e admite a verdade, já que ele pode tornar-se ininteligente no instante seguinte, quando a esquece ou renega.

Neste sentido, o resultado da conta de 2 + 2 que aparece na tela do computador é uma verdade, mas uma verdade que está no objeto e não ainda na inteligência; essa verdade está na tela como a verdadeira estrutura mineralógica de uma pedra está na pedra ou como a verdadeira fisiologia do animal está no animal: são verdades latentes, que jazem na obscuridade do mundo objetivo aguardando o instante em que se atualizarão na inteligência humana. Do mesmo modo, podemos pensar uma idéia verdadeira sem nos darmos conta de que é verdadeira; neste caso, a verdade está no pensamento como a verdade da pedra está na pedra: o ato de inteligência só se cumpre no instante em que percebemos e admitimos essa verdade como verdade. A inteligência é, neste sentido, mais “interior” a nós do que o pensamento. O pensamento, para nós, pode ser objeto. A inteligência, não. O ato de reflexão pelo qual retornamos a um pensamento para examiná-lo ou julgá-lo é um outro pensamento, de conteúdo diferente do primeiro. Mas a recordação de um ato de inteligência é o mesmíssimo ato de inteligência, reforçado e revivificado, numa nova afirmação de si mesmo. Não posso recordar o conteúdo de um ato de intelecção sem inteligir novamente os mesmos conteúdos, quase sempre com redobrada força de evidência.

Se definirmos o pensamento artificial como a imitação, por sinais eletrônicos, de certos atos de pensamento, entenderemos que o pensamento artificial é pensamento, que a imitação de pensamento é pensamento, pois pensar, afinal, é apenas usar sinais ou signos para representar certos dados internos ou externos. Mas a imitação de inteligência não é inteligência, de vez que só há inteligência no ato real pelo qual um ente humano real apreende realmente uma verdade no instante em que a apreende; na imitação teríamos somente um sujeito hipotético apreendendo hipoteticamente uma hipotética verdade, cuja veracidade ele não pode afirmar senão hipoteticamente. Tudo isto seria apenas pensamento, não inteligência.

A inteligência somente se exerce perante uma situação real, concreta: o inteligir é concentrar o foco da atenção numa evidência presente. Não se confunde com o meramente pensar uma verdade, pois consiste em captar a verdade desse pensamento; nem se confunde com o perceber uma cor, uma forma, pois consiste em apreender a veracidade dessa cor ou dessa forma; nem com o recordar ou imaginar uma figura, pois consiste em assumir a veracidade dessa recordação ou imaginação. Por isto não é possível imitar um ato de inteligência, pois sua imitação não poderia ser outra coisa senão a cópia do pensamento, ou da recordação, ou da imagem que lhe serviu de canal; mas, se esta cópia fosse acompanhada da captação de sua veracidade, não seria uma cópia, e sim o ato mesmo, revivido em modo pleno; e, se desacompanhado dessa captação, seria cópia do pensamento ou da imaginação apenas, e não do ato de inteligência. E esse pensamento ou essa imaginação, se verdadeiros em seu conteúdo, teriam apenas a verdade de um objeto, a verdade latente de uma pedra ou de um cálculo exibido na tela do computador, aguardando ser iluminada pelo ato de inteligência que a transformaria em verdade atual, efetiva, conhecida.

Um computador só pode julgar veracidade ou falsidade dentro de certos parâmetros que já estejam no programa dele, ou seja, falsidade ou veracidade relativas a um código dado de antemão, código esse que pode ser inteiramente convencional. Isto é, ele não julga a veracidade, mas apenas a logicidade das conclusões, sem poder por si mesmo estabelecer premissas ou princípios. Ora, a logicidade, a rigor, nada tem a ver com a veracidade, pois é apenas uma relação entre proposições, e não a relação entre uma proposição e a experiência real. Quando digo experiência real, não me refiro apenas à experiência cotidiana dos cinco sentidos, mas ao campo total da experiência humana, onde a experiência científica feita através de aparelhos e submetida a medições rigorosas se encaixa apenas como uma modalidade entre uma infinidade de outras. A inteligência, quando julga veracidade ou falsidade, pode fazê-lo em termos absolutos e incondicionais, independentemente dos parâmetros usados e da referência a um ou outro campo determinado da experiência; e é justamente este conhecimento incondicional da verdade incondicional que pode fundar em seguida os parâmetros da condicionalidade ou relatividade, assim como legitimar filosoficamente as divisões de campos de experiência, como por exemplo na delimitação das esferas das várias ciências.

  1. Evidência e certeza

O termo “intuição” designa em filosofia um conhecimento direto, uma intelecção maximamente evidente ( o que não significa que deva ser confundida com o sentimento subjetivo de certeza ). Exemplo de um ato de inteligência intuitiva: o fato de você estar aqui neste momento é uma certeza absoluta e incondicional, o que não quer dizer que você não possa duvidar dela, que você não possa até mesmo, por um jogo engenhoso de imaginação, ter o sentimento da certeza de estar em outro lugar; significa apenas que você só duvidará dela e só acreditará estar em outro lugar se você sentir o seu campo de experiência como dividido em blocos estanques, se você perder o senso da unidade do campo da experiência, o que só acontece na fantasia, no estado hipnótico ou na esquizofrenia. Quando sua inteligência admite que você está aqui, você está admitindo como verdadeira uma determinada interpretação que você faz do conjunto das informações que você tem neste momento, mas não só a respeito deste momento e sim a respeito do encaixe entre ele e os momentos que o antecederam e os que se seguirão. Você sabe que está aqui não só por causa das informações sensíveis que recebe a respeito do ambiente, informações auditivas, tácteis, etc., mas também porque você sabe que estas informações são coerentes com um passado ( você se lembra de ter vindo até aqui ), são coerentes com um projeto de futuro, ou seja, com uma idéia que você tem a respeito do propósito com que veio aqui; e tudo isto forma um sistema tão coeso, tão inseparável, que a respeito deste conjunto você pronuncia o julgamento de que isto é verdade: Você sabe que você está aqui. No entanto, não seria impensável que, estando aqui, você imaginasse estar em outro lugar, e que até mesmo se persuadisse e, um tanto auto-hipnoticamente, “sentisse” que está num outro lugar. Tudo isto pode ser produzido; porém, se o senso da unidade do campo da sua experiência ainda funciona, algo lhe dirá: isto é falso. Por que? Porque as informações que dizem que você está aqui vêm todas juntas; ao passo que as que você está produzindo para dizer que está em outro lugar vêm por partes. Examine. O quê imaginou você a respeito do outro lugar onde supõe estar? o som? o visual? Um ou outro? Certamente não foram os dois exatamente no mesmo tempo e em proporção coerente. O motivo, o antecedente temporal da sua presença ali, eram-lhe tão claros quanto as sensações visuais ou auditivas? Não: mas as informações que você recebe aqui sobre sua presença vêm todas coladas umas às outras. Você não pega primeiro o visual, depois o auditivo, depois o táctil, ou seja, você não compõe este ambiente, ele lhe vem todo junto; e, embora você, por abstração, possa momentaneamente prestar atenção mais a um aspecto que a outro, você sabe e se recorda de que os aspectos preteridos estão aí presentes e podem ser atualizados na percepção a qualquer momento, sem um trabalho interior de construção voluntária ( que você lhe seria obrigatório de modo a completar a imagem do outro lugar suposto, onde supostamente estaria ou se sentisse estar enquanto está de fato aqui ).

Esta certeza que você tem de estar aqui é o que se chama evidência. Uma evidência é um conhecimento inegável, e até de certo modo indestrutível, porque, se você dissesse que não está aqui, a quem você o diria? A quem está lá, ou a quem está aqui? O ato mesmo de você dizer que não está aqui subentende que está.

Existe, em certos pensamentos que temos, esse caráter de veracidade, mas não sabemos definir bem em quê ele consiste; sabemos apenas que conferimos esta veracidade a alguns pensamentos e que a negamos a outros. Por exemplo, aqui negamos veracidade ao pensamento de que não estamos aqui. É a esta faculdade — a que diz “sim” ou “não” aos pensamentos, imaginações e sentimentos, que os julga como totalidade e diz “é verdadeiro” ou é “é falso” — que chamamos de inteligência.

  1. Inteligência e vontade

A inteligência, em suma, é o senso da verdade, e uma inteligência apta, hábil ou forte é uma inteligência que está acostumada a discernir a verdade e a falsidade em todas as circunstâncias da vida, a aceitar a verdade e permanecer nela.

Com isto quero dizer que a inteligência não se esgota no mero aspecto cognitivo: se a potência de conhecer a verdade constitui a semente da inteligência, esta semente só floresce por iniciativa da vontade, e também pela vontade ela enfraquece e morre. Vontade significa o exercício da liberdade. Quando você capta que algo é verdadeiro, significa que você aceitou que aquilo é verdadeiro, e quando você capta que é falso, significa que você o rejeitou. Ora, quem aceita ou rejeita não é uma faculdade em particular, mas é você inteiro, num ato de vontade livre. Isto significa que a inteligência é indissoluvelmente a síntese de uma aptidão cognitiva e de uma vontade de conhecer. Se houvesse um ensinamento voltado ao desenvolvimento da inteligência, ele teria de, antes de mais nada, acostumar o aluno a desejar a verdade em todas as circunstâncias e não fugir dela. Portanto o exercício da inteligência possui necessariamente um lado ético, moral. Platão dizia: “Verdade conhecida é verdade obedecida.”

Se a inteligência fosse uma faculdade puramente cognitiva, nada impediria que ela fosse exercida igualmente bem pelos bons e pelos maus, pelos sinceros e pelos fingidos, pelos honestos e pelos safados. Na realidade as coisas não se passam assim, e a desonestidade interior produz necessariamente o enfraquecimento da inteligência, que acaba sendo substituída por uma espécie de astúcia, de maldade engenhosa. A astúcia não consiste em captar a verdade, mas em captar — sem dúvida com veracidade — qual a mentira mais eficiente em cada ocasião. O astucioso é eficaz, mas está condenado a falhar ante situações das quais não possa se safar mediante algum subterfúgio, que exijam um confronto com a verdade. A conexão entre a inteligência e a bondade é reconhecida por todos os grandes filósofos do passado, do mesmo modo que a correspondente ligação, do lado do objeto, entre a verdade e o bem. Um mundo que nega essa conexão, que faz da inteligência uma faculdade “neutra”, capaz de funcionar tão bem nos bons quanto nos maus como a respiração ou a digestão, é um mundo francamente mau, que se orgulha da sua maldade como de uma conquista da ciência, pela qual ele se eleva acima das civilizações do passado. Mauriac notava, “nos seres decaídos, essa destreza para embelezar sua decadência. É a derradeira enfermidade a que o homem pode chegar: quando sua sujeira o deslumbra como um diamante”.

A conexão a que me refiro surge com peculiar clareza quando examinamos os seguintes fatos. Com frequência nossas ações não são acompanhadas de palavras que as expliquem, nem mesmo interiormente; ou seja, somos capazes de agir de determinadas maneiras, explicando esses atos de maneiras exatamente inversas, precisamente porque as motivações verdadeiras, permanecendo inexpressas e mudas, se furtam ao julgamento consciente. Isso faz com que, pelo menos subconscientemente, alimentemos um discurso duplo. A partir do momento em que você admite que uma coisa é verdadeira, mas procede, mesmo em segredo, mesmo interiormente, como se ela não o fosse, está mantendo um discurso duplo: num plano afirma uma coisa, e noutro afirma outra coisa. A verdade tem poucas oportunidades de surgir para nós com toda a clareza, e a mente humana funciona de uma forma que, quando você nega uma determinada informação, o subconsciente suprime todas as informações análogas, de modo que, quando você diz para si mesmo uma determinada mentira que lhe é conveniente, por motivos práticos ou psicológicos, ou para se preservar de sentimentos desagradáveis, no mesmo instante em que você suprime esta informação você suprime uma série de outras que lhe seriam úteis e que você não tencionava suprimir. Por isto a mentira interior é sempre danosa à inteligência: é um escotoma que se alastra até escurecer todo o campo da visão e substituí-lo por um sistema completo de erros e mentiras.Quando nos habituamos a suprimir a verdade com relação às nossas memórias, à nossa imaginação, aos nossos sentimentos e atos, esta supressão nunca fica só naquele setor onde mexemos, mas se alastra para outros territórios em volta e, tornando-nos incapazes de inteligir uma determinada coisa, nos tornamos incapazes para inteligir muitas outras também. A defesa contra verdades incômodas se transforma também numa defesa contra a verdade em geral, contra todas as verdades. Mais tarde, quando desejarmos estudar um determinado assunto que nos interessa, ou entender o que está se passando na nossa vida, e não conseguirmos, dificilmente perceberemos que fomos nós mesmos que causamos esta lesão da inteligência. Noto em muitos intelectuais de hoje uma repugnância, uma defesa instintiva contra a verdade, a tal ponto que, mesmo quando desejam aceitá-la, tem de metê-la num invólucro de mentiras. O pior, nisso, é que com frequência essa lesão é compensada por um desenvolvimento hipertrófico das faculdades auxiliares, numa inútil excrescência ornamental, tal como os seios que crescem em algumas mulheres após a menopausa. Muitas dessas inteligências lesadas alcançam sucesso nas profissões intelectuais.

  1. Pequenas e grandes verdades

Quando se fala em público a palavra “verdade”, no ambiente cínico de hoje em dia, logo aparece algum espertinho repetindo a pergunta de Pôncio Pilatos e desfiando ante nós, como se fossem a maior novidade, os velhos argumentos céticos, cuja refutação é classicamente o primeiro grau do aprendizado filosófico. Muitas dessas pessoas têm da palavra “verdade” uma noção um tanto posada, teatral, empostada e romantizada. Só estão dispostas a admitir que o homem pode conhecer a verdade caso alguém lhes mostre a verdade total, universal e completa a respeito das questões mais difíceis, e, como ninguém satisfaz a esta exigência, elas concluem, com o ceticismo clássico, que toda verdade é incognoscível. Mas esse tipo de exigência não expressa uma busca sincera da verdade. A busca sincera vai das verdades humildes e corriqueiras às verdades supremas, aceitando aquelas como caminho para estas, sem exigir desde logo, despoticamente, as respostas finais a todas as perguntas.

Um exemplo de verdade humilde, porém segura, firme, da qual você pode partir como um modelo para avaliar outras possíveis verdades, é dado por aquilo que você sabe — e que somente você sabe — a respeito da sua própria história, sobretudo da história interior de seus sentimentos, motivações, desejos, etc.

Se houvesse um ensinamento voltado ao desenvolvimento da inteligência, ele teria de começar por propor ao aluno, ao estudante, principiante ou postulante, uma espécie de revisão das suas memórias, ou seja, contar sua história direito (analogamente ao que se faz em psicanálise). Tudo o que é verdadeiro tem um caráter de coesão, pois uma informação verdadeira não pode ser artificialmente isolada de uma outra informação que também seja verdadeira e que tenha com ela uma relação de causa e efeito, de contiguidade, de semelhança e diferença, de complementaridade, etc.; então isto quer dizer que se você admite um A e um B, você vai ter de admitir um C, D, E, F, etc. A verdade tem sempre um caráter sistêmico, orgânico, razão pela qual sua captação pela inteligência pessoal requer uma abertura da personalidade, uma predisposição a aceitar todas as verdades que como tal se revelem, sem nenhuma seleção prévia de verdades convenientes.

  1. Demissão dos intelectuais

O que aconteceria se, numa determinada sociedade, existisse um grande número de pessoas capazes de julgar por si mesmas e de perceber a verdade, não sobre todos os pontos, mas sobre os pontos de maior interesse para a sociedade, ou sobre os que são mais urgentes? Haveria mais sensatez, os debates levariam a conclusões mais justas, as decisões teriam um sentido mais realista. Agora, numa sociedade onde todos estão se persuadindo uns aos outros de coisas de que eles mesmos não estão persuadidos, onde todos estão procurando se enganar, ou onde todos estão procurando ajuda dos outros para se enganar mais facilmente a si mesmos, todas as discussões versam sobre fantasmas, as decisões se esvanecem em meros sonhos, as frustrações levam o povo a um estado de exasperação do qual ele procura fugir mediante novas fantasias, e assim por diante. Isto acontece no campo religioso, político, moral, econômico e até no campo científico. Podemos partir para uma outra definicão, e dizer que um país tem uma cultura própria quando ele tem um número suficiente de pessoas capazes de perceber a verdade por si mesmas, e que não precisam ser persuadidas por ninguém. Estas pessoas funcionam como uma espécie de fiscais da inteligência coletiva. Em nosso país o número de pessoas assim é escandalosamente reduzido. As pessoas encarregadas de perceber a verdade por si mesmas devem ter uma inteligência treinada para isto, devem ter uma inteligência dócil à verdade e ser as primeiras a perceber e compreender o que se passa. Isto é que constitui uma inteligência nacional, uma intelectualidade nacional. A intelectualidade autêntica não é constituída necessariamente pelas pessoas que exercem profissões ligadas à cultura ou à inteligência, mas sim pelas pessoas que, exercendo ou não essas profissões, realizam as ações correspondentes a elas. Não é preciso ir muito longe para dizer que a sorte global de um país depende de que haja uma camada de pessoas assim, para poder, nos momentos de dificuldade, dar esta contribuição modesta que é simplesmente dizer a verdade. No Brasil temos um número assombroso de pessoas que trabalham em atividades culturais, escritores, professores, artistas, em geral subvencionados pelo governo, mas que nem de longe pensam em cumprir as obrigações elementares da vida intelectual; tudo o que fazem é apoiar-se uns aos outros num discurso coletivo, reafirmar as mesmas crenças de origem puramente egoista e subjetivista, expressar desejos e preconceitos coletivos e pessoais, promover a moda. Essas pessoas vivem reclamando de que neste país há poucas verbas para a cultura. Mas, para fazer isso que elas chamam de cultura, já recebem muito mais dinheiro do que merecem. Os cineastas, diretores de teatro, etc., constituem uma casta privilegiada, que é estipendiada pelo governo para exibir em público emoções baratas, afetar indignação e posar como “pessoas maravilhosas” em apartamentos da av. Vieira Souto.

É claro que os povos sempre têm a liberdade de escolher entre a verdade e a mentira, e mesmo sabendo da verdade eles podem novamente se enganar a si mesmos; porém a possibilidade de que se enganem é muito maior quando ninguém lhes diz a verdade jamais. O que acontece quando pessoas que exercem profissões intelectuais ou culturais somente as exercem no sentido de fazer delas um instrumento de apoio para sua própria mentira interior, ou seja, exercem esses trabalhos no sentido puramente oratório ou retórico de induzir o povo a erros e ilusões? Afirmo, peremptoriamente, que este é o caso da intelectualidade brasileira, que na sua quase totalidade se utiliza de profissões culturais para fazer com que povo e a opinião brasileira a sirvam, confirmando suas crenças, das quais ela não tem certeza pessoal alguma, e para as quais justamente por isso procura angariar um apoio coletivo. Existem setores onde é possível uma insegurança muito vasta e a livre troca de opiniões de valor simliar, mas em outros setores não. Porém o fato é que quando a intelectualidade como um todo se coloca perante o público numa atitude de persuasão lisonjeira, então a vida intelectual está sendo prostituída, e quando ela é prostituída, pergunto: como podemos desejar mais ética, mais honestidade, na política ou nos negócios, se amplas faixas de população atuante não têm a menor noção do que é verdadeiro ou falso? Como é que a intelectualidade pode ao mesmo tempo pregar um relativismo dissolvente, onde os critérios do verdadeiro e do falso se diluem a ponto de se tornarem indistinguíveis, e ao mesmo tempo exigir que os políticos sejam honestos e digam a verdade ao povo? As pessoas, nessa situação, não poderiam ser honestas nem mesmo que quisessem, porque não sabem o que é certo, não têm consciência moral, são grosseiras e insensíveis do ponto de vista moral. Então não resta dúvida de que a corrupção da sociedade começa com a corrupção da camada intelectual, não com a corrupção dos negócios ou da política: ao contrário, existem países onde os homens ricos e poderosos são muito corruptos e ainda assim o país funciona direito; existem países onde os políticos são corruptos e no entanto o país não se engana grosseiramente na solução de seus próprios problemas. Mas num país onde a camada intelectual, que é a camada encarregada profissionalmente de examinar a verdade e de dizê-la, começa a se enganar a si mesma, então não vai adiantar absolutamente nada que todos os políticos sejam honestos.

Se do ponto de vista de utilidade para o indivíduo o objetivo deste curso é o desenvolvimento da sua inteligência, do ponto de vista social, cultural, o objetivo do curso é fornecer gente para uma futura elite intelectual verdadeira.O que é uma elite intelectual? É gente tão treinada para perceber a verdade quanto um boxeador está treinado para lutar e um soldado para fazer a guerra. Neste sentido, todas as nações que obtiveram um lugar de grandeza na história tiveram uma elite assim, formada muito antes de que o país alcançasse qualquer projeção econômica, política, militar, etc. Pois não é possível resolver os problemas primeiro e se tornar inteligente depois.Em todo debate sobre problemas nacionais que atualmente está em curso só há uma coisa que todos estão esquecendo: Quem vai resolver estes problemas? Quem vai examiná-los? Quem tem a capacidade de examiná-los com efetiva inteligência?Se estas pessoas não existem, então o problema inicial é formá-las. O objetivo prioritário deste curso é exatamente isto, se não formar, pelo menos contribuir para formar, amanhã ou depois, ao longo de talvez vinte ou trinta anos, uma verdadeira elite intelectual.

  1. “Opinião própria” e “julgamento autônomo”

Vistos os objetivos do curso, é preciso, com relação ao indivíduo, não somente desenvolver a inteligência, mas fazer com que ela se torne a espinha dorsal do comportamento desse indivíduo, ou seja, que ele leve uma vida dirigida pela inteligência. Com isto ele se tornará finalmente autônomo e confiável em seus julgamentos, dentro da medida possível ao ser humano.Uma distinção importante é a que existe entre julgamento próprio, ou seja, você ser capaz de pensar por si mesmo, e o que é apenas uma opinião própria. Hoje em dia todo mundo faz questão de ter uma opinião própria, mas isso não é o mesmo que pensar por si mesmo. Pensar por si mesmo não é apenas você ter uma expressão, uma opinião que expresse a sua preferência, o seu gosto ( aliás geralmente muito menos pessoal do que se proclama ) ou a sua individualidade, mas é você ser capaz de, sozinho e sem ajuda, examinar uma questão e chegar a uma conclusão verdadeira ou suficiente sobre ela, e que, longe de buscar ser diferente da opinião alheia, coincida mais ou menos com as opiniões de outras pessoas que por si mesmas examinaram o assunto, de modo que cada um, examinando por si e sem nenhuma coerção externa, chegue mais ou menos às mesmas conclusões. Pensar por si mesmo é ser capaz de alcançar a verdade sozinho, e não de inventar apenas uma mentira personalizada. Aliás uma das condições para o desenvolvimento da inteligência é você não fazer questão de ter uma opinião própria, ou seja, você não fazer questão de que sua opinião seja diferente da das outras pessoas, ao contrário, apenas fazer questão de examinar as coisas por si mesmo, sem precisar de muletas, sem precisar da aprovação da maioria ou de quem quer que seja, para no final chegar a uma conclusão, de maneira que você expresse menos uma concordância ou discordância natural, mas que a concordância ou discordância seja produzida por um exame refletido do assunto. Ser capaz de examinar por si próprio é mais importante do que ter uma opinião diferente da dos outros.

  1. O estado de dúvida

O desenvolvimento da inteligência exige ainda uma outra coisa, que é a tolerância para com o estado de dúvida, que é um estado psicológico que se define por duas afirmações contraditórias e simultâneas de credibilidade aparentemente igual. Ou seja, ao examinar uma questão, dizer um sim e um não com igual convicção, isto é, acreditar tanto numa hipótese como na hipótese contrária, ter iguais razões a favor e contra. Na quase totalidade dos assuntos com os quais lidamos, não há tempo e não há condição prática de sair do estado de dúvida. O indivíduo que ou não tem vocação para a vida da inteligência ou se desviou dela por um motivo qualquer, sente como muito urgente sair do estado de dúvida; ele precisa ter uma opinião de qualquer jeito, precisa se pronunciar, precisa chegar a um sim ou um não, e esta necessidade é vivida como mais urgente do que a de conhecer a verdade. Neste caso a inteligência não se desenvolve, pois ela é substituída pela simples busca de segurança, já que a dúvida é um estado de insegurança. Se queremos desenvolver a inteligência, temos de fazer uma escolha: a de preferir antes permanecer em dúvida do que ter uma pseudocerteza. É óbvio que a certeza é preferível à dúvida, mas ela só é preferível realmente quando é uma certeza autêntica, e não uma simples preferência individual. Então uma outra exigência para o desenvolvimento da vida intelectual é uma espécie de voto de pobreza em matéria de opiniões, um voto de ter opinião sobre muito pouca coisa e se reservar para opinar sobre coisas em que você teve efetivamente tempo de pensar, e no resto você consentir em permanecer em dúvida, até mesmo, se for preciso pelo resto de sua vida. Uma certeza firme é preferível a um milhão de dúvidas mas, lamentavelmente, se quisermos desenvolver a inteligência teremos de tolerar o estado de dúvida, o estado de incerteza, por mais tempo do que as pessoas geralmente toleram. Além de fazer este voto de pobreza em matéria de opinião, é necessário ainda um outro tipo de voto de pobreza que é a renúncia à busca de apoio, ou seja, você não acreditar que o número das pessoas que o apoiam representa um argumento efetivo em favor da veracidade do que você está dizendo. Em todas as questões mais difíceis a maioria geralmente está errada, ou seja, em geral o consenso mais imediato é feito em torno de algum erro. Por que? Já dizia Sto. Tomás de Aquino: A verdade é filha do tempo. A verdade geralmente demora para aparecer. Se for preciso, se for absolutamente preciso buscar apoio numa opinião majoritária, então é preferível escorar-se nas opiniões que a humanidade conservou intactas ao longo dos tempos, que resistiram incólumes às mudanças e aos desgastes do tempo, do que naquelas que simplesmente formam a voz majoritária do nosso tempo, e que correm o grave risco de tornar-se minoritárias amanhã ou depois. Dito de outro modo: se algum valor tem a opinião da maioria, não é a da maioria momentânea, da maioria mercadológica, fugaz e inconstante, mas sim a da maioria humana, da maioria da espécie humana em todas as épocas e lugares: quod semper, quod ubique, quod ab omnibus credita est, “aquilo em que todos, em toda parte, sempre acreditaram”.

Ainda com relação à formação de uma elite intelectual, não é preciso dizer que não é absolutamente necessário que os membros de uma elite deste tipo tenham opinões concordantes, aliás se tiverem opiniões discordantes talvez até seja melhor em determinadas circunstâncias. Mas existem alguns pontos com os quais é preciso estar de acordo, no que se refere, em primeiro lugar, ao valor da inteligência, ao valor da verdade, e à possibilidade do ser humano descobrir a verdade. A fé no poder de alcançar a verdade é a condição inicial de qualquer investigação filosófica, dizia Hegel. Se não acreditarmos na possibilidade de alcançar a verdade não faremos esforços para buscá-la. É preciso se persuadir de que é possível descobrir a verdade, mas nem sempre a verdade final, nem sempre a verdade absoluta, e sobretudo nem sempre a verdade sobre todas as coisas. Em muitas coisas é possível alcançar uma verdade final absoluta, em muito mais coisas do que se costuma imaginar, porém em muito menos do que nós desejaríamos. Na maior parte dos casos teremos de nos contentar com uma certeza probabilística, e às vezes apenas com uma verossimilhança, e às vezes com muito menos do que isto, e talvez nos contentarmos com uma dúvida que nos acompanhará ao túmulo.Porém, na mesma medida em que o indivíduo confia na inteligência humana em geral, ele deve desconfiar da sua própria opinião, o que é um pouco o contrário da atitude que se dissemina hoje em dia, onde as pessoas dizem não acreditar em verdades absolutas mas acreditam com fé absoluta naquelas verdades relativas que lhes agradam: há aí uma mistura repugnante de relativismo intelectual com um dogmatismo emocional fanático. Ainda que reconheçamos a dificuldade de alcançar a verdade com relação à quase totalidade dos assuntos, temos de admitir que, pelo menos com relação a algumas coisas modestas, podemos verificar a possibilidade humana de alcançar a verdade, desde o momento em que cultivamos a noção da evidência e, sobretudo, cultivamos a norma de jamais negar que sabemos aquilo que efetivamente sabemos.

  1. A autoconsciência, terra natal da verdade

É importante aprender a admitir aquilo que você sabe que é verdadeiro. Ainda que sejam verdades insignificantes, você meditar sobre o óbvio é talvez a melhor maneira de se habituar à verdade e perder o medo dela e a desconfiança injusta quanto ao poder da inteligência. Por exemplo, ainda que quase todos os conhecimentos que existam sejam relativos ou duvidosos, você sabe que não pode duvidar seriamente de que está aqui neste momento; você pode fazer de conta que não está, mas não pode duvidar efetivamente. Se existem tantos conhecimentos óbvios sobre coisas insignificantes, imaginem aonde poderíamos chegar se alcançássemos evidências deste tipo com relação a coisas verdadeiramente importantes! O senso da verdade se desenvolve a partir do próprio senso da evidência, e o senso da evidência tem a sua raiz naquilo que você já sabe e sabe que sabe. Quando você sabe realmente uma coisa, automaticamente sabe que sabe, e se você sabe que sabe, você sabe que sabe que sabe. Isto quer dizer que qualquer conhecimento efetivo implica também a consciência deste conhecimento e a plena admissão da sua veracidade.A inteligência tem, portanto, também um aspecto volitivo, inseparavemente ligado ao aspecto cognitivo.

Por onde começa o treinamento da consciência para admitir a verdade? O primeiro grau no aprendizado da verdade consiste em você aprender a reconhecer aquelas verdades que só você sabe e que ninguém, fora você, pode confirmar ou negar. Por exemplo, só você conhece suas intenções, só você conhece os atos que praticou em segredo, só você conhece os sentimentos que não confessou. Você, nesses casos, é a única testemunha, e é aí que você vai conhecer a diferença radical e intransponível entre verdade e falsidade. As pessoas que vivem negando a existência de verdades não conhecem essa experiência, nunca deram senão falso testemunho de si mesmas ante o tribunal da consciência, mentem para si mesmas e por isto sentem que tudo no mundo é mentira. Hegel dizia: a autoconsciência é a terra natal da verdade. E Giambattista Vico observava que só conhecemos perfeitamente bem aquilo que nós mesmos fizemos: conhecer perfeitamente bem a natureza só Deus conhece, pois Ele a fez. Porém nossos próprios atos somente nós mesmos podemos conhecer, assim como nossos pensamentos e nossos estados interiores. Não há ali ninguém que possa nos fiscalizar, não há ninguém que possa nos defender de nós mesmos.

  1. Os graus de certeza

Se quisermos desenvolver o senso da certeza temos portanto de nos perguntar exatamente sobre aquelas coisas que só nós sabemos e que ninguém pode saber melhor do que nós mesmos. Estas vão dar o modelo para todas as outras certezas. O aprendizado de qualquer saber é perfeitamente inútil se não houver a consciência reflexiva, que consiste na frase: Eu sei que sei, ou então na sua oposta complementar, que é Eu sei que não sei.

Mesmo em assuntos duvidosos, com um pouquinho de reflexão você pode demarcar o limite entre o conhecimento possível e o impossível. Bastaria que conseguíssemos captar o grau de certeza ou de dúvida que existe em cada conhecimento já possuído.Existem quatro graus de certeza possíveis:

  1. certeza;
  2. probabilidade;

3 verossimilhança;

  1. conjeturação do possível.

Certeza é por exemplo esta que diz “Eu estou aqui agora” ou “Eu sou eu mesmo e não outro”.

Que é uma opinião provável? É uma opinião onde você pode só ter uma certeza evidente ( apodítica ) com relação a um grau de probabilidade determinado ou determinável.

Em outros casos você não pode nem ter isso, você só pode ter uma probabilidade indeterminada, isto é, verossímil, não uma probabilidade rigorosa.

E, finalmente, em alguns casos só podemos ter conjeturas, como por exemplo perguntar se há vida inteligente em outros planetas. Alguns dirão que sim, outros que não, e aqueles que dizem sim têm tanta razão quanto aqueles que dizem não. Aí conhecemos somente uma possibilidade genérica, impossível de graduar probabilisticamente.

Eis aqui uma boa maneira de você fazer uma faxina no seu universo intelectual, para recomeçar em boa ordem. Trata-se de fazer a si mesmo as seguintes perguntas: Do conjunto de coisas que você já estudou, quais são aquelas que você conhece com certeza absoluta? Quais as que conhece como probabilidade razoável? Quais as que conhece como conjetura verossímil? Quais as que conhece como mera possibilidade? Em suma: quanto vale cada um dos conhecimentos que você tem?

Eis uma verdade amarga: se, a respeito de um assunto, você crê possuir certo conhecimento mas não sabe se esse conhecimento é certo, verossímil, provável ou conjectural, você não sabe absolutamente nada sobre o assunto. A avaliação dos conhecimentos faz parte do próprio conhecimento. Se não existe uma avaliação clara dos conhecimentos já adquiridos, você não sabe a distinção entre o que sabe e o que não sabe, e isto é o mesmo que não saber nada. Seria o caso de perguntar: O que adianta uma educação que lhe ensina um monte de coisas, mas que não o ensina a avaliar e julgar o que aprende? Não existe nenhuma diferença entre você saber alguma coisa e você conseguir separar nela o verdadeiro do falso, pois saber é saber distinguir o verdadeiro do falso, é isto e nada mais além disto. Se você aplicasse esta grade de distinções a tudo o que já leu ou estudou, se classificasse por ela todas as suas opiniões, imagine a montanha de conhecimentos verídicos que você teria no fim.

Formar convicção é formar graus de convicção. Exemplo: Você sabe que Deus existe com a mesma certeza com que você sabe que você existe?Se Deus existe, Ele é bom: isto é óbvio. Seria bom que Deus existisse: isto também é óbvio. Agora, entre pensar seria bom que Deus existisse e pensar que Deus existe efetivamente há uma distância muito grande. Então, por exemplo, se tenho uma discussão com uma pessoa e penso que eu estou certo e ela errada, o que estou querendo dizer? Estou querendo dizer: Seria bom que eu estivesse certo e ela estivesse errada, ou melhor, seria bom para mim. Agora, entre pensar que seria bom que eu estivesse certo e estar absolutamente certo de fato, a distância também é enorme. Então, lamentavelmente, não podemos estar tão certos em tantas coisas como geralmente fingimos que estamos. Só que se você extirpar de seu universo de crenças um monte de falsas certezas, vai ver que no fim sobram algumas certezas inabaláveis, e estas valem muito. Mas se você desejar preservar todas as suas convicções igualmente, no mesmo plano, sem escalaridade crítica, no fim vão estar todas misturadas, você não vai ter certeza legítima de nenhuma, e vai acabar duvidando até de que dois mais dois são quatro, de que você está aqui neste momento e até de que você existe. A falsa certeza é a mãe da dúvida patológica.

Muitas vezes o que acontece é que o indivíduo acaba tendo certeza absoluta de coisas inteiramente conjeturais, e tendo dúvidas sobre coisa óbvias e inegáveis, porque não sabe equacionar as suas certezas e suas dúvidas conforme a segurança maior ou menor do conhecimento em si. É claro que existem coisas sobre as quais gostaríamos de ter certeza. Você não gostaria de ter certeza, por exemplo, da imortalidade da alma? Muitas vezes precisamos de um conhecimento, e este conhecimento se furta, se nega. Mas outras vezes há conhecimentos de que você crê não precisar e eles vêm acompanhados de certeza absoluta: então por que você não os aceita? Um conhecimento aparentemente inútil, mas certo, é menos prejudicial do que um conhecimento aparentemente útil, mas falso. Se aprendermos a avaliar os graus de certeza não conforme simplesmente o nosso desejo, mas conforme à coisa mesma, conforme o assunto mesmo admita maior ou menor certeza, teremos feito da nossa mente um instrumento dócil aos graus de certeza oferecidos pela própria realidade. Isso inclusive pouparia um trabalho enorme. Pouparia o trabalho de você ter de argumentar em favor de coisas que são óbvias e que não precisam de argumento nenhum para sustentá-las, bem como pouparia o trabalho de argumentar em favor do indefensável, do arbitrário, do nonsense.

Este senso de docilidade à verdade apreendida pela própria consciência é transmitido aos alunos deste curso como uma prática, não apenas como uma lição de casa para se fazer de hoje para amanhã, mas como uma prática para o resto da vida. Dado qualquer conhecimento, o aluno é convidado incessantemente a fazer as quatro perguntas decisivas: Isto é verídico? É provável? É verossímil? É possível?O critério dos graus de certeza é usado o tempo todo neste curso; é a primeira lição e também a última. E a primeira coisa que deve ser revista com este critério é qualquer assunto que você já tenha estudado formalmente. Somente com esta revisão você já vai ver que a massa de conhecimentos, de informações adquiridas, começa a adquirir forma orgânica, inteligível, e você pela primeira vez tem uma idéia clara da cultura que possui e da que lhe falta: quando o universo dos seus conhecimentos adquire uma forma, você adquire consciência reflexiva do que sabe e do que não sabe.

  1. A topografia da ignorância

O desenvolvimento da consciência reflexiva pode ser exemplificado na seguinte prática que dou aos alunos deste curso:

O tempo todo estamos adquirindo informações que nos vêm através dos cinco sentidos, da leitura, do ouvir-dizer, etc., porém a algumas delas prestamos atenção e damos um valor, e a outras não. Então pergunto eu: para onde você olha sempre, para onde olha com frequência, para onde olha de vez em quando e para onde não olha jamais? É justamente a consciência desta seleção que lhe dará a topografia do mundo, do seu mundo. Nenhum mundo pessoal coincide extensivamente, quantitativamente, com o mundo objetivo. Mas um mundo pessoal íntegro, dotado de unidade como um organismo vivente, já se parece com o mundo objetivo precisamente por essa unidade orgânica e, essencialmente ao menos, é um adequado mapa do mundo, ao passo que o mundo interior quebradiço, fragmentário e mecânico não se parece com nada senão com ele mesmo, com as fantasias de criação humana. A diferença não está na quantidade de informações, mas justamente em sua topografia.

A topografia autoconsciente produz um sentido de perfil, de clareza das coisas. É exatamente isto que a consciência reflexiva fará com seus conhecimentos. A partir da hora em que você sabe que sabe, você efetivamente sabe. E saber que sabe é também saber quando não sabe.A proclamação genérica e vaga de ignorância é apenas uma vaidade intertida, mas o repertório organizado e crítico da nossa ignorância é um conhecimento, um conhecimento efetivo e importantíssimo. O desenho da ignorância, o perfil da ignorância, é um primeiro saber. E este perfil da ignorância se faz exatamente aplicando a grade dos graus de certeza. Se você consegue mapear, de um lado, a sua ignorância, e de outro, o valor possível de seus conhecimentos adquiridos, você terá inaugurado as bases de uma vida intelectual brilhante. Percebe agora qual a diferença entre um ensino voltado às faculdades cognitivas ( memória, imaginação, raciocínio etc. ) e um ensino voltado à inteligência? O que interessa aqui não é tanto o conhecimento, mas a consciência do conhecimento. Consciência, cum + scientia, é isto: saber que sabe o que sabe.

Uma consciência desperta não torna somente mais claros os conhecimentos que você já tem, mas o deixa preparado e como que potencializado para a aquisição de novos conhecimentos com muito mais aproveitamento do que antes; e então, para você poder dominar todo um novo setor da ciência, da história, da arte, às vezes não precisará nada mais do que ter ajuda para chegar aos primeiros princípios daquela área, o resto você descobrirá sozinho, porque terá conquistado o senso, o “faro” da unidade do conhecimento, e aprenderá muitas coisas de uma maneira mais ou menos sintética e simultânea, onde antes precisava de explicações detalhadas, repetições, exercícios, etc. É claro que essa maior integração da consciência, com o consequente aumento da capacidade de aprendizado, não se dá só na área dos estudos formais, mas em todas as áreas da vida, que aos poucos irão revelando suas interconexões. O benefício que isto traz não é só de ordem intelectual, mas se estende a toda a psique, a toda a personalidade.

Partindo do princípio de que todo mundo já sabe alguma coisa — sabe por viver, sabe porque tem memória, porque assistiu a acontecimentos, porque leu algum livro, porque ouviu falar, porque viu televisão, porque leu jornal, e enfim alguma coisa sempre se sabe —, então resta transformar esse saber em autoconsciência. Se o saber efetivo, se a inteligência se identifica fundamentalmente com a autoconsciência, o saber que você possui só se tornará um saber inteligente se for um saber autoconsciente, ou seja, se você passar todo este saber na peneira das seguintes perguntas:

  1. Até que ponto sei isto realmente?
  2. Quanto vale este conhecimento?
  3. O que faltaria para que ele fosse completo?

Ou seja, começar fazendo uma revisão das coisas que você acredita que sabe. Vale ressaltar que estes conhecimentos não se referem apenas às coisas estudadas formalmente através de canais oficiais de educação, mas sobretudo àqueles estudos, experiências e pensamentos que sedimentaram em você determinadas convicções.Outro ponto importante a ressaltar é o fato de que quando você dedica, por obrigação profissional ou escolar não assumida interiormente mas somente imposta de fora, uma atenção maior a tópicos que não lhe interessam profundamente, e não chega a desenvolver um interesse autêntico, mas trata do assunto com uma atenção periférica e como que ligada no piloto automático, você prejudica sua inteligência e se afasta quase que necessariamente da verdade. Porque, se a inteligência é capacidade de captar a verdade e de captá-la numa situação verdadeira, o simples fato de você dedicar ao assunto uma atenção falsa já é um impedimento ao conhecimento da verdade, é um vício que não o ajuda em nada a desenvolver a inteligência.Só podemos usar a inteligência com cem por cento da sua força onde houver cem por cento de interesse, e infelizmente o interesse não depende inteiramente de nós, porque o interesse que temos por este ou aquele problema pode provir de uma situação externa, de uma casualidade, de uma contingência, de um temor, de um desejo fortuito, e assim por diante. Isto quer dizer também que o processo do desenvolvimento da inteligência não pode seguir um programa predeterminado como no estudo de uma disciplina em particular. Ele tem de ir e vir, mais ou menos ao sabor do fluxo dos interesses reais do momento e da possibilidade de desenvolver novos interesses.

Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula IV (Parte II)

Apostila do Seminário de Filosofia

QUARTA AULA

5 de abril de 1994

Transcrição de:
Heloísa Madeira,
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro.

2a parte

O mito da lógica nas interpretações de Aristóteles

É à luz desta observação que vamos ver que parece ter havido um enorme equívoco na interpretação de Aristóteles ao longo de muitos séculos. Porque sempre se considerou que a dialética, sendo uma ciência do raciocínio meramente provável, seria inferior à lógica, que tem exatidão matemática. E que, portanto, quando Aristóteles criou a lógica, superou e abandonou a dialética. Existe um grande historiador da filosofia grega – Solmsen – que é um dos grandes responsáveis pela consolidação desta interpretação. Segundo ele, a analítica anula a tópica (dialética). Como numa evolução, Aristóteles teria vindo por um caminho e chegado a um fim – primeiro foi professor de retórica; depois, desenvolveu a dialética, e finalmente se dedicou à lógica. Solmsen partiu também da premissa de que a ordem temporal deve representar uma ordem hierárquica. Aristóteles teria concedido atenção, no fim, à coisa mais importante, num sentido evolutivo. Ao que há uma objeção feita por um dos grandes intérpretes de Aristóteles, que é Éric Weil. Este escreveu pouco – não chegou a dez livros. Era um judeu alemão que quando viu o avanço do nazismo, fugiu da Alemanha para a França, adotou a língua francesa e nunca mais escreveu uma única palavra em alemão. Para o meu gosto, é o maior filósofo francês do século. Éric Weil faz uma observação mortal. Diz ele: “Se a lógica é tão mais importante que a dialética, por que Aristóteles nunca fez uma demonstração lógica de nenhuma tese?” Nenhum livro de Aristóteles é escrito logicamente, todos dialeticamente. Se Aristóteles descobriu uma coisa tão importante assim, por que nunca a usou? Depois de ter descoberto a técnica mais perfeita, por que continua usando a imperfeita até morrer?

Um exemplo de demonstração lógica se encontra na Ética de Spinoza – assenta as premissas e vai tirando conclusões, como numa demonstração matemática. Outro é o livro de Wittgenstein. Tractatus Logico- Philosophicus – coloca as premissas, axiomas, e continua em linha reta a dedução lógica. Aristóteles nunca faz isto, em momento algum. Ora, tendo descoberto uma técnica mais profunda, mais exata que a anterior, como iria ele resistir à tentação de usar a nova? Hoje em dia, qualquer garoto que aprenda um programa de computador mais sofisticado que o anterior, vai logo testar o novo. E Aristóteles nunca usou a nova técnica em nenhum dos textos conhecidos. Acontece, que dos textos conhecidos, acredita-se que temos – neste um terço que sobrou de sua obra – aproximadamente setenta por cento das obras filosóficas importantes de Aristóteles. Existem sérias razões filológicas para crer que, das obras filosoficamente decisivas, sobrou quase tudo. Pode ter faltado uma coisinha ou outra. De tudo o que se encontrou de Aristóteles depois de Andrônico, nada se achou que pudesse mudar gravemente as bases conhecidas do sistema aristotélico. Até no século passado se encontrou um novo texto. Uma obra conhecida como “A constituição de Atenas”, hoje incluída nas obras completas. Isto foi achado em 1890. É importante porque é de Aristóteles; mas trata só da constituição de Atenas, não é nada decisivo filosoficamente. Claro que se você achar uma receita de cozinha assinada “Aristóteles”, é um documento histórico, mas não vai abalar a interpretação do sistema. Historicamente importante é uma coisa, filosoficamente importante é outra. Não riam quando falo de receitas de cozinha, porque Aristóteles escreveu até um “Tratado de Economia Doméstica” – não há assunto que esteja para ele fora do mundo do conhecimento.

Então, os livros de lógica abarcaram as categorias, a interpretação, os tópicos, as duas analíticas. Existe um outro livrinho que se chama Das Refutações Sofísticas, que pode ser considerado ou como livro independente ou como capítulo final dos Tópicos. É mais fácil incluí-lo aí – menos um nome para decorar. É uma aplicação dos critérios dialéticos à refutação de determinadas argumentações sofísticas – ou erísticas. Erístico é um argumento que você lança para fins de combate. Não é argumento sério, a ele você recorre no calor da polêmica, só para criar dificuldades para o adversário. Uma discussão política na maior parte dos casos não chega a ser retórica, é apenas erística.

As obras teoréticas: Física e Metafísica

Depois das obras lógicas, vem a série das ciências teoréticas (aquelas cuja finalidade é tratar do real e dizer alguma coisa a seu respeito). A obra teorética esgota sua finalidade quando consegue pronunciar uma proposição ou juízo no sentido de que algo é alguma coisa ou é outra coisa. Responde à pergunta “o que é?” A lógica não pode responder a esta pergunta de jeito nenhum. Ela não trata de nada, não tem assunto. Mostra apenas os esquemas de pensamento possíveis. A série das obras lógicas pega o conjunto de tipos esquemáticos de raciocínios que fazemos sobre a realidade e os considera independentemente da realidade a respeito da qual eles versam. Portanto, a lógica só existe como ciência distinta por uma distinção mental, não real.

Vamos pegar uma ciência real qualquer – a física, por exemplo. Física para Aristóteles é a ciência da natureza e trata de algo real – o cosmos existente, que chega a nós através dos sentidos. Em seguida, você vê como raciocinamos – ou deveríamos raciocinar – a respeito da natureza, e isola o raciocínio de seu assunto. Ora, este isolamento só é feito por um truque mental, não real. Portanto, a lógica não tem um objeto real, tem apenas um objeto formal, definido idealmente. E isto é que a diferencia da ciência teorética. Ela não é uma ciência teorética porque theoréin quer dizer olhar, contemplar. A lógica não tem um objeto para o qual possa olhar. Seu objeto é totalmente inventado. A separação entre o raciocínio e seu conteúdo é, por sua vez, uma distinção simplesmente lógica, não uma distinção real.

Seguem-se os tratados de física. Tal como Aristóteles e o mundo grego a entendem, a física é o mundo dos fenômenos – o mundo que se apresenta diante de nós, considerado na sua totalidade. O sentido moderno da palavra “física” é muito mais restrito. Aquilo que hoje chamaríamos de biologia, e também a química se tivesse ocorrido uma química a Aristóteles, entrariam nos tratados de física. A física se divide basicamente em duas partes: primeiro, aquilo que se refere aos processos cósmicos; segundo, o que se refere aos seres vivos. Mais tarde, receberam os nomes de cosmologia e biologia, respectivamente.

A biologia, por sua vez, não se destaca do que hoje chamamos psicologia. Aristóteles jamais conceberia um estudo da psique que não tivesse uma raiz no corpo vivente. A alma é para ele como se fosse um aperfeiçoamento, um escalão superior da vida e não um fenômeno distinto. Vamos ver que esta inseparabilidade dos fenômenos psíquicos e orgânicos é uma das intuições centrais de Aristóteles, e que o tornará um filósofo particularmente apto a ser aceito no mundo cristão, porque o cristianismo é a religião da encarnação, da união inseparável entre alma e corpo.

Em seguida, deveriam vir os objetos matemáticos. E aí vemos que a divisão das ciências feita por Andrônico não coincide inteiramente com a divisão dos textos. Aristóteles não escreveu uma linha sobre matemática. E na divisão das ciências, a ordem seria esta: em primeiro lugar, os objetos físicos; em segundo, os matemáticos; em terceiro, a metafísica.

Aqui precisamos fazer um parêntese no seguinte sentido: quando dizemos que um objeto é um “objeto da natureza”, nós o estamos distinguindo de outros objetos possíveis. Entendemos que um triângulo não existe na natureza. E também entendemos que um tatu não existe matematicamente. Porém, a diferença entre o triângulo e o tatu é uma diferença de plano ou modo de existência. Porque na verdade os dois são existentes, os dois são reais. Mas estes objetos – o tatu e o triângulo – do ponto de vista de Aristóteles, são ambos abstratos, embora sejam reais. Abstratos porque o geométrico e o biológico são aspectos da realidade; aspectos que, na verdade, coexistem, mas que nós separamos por maior facilidade de examiná-los.

Quando dizemos que 2 + 2 = 4, isto é um fato bruto, ao qual porém só chegamos através de raciocínio. Mas também entendemos que não fomos nós que fizemos dar 4, entendemos que este resultado nos é imposto pela estrutura mesma dos números. Entendemos que as propriedades das figuras geométricas também nos são impostas. Entendemos que se dividirmos um quadrado pela diagonal, vamos encontrar dois triângulos isósceles e quantas vezes fizermos esta operação, encontraremos o mesmo resultado. Isto nos é imposto de maneira dura e implacável. Esta resistência, esta consistência própria dos objetos matemáticos faz com que não somente Aristóteles, mas os gregos em geral os considerem reais. No entanto, o tipo de realidade deles não é o mesmo que tem um tatu. O tatu pode ser visto – ele nos é imposto aos sentidos. A divisão do quadrado em dois triângulos isósceles não nos é imposta aos sentidos, mas tão logo raciocinamos, percebemos que isto não é montado por nós, mas também nos é imposto. As duas coisas são reais. Triângulos, quadrados, números e suas propriedades – existem efetivamente, são relações perfeitamente reais. Tatus e elefantes também são reais. Se decidimos separar uns dos outros, é porque, além de sabermos que são reais, introduzimos uma divisão na realidade, de acordo com um interesse que é nosso. Decidimos encarar alguns como fenômenos naturais, e outros como não naturais. Ou seja, o tatu e o triângulo se distinguem não pela sua realidade, mas por uma segunda qualidade que abre esta divisão no “natural” e no “não natural”. É por isso que Aristóteles os considera abstratos. Só são percebidos como distintos mediante uma abstração mental que separa o natural do não natural, embora ambos sejam igualmente reais.

O que é mais real? 2 + 2 = 4, isto é real. Não, você diz, real é o tatu que eu vejo com os olhos. Mas o tatu antes de nascer não existia e quando morrer não vai existir mais. Então ele é menos real que os números. O que eles são não diz respeito à sua maior ou menor realidade. Ambos são reais. Só que o sentido da palavra realidade, aí, se divide. Um é real de um jeito, outro de outro. Mas na realidade eles não são distintos, não podemos graduar a realidade em função deles. Representam distinções dentro da mesma realidade.

Ora, somente a realidade como tal e independentemente das suas distinções é que pode ser considerada concreta e real objetivamente. E isto é que é o conceito de Aristóteles do ser enquanto ser, a realidade enquanto tal. Para entender mais claramente isto, você pode imaginar o “tatu voador”. Ele não faz parte da realidade. E a conta 2 + 2 = 5 também não faz parte da realidade. Mas também entendemos que é mais fácil haver um tatu voador do que 2 + 2 dar 5. Se a evolução animal tivesse tomado um outro rumo, poderia haver um tatu voador, ou talvez o tatu pudesse falar sânscrito – nada impede. A impossibilidade do tatu voador é relativa e condicionada a determinadas condições do universo físico. Num outro planeta pode ser que existam tatus voadores, ou tatus filólogos. No filme “Guerra nas Estrelas” há um tatu filósofo – o guru do Luke Skywalker. Estas coisas não são inconcebíveis. Mas é inconcebível que 2 + 2 dêem 5. O tatu filólogo ou o tatu voador são idéias com as quais os nossos sentidos se revoltam. Mas somente os sentidos – a inteligência não. Ela admite esta hipótese, embora como remotíssima. Agora, existe a hipótese remotíssima de que 2 + 2 dê 5? Existe a hipótese de que em algum outro planeta 2 + 2 possam dar 5? Existe a hipótese de que em outro universo 2 + 2 dê 5? É inconcebível e seria auto-contraditório. Então você entende que há gradações de impossibilidade. O estudo do real só se esclarece quando se confronta o real com o irreal, e você vê estas distintas gradações de irrealidade. Este estudo faz parte de alguma ciência? Não, nenhuma ciência pode estudar isto, porque toda ciência já subentende estas distinções. Então Aristóteles se viu na contingência de ter de inventar outra ciência. Todas as ciências se fundavam em distinções deste tipo – real, irreal, possível, contingente, necessário. Todas elas se baseavam nisto e estas distinções não eram estudadas por ciência alguma. Este estudo das condições que definem o real, que o delimitam, que o separam do irreal, e também o possível do impossível, é o que se chama ontologia ou metafísica, ou filosofia primeira, ou como Aristóteles também a chamava, teologia. Por um curioso paradoxo, somente o objeto da metafísica é perfeitamente concreto, pois o real como tal não pode ser abstrato. Neste sentido é que triângulos e tatus são abstratos, em face da realidade como tal, do ser como tal.

As ciências práticas e técnicas

Em seguida vinham as ciências práticas que dizem respeito à ação humana, ou mais genericamente, à conduta humana, que Aristóteles dividia em duas partes: conduta do indivíduo enquanto tal e a conduta dele enquanto membro de uma sociedade em particular. Esta a distinção entre a ética (ou moral) e a política. Entre as ciências práticas Aristóteles inclui a economia, seja doméstica, seja política: a economia do cidadão e a da polis.

E finalmente as ciências que chamaríamos artísticas ou técnicas ou poéticas ou poiêticas. Estas estudam, não a conduta humana, mas o meio de produzir alguma coisa, algum objeto. Para entender a diferença entre ciências práticas e ciências poiêticas, é preciso entender a diferença entre ação imanente e ação transitiva. A primeira é a que esgota sua finalidade no próprio sujeito que faz a ação; a segunda, a que se define pelo resultado que ela produz num objeto. Por exemplo, respirar é típica ação imanente, quem respira é você mesmo e quem sofre o efeito da respiração é você mesmo. Pintar é uma ação transitiva. Se a pintura se esgotasse no gesto do pintor, independentemente do quadro, não a poderíamos chamar pintura de maneira alguma. Toda produção, todas as artes produtivas, pertencem à ação transitiva.

Nesta última divisão, Andrônico colocou a Poética, que ensina a fazer obras literárias e a Retórica, que ensina a fazer discursos para o foro, os tribunais, as assembléias populares. O discurso, peça escrita, é um objeto, embora um pouco abstrato. Ao passo que a conduta pessoal ou política não é uma coisa, mas uma ação. As ciências práticas visam à ação humana e as ciências poéticas visam ao objeto da produção humana. Esta divisão das obras está rigorosamente de acordo com a divisão das ciências feita por Aristóteles, com um senão que é aquele das matemáticas. Falta um tratado consagrado às matemáticas – coisa que Aristóteles não fez em parte por ojeriza pessoal: ele devia estar farto de vinte anos de estudos matemáticos na Academia. Na Academia só se falava em matemática, e o que irritava muito a Aristóteles era a tendência platônica de tirar conclusões filosóficas direto da matemática. As pessoas na Academia achavam que triângulos existiam como tatus… Aristóteles tem uma mente muito concretista, orgânica. A materialização de conceitos abstratos é muito irritante para ele.

Introdução ao texto de Tertuliano

A propósito do texto que vamos ler na próxima aula: Tertuliano é um dos apologetas cristãos. Temos aqui mais uma imagem do que pensaram sobre Aristóteles. O ano é 213. O texto está no livro de Tertuliano, De Anima. Não fala de Aristóteles em parte alguma. Dificilmente encontraremos alguma menção exclusiva a Aristóteles em todos os primeiros padres apologistas cristãos. Não houve uma discussão com Aristóteles, houve com a Academia platônica, o que incluía Aristóteles. Nos escritos dos apologetas, praticamente todos os filósofos eram englobados neste conceito, com exceção dos que pertencessem declaradamente a uma escola adversária. Como este não é o caso de Aristóteles, ele fica englobado dentro da Academia. E o curioso é que as objeções lançadas por Tertuliano contra a Academia são objeções aristotélicas, que Aristóteles poderia subscrever em gênero, número e grau. O texto é do ano 200 – seiscentos anos depois de Aristóteles e 263 anos após a edição dos textos por Andrônico. E o autor do texto, discutindo com a Academia e lançando contra ela objeções de conteúdo aristotélico, não tem disto a menor suspeita e imagina estar discutindo com a Academia como um todo. Isto prova que nos primeiros anos do mundo europeu e no final da civilização grega, a Aristóteles se aplica a famosa frase de Stanislaw Ponte Preta: “Sua ausência preencheu uma lacuna”. É uma ausência tão notável que ocupa um espaço. Uma espécie de Aristóteles está subentendido, pairando no ar. Não houve uma consciência de que havia uma obra aristotélica e que seria necessário se posicionar perante ela. Tanto que este indivíduo, discutindo com a Academia, se dirige coletivamente aos seus membros, sem ter a menor idéia de que um deles, Aristóteles, já havia dito coisas do mesmo teor. Também selecionei este texto porque ele mostra uma espécie de sentido da organicidade, da integridade do real, que é profundamente aristotélica. Só que Tertuliano não conhecia Aristóteles ou, se conhecia, não lhe tinha dado importância. Então, de onde tirou este espírito da organicidade do real? Ele obtém isto de uma inspiração cristã. O cristianismo inaugura uma nova forma de abordagem do real, que enfatiza também este sentido da organicidade, costurando os dois mundos que o platonismo havia separado, na pessoa do Cristo. O cristianismo não deve nada a Aristóteles, vem de uma fonte completamente diferente – a fonte judaica. Mas como o cristianismo tem esta idéia da Encarnação, isto é, de que Deus nasceu como gente, já não é possível considerar que existem dois mundos, um profano, aqui, outro, divino, lá; ou um semi-real, aqui, outro real lá para cima. Se este aqui é irreal, dizer que Deus virou homem é o mesmo que dizer que Deus sumiu, entrou na ilusão. Se existe uma gradação de setores da realidade ou de planos da realidade, nenhum deles pode ser considerado mais real do que o outro. É o que mais tarde estará no verso de um poeta do século XX, aliás ateu e comunista, Paul Éluard: “Há outros mundos, mas estão neste”. É tudo um mundo só. Este senso profundo da unidade do real está de fato subentendido, mas muito ocultamente e em germe, no próprio platonismo. Este só pode ter validade se a distinção dos dois mundos emana de uma unidade prévia; se a distinção for absolutizada, vira demência. O senso da unidade e organicidade do real é a inspiração aristotélica mais característica e ela aparece neste Tertuliano que pega este mesmo senso, não de fonte aristotélica, mas de uma fonte judaico-cristã.

Pergunta: — Mas o cristianismo não enfatiza a separação entre mente e corpo? Pelo menos é o que todo mundo diz.

— O cristianismo é uma das doutrinas a respeito das quais circulam mais mentiras. O combate ao cristianismo no Ocidente foi muito intenso, é muito intenso ainda. Como acontece com quaisquer tradições espirituais, em volta das quais sempre existem incontáveis grupos interessados não em discutir as doutrinas cara-a-cara, mas em deformá-las, para lhes atribuir absurdos. No cristianismo a doutrina da separação entre corpo e alma é anátema. Esta separação que os inimigos atuais do cristianismo lhe atribuem foi proposta por inimigos antigos, e o cristianismo paga assim pelo mal que lhe fizeram.

Um dos grandes segredos da história do Ocidente é a gnose. Quem entender isto, entenderá em conseqüência tanta, tanta coisa! Entre os vários inimigos do cristianismo, desde o começo, há um setor chamado gnose. Ela defende uma série de doutrinas que, quando expostas à luz do dia, se mostram realmente escandalosas. Em parte sabendo disto, ela mesma atribui suas doutrinas ao adversário.

Estudando a evolução da doutrina cristã, você verá que ela é realmente muito diferente nos textos, nas falas dos papas, em toda a realidade na evolução do dogma, e na versão que dela os intelectuais anticristãos apresentam ao público. Esta separação de alma e corpo é anátema. Tertuliano é uma das primeiras grandes expressões de doutrina cristã, e ele se bate precisamente por este ponto.

Do mesmo modo que existe uma história de dois mil anos da Igreja, existe uma história de dois mil anos da gnose. A Igreja é uma entidade única, cuja história se acompanha facilmente graças aos textos básicos reunidos numa coleção chamada “Patrística”. A grega tem mais ou menos 400 volumes e a latina 300, de mil páginas cada uma, está tudo lá documentado. Quem quer saber qual é a doutrina da Igreja vai lá e lê. Como ninguém o faz, pode-se atribuir qualquer coisa ao cristianismo. O cristianismo não é uma religião feita para ser compreendida por pessoas de baixa qualificação intelectual. É difícil. Então, é muito fácil entendê-lo pela versão popular inventada por intelectuais anticristãos e combatê-lo por aí mesmo. Quantos teóricos não falam que o cristianismo separa a alma do corpo, quando na verdade é o contrário. Isto é o mesmo que atribuir ao cristianismo a idéia de que Deus não existe.

As pessoas formam uma idéia do cristianismo a partir do que é divulgado por não-cristãos. Para saber o que é uma religião, deve-se perguntar a quem a conhece e a pratica, não ao seu adversário. Para saber sobre o judaísmo pergunta-se a um rabino, não a um nazista. Do mesmo modo, para saber o que é o comunismo não vou perguntar à CIA, tenho de ler Marx, Lênin etc. Só o cristianismo é que não merece este privilégio. As pessoas divulgam o cristianismo já propositadamente distorcido e tornado absurdo para ser mais fácil combatê-lo. As grandes obras de doutrina cristã ninguém lê.

Qualquer idéia tem o direito de ser defendida por ela mesma. Não se concede este privilégio ao cristianismo. As pessoas não têm idéia do que é a guerra pró e contra o cristianismo há dois mil anos. É uma coisa terrível. Ao mesmo tempo, não se pode identificar o cristianismo com a horda de padres e pastores que podem falar o que lhes dá na cabeça. O que a Igreja em si pensa está nas sentenças dos papas e nos chamados “doutores da Igreja”, um grupo seleto dentre os santos, cuja fala foi incorporada como parte do dogma – como por exemplo Sto Tomás de Aquino, Sta. Teresa de Ávila ou Sto. Afonso de Ligório. Não é o que qualquer pensador cristão fala que vale. Somente aquilo é pensamento da Igreja. Agora, um certo estado de espírito difuso que as pessoas chamam de cristianismo nada tem a ver com isto.

Aristóteles foi incorporado mais tarde ao cristianismo por Sto. Tomás de Aquino precisamente por aqui; este era o ponto de união: a unidade entre corpo e alma. Não havia uma contradição muito profunda entre o aristotelismo e o dogma cristão da encarnação. Ao passo que no platonismo essa conciliação já ficava mais difícil, o que não quer dizer que seja impossível.

Onde aparece uma tradição espiritual, uma revelação, uma eclosão de inteligência, surge necessariamente em seguida uma sombra e às vezes esta sombra tenta agir por conta própria, como se o rabo abanasse o cachorro. Do mesmo modo que existe um esforço humano em direção à verdade, existe um esforço no sentido contrário, no sentido do erro. A paixão pelo erro é incoercível, e certas pessoas, quando ouvem falar a verdade, isto lhes provoca raiva. Por exemplo, na Índia você tem o hinduísmo, a tradição vedântica, uma coisa maravilhosa – só que lá está cheio também de Rajneeshs, sociedades teosóficas etc, etc. – são parasitas. Do mesmo modo, você tem a Escola Platônica, um florescimento de inteligência, e logo em seguida, epicurismo, socráticos menores, um monte de parasitas que não entendem aquilo por falta de qualificação intelectual; então pegam um pedacinho da doutrina e o deformam. Isto é uma tendência humana – o homem é um bicho fraco e tende incoercivelmente ao erro.

Do mesmo modo, em relação ao cristianismo. É mais fácil inventar um cristianismo do que procurar o que realmente existe. Por exemplo, para falar de repressão sexual – “esta nossa velha desconhecida” – e provar que o cristianismo só tem repressão sexual, essa dona Marilena Chauí pega a estátua de Santa Teresa, por Bernini, e mostra que o êxtase de Santa Teresa, na estátua de Bernini, tem a fisionomia de um orgasmo corporal; de onde ela conclui que os êxtases místicos de Santa Teresa eram meros orgasmos disfarçados por muita repressão. Ora, em primeiro lugar, Bernini, que fez a estátua, nunca viu Santa Teresa. Em segundo lugar, como seria possível representar materialmente um êxtase espiritual senão sob a feição de um orgasmo físico? Agora, dona Marilena começa por atribuir à santa as características da estátua – o que é inteiramente absurdo. No século passado, um grande historiador – Michelet – pegou um quadro de Franz Hals e descreveu a psicologia do personagem — René Descartes — pelo quadro -, só que que Hals nunca tinha visto Descartes mais gordo. O caso ficou célebre como rateada de um grande historiador. Dona Marilena faz a mesma coisa, só que movida por uma intenção de “desmascarar”, e na verdade ela só se desmascara a si mesma. A necessidade que certas pessoas têm de depreciar os que lhes são espiritualmente superiores é o que se chama inveja espiritual, e é um dos sentimentos mais baixos que podem existir. Há pessoas que não gostam de Cristianismo porque um padre as suspendeu da aula ou lhes botou medo da masturbação. E fica aquela raiva de padre, que depois, travestindo-se de filosofia, é projetada sobre dois mil anos de Cristianismo. Mas não é filosofia, é rancor pessoal mesquinho. É querer medir a civilização com o tamanho das suas dorezinhas pessoais. Não se pode fazer isto. E condenar o Cristianismo é praticamente condenar a humanidade. Condenar qualquer destas grandes tradições – Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Budismo – é condenar a humanidade. É preciso confiar um pouco no bom senso da espécie humana.

Muitas religiões nos parecem esquisitas quando vistas de fora, mas na realidade somos nós que não as estamos entendendo. O sujeito diz: “Olha, o cristianismo condenou o corpo humano”. Se fizeram isto, são uns animais. Mas vamos ver se fizeram mesmo. Não, não faziam; mas seu adversário, a escola gnóstica, fazia. Baseados no preceito de que o mundo foi criado não por Deus, mas por um deus rebelde que violando instruções do Todo Poderoso criou o mundo, que é portanto necessariamente mau, os gnósticos concluiam que a nós cabe destruir esse mundo mau. Para isto existem dois meios – ou pelo ascetismo total, ou pela gandaia cósmica. Existem vários evangelhos gnósticos. A escola tem uma característica. Não há uma palavra que ela use que não tenha sentido ambíguo. Por exemplo – a curtição do “todo”. Existem duas maneiras de perverter o sentido do real. Uma é isolando uma parte; outra, empastelando tudo no “todo”. Então, de um lado temos o Panteísmo. A idéia de que tudo é Deus, sem distinção, é gnóstica. E a idéia da separação absoluta também é gnóstica. Porque no organismo humano, na vida biológica, na vida real, não existe separação absoluta nem indistinção absoluta. Tudo funciona harmoniosamente segundo um jogo de todo e parte, no qual os dois são inseparáveis. E é este o sentido profundo do aristotelismo. E é o que lhe permitirá mais tarde ser harmonizado com o Cristianismo, como poderia ser harmonizado com o hinduísmo, ou o judaísmo ou qualquer das grandes tradições, porque isto é a linha mestra do pensamento humano, que no fundo é o nosso senso-comum, o senso do homem são. Quando você faz a idealização do “todo cósmico”, da integração na consciência cósmica – isto só serve para o indivíduo perder o senso da sua distinção, da sua limitação. Se por outro lado você enfatiza a total separação – coloca um Deus inatingível, numa esfera tão remota que não dá para saber o que é -, isto também deixa você meio maluco. O esforço das grandes tradições é para manter o verdadeiro equilíbrio orgânico, o verdadeiro equilíbrio ecológico da alma. E esta é a grande contribuição aristotélica.

Este texto de Tertuliano documenta isto que a maioria das pessoas ignora: que a unidade indissolúvel de corpo e alma é um dogma cristão. E o que quer que sirva ou para cortar esta distinção ou para empastelar uma coisa na outra, não é cristão. Nem judaico ou islâmico. É gnostico. Estas questões são muito graves. Mas quando se estuda filosofia é para estudar questões graves, atuais e urgentes, não uma coisa remota e boba que aconteceu na Grécia. É para estudar as coisas mais fundamentais da nossa decisão nesta vida. Aqui e agora. Importa muito para a condução da nossa vida termos uma idéia exata do que é dimensão corporal, espiritual, anímica no homem. O unir e o distinguir são as operações fundamentais da razão humana. O isolar e o empastelar são as duas operações fundamentais da ignorância, a qual também é organizada e sistêmica a seu modo. Existem sistemas inteiros que são feitos só para isto. O epicurismo, por exemplo, é um sistema premeditado de confusões, não é um mero engano acidental. O engano, a partir de certo ponto, se torna maldade. Do mesmo modo que existe gente se empenhando há milênios para que a humanidade se coloque numa direção luminosa, inteligível, equilibrada, tem gente fazendo força no sentido contrário. Existem representantes das duas coisas. Estamos num momento dificílimo. O papa há dias falou: “Parece que junto com a nossa civilização está-se desenvolvendo uma civilização do Anticristo”. Agora é que ele descobriu? Isto já está aí há uns cinquenta anos. Mas os papas têm isto, sempre falam as coisas muito tarde. A Igreja Católica tem um aspecto paquidérmico. Leva tempo para se mexer, e por isto mesmo os inimigos acabam com ela. Mas todas as grandes religiões têm isto. São lentas. “Os moinhos dos deuses moem lentamente…” E o nosso grande poeta Murilo Mendes fala das “lentas sandálias do bem” e das “velozes hélices do mal”…

 

Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula IV (Parte I)

Apostila do Seminário de Filosofia

QUARTA AULA

5 de abril de 1994

Transcrição de:
Heloísa Madeira,
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro.

1a parte

A intuição básica de Aristóteles é a idéia de totalidade – a esta idéia voltaremos muitas vezes, aprofundando mais e reconstruindo tudo a partir dela, que me parece a chave da obra.

O item que se segue – a estrutura da obra de Aristóteles segundo a tradição – nos dá a divisão que vamos usar como ponto de partida hipotético. Não quer dizer que eu aceite esta divisão e que ache que a organização a ser compreendida na obra de Aristóteles seja exatamente esta. Apenas, como esta estrutura é tomada como ponto de referência desde o começo da era cristã, vamos usá-la como ponto de partida de nossas investigações. Esta divisão foi mencionada também de passagem na primeira aula. Vamos aprofundá-la ao longo das aulas, e assim iremos estruturando este tema em torno de alguns pólos de atração aos quais retornaremos de tempos em tempos. A questão da intuição básica é um deles, a da estrutura da obra é outro.

O primeiro editor da obra de Aristóteles, que foi Andrônico de Rodes, fez um divisão de suas obras partindo da idéia de que ela deveria acompanhar rigorosamente as divisões que Aristóteles estabelecia no sistema das ciências, de modo que a divisão em volumes seria um reflexo da divisão ideal ou da divisão lógica das ciências. Esta divisão feita por Andrônico, embora muito criticada ao longo dos tempos, jamais foi alterada. A crítica principal que se pode fazer a ela é que a divisão do sistema das ciências é sempre do tipo ideal. Quando você estrutura o sistema das ciências, está definindo como esta divisão deveria ser, ou seja, quais os setores da realidade que estas ciências deveriam idealmente abordar e quais os critérios da divisão ideal. Enquanto isto, a divisão dos textos em volumes é uma divisão real e acidental. Porque, uma vez definido o sistema das ciências, primeiro: daí não decorre que o sujeito deva escrever um livro sobre cada ciência que ele tenha citado na divisão; segundo: mesmo que idealmente o indivíduo queira escrever um volume para cada ciência, não está dito que ele vá conseguir fazê-lo. Pode, por exemplo, morrer antes. Ou seja, divisão de textos é uma divisão de objetos, enquanto divisão do sistema das ciências é uma divisão de conceitos. Nem sempre uma coisa terá de acompanhar a outra. No conjunto da história da filosofia é raro que um filósofo escreva um volume para cada ciência de acordo com a divisão exata que ele fez dos vários assuntos. Um exemplo disto seria Kant. Ele divide os assuntos e escreve um volume para cada um. Outro exemplo, os escolásticos. Depois que a Escolástica foi-se consolidando – não ainda em Santo Tomás de Aquino -, firmou-se com ela uma divisão ideal das ciências que por sua vez se projetou numa divisão em volumes. Na obra do cardeal Mercier, por exemplo, há um rigoroso paralelismo entre as divisões do sistema e a repartição dos volumes, mas acho que esse paralelismo só pode se realizar perfeitamente em obras que expõem uma filosofia velha e consagrada, não naquelas que expõem a doutrina que o filósofo está criando naquele mesmo momento. A filosofia em estado nascente tem geralmente uma exposição improvisada e assimétrica. O neotomismo é por isto mais organizado, editorialmente, do que o tomismo. Se você tomar os escolásticos menores, sobretudo os mais recentes, por exemplo, Maritain ou André Marc, verá que eles fazem um volume de lógica, um de psicologia, um de metafísica, acompanhando a divisão das ciências.

Nesta divisão feita por Andrônico, não fica muito claro se ele está falando de idealidades ou de realidades, de conceitos ou de textos efetivamente existentes. O pior de tudo é que, se só havia sobrado, com as perdas, um terço da obra aristotélica, como este terço poderia acompanhar a divisão global do sistema das ciências? Mesmo que Aristóteles tivesse escrito os volumes rigorosamente de acordo com as divisões do sistema, se dois terços da sua obra foram perdidos seria muito pouco provável que sobrasse exatamente um pouco de texto para cada divisão, sem deixar nenhuma em branco.

A divisão de Andrônico é a seguinte: primeiro, haveria um setor consagrado ao método de todas as ciências; é isto que Aristóteles chama de Organon, que quer dizer “instrumento”. Aí estão os modos de esquematizar o pensamento que são comuns a todas as ciências, a todos os setores do conhecimento, os tratados de lógica, em suma, os tratados que se referem aos discursos de modo geral. Para se orientar no mundo de Aristóteles, há uma série de nomes que é preciso decorar, assim como nomes de ruas, para você saber aonde está entrando.

As Categorias: o primeiro livro da série “Lógica”

A primeira obra do Organon chama-se “As Categorias”. Categorias são as formas básicas sob as quais a realidade chega até nós. Você percebe alguma coisa e esta coisa que você percebe é ou um ente real – como por exemplo percebo vocês neste momento -, ou então é uma qualidade – quando você percebe que está com calor; ou é uma relação entre as duas coisas – quando digo que a caneta está em cima da mesa; ou é uma ação que está sendo praticada por algum ente – o cachorro mordeu o menino. Todas as coisas que posso perceber no mundo estão colocadas numa destas categorias. Elas são a divisão máxima da realidade. E seriam, equivalentemente, os vários tipos de conceitos possíveis.

Voltando à frase “o cachorro mordeu o menino”- pergunto: mas isso é real? Sim. A ação do cachorro morder o menino é real, mas uma ação pressupõe um sujeito que a pratique. No entanto o sujeito não pressupunha esta ação. O cachorro poderia ser perfeitamente real sem morder menino algum. Para que ele mordesse o menino seria preciso que ele já fosse real antes disto e que o menino também o fosse. Entendemos assim que a realidade da ação não é do mesmo tipo que a realidade do ente, daquilo que Aristóteles denomina substância. No entanto, ela é real e não poderíamos reduzir a realidade da ação à do sujeito. Não basta que o cachorro exista para que ele morda. Entendemos que a ação tem um tipo de realidade própria que não se reduz à realidade do sujeito, embora não exista sem ela.

Estas várias modalidades de realidade é que são as categorias. Isto do ponto de vista ontológico. Do ponto de vista lógico, dizemos que elas são as espécies de conceitos que existem. Ou seja, conforme as várias espécies de realidade, teremos outros tantos tipos de conceitos. As Categorias são o primeiro livro da lógica.

Os predicáveis: definição, gênero, propriedade e acidente

O livro trata também de uma outra distinção. Quando faço uma afirmação qualquer a respeito de um ente, ela pode referir-se àquilo que o ente é essencialmente; a algo que ele fez acidentalmente, ou seja, que não faz parte da definição dele; e pode referir-se a algo que não é nem parte de sua essência, nem acidente.

Se digo: “O homem é um animal racional” – estou dando uma definição do homem. Porém se digo: “O homem é capaz de aprender aritmética” – isto não faz parte da definição, mas decorre dela logicamente. A isto chamamos propriedade, aquilo que é próprio do ente. Agora, se digo: “Fulano aprendeu aritmética” isto é um acidente, porque não é necessário que ele aprenda aritmética de fato. Toda e qualquer sentença que você diga a respeito de qualquer coisa vai cair numa destas modalidades.

Ou vai estar dando a definição do ser, ou vai estar dizendo um acidente ou uma propriedade dele, ou ainda pode estar dizendo o gênero a que ele pertence. Por exemplo: “o cachorro é um animal” não é uma definição de cachorro, nem um acidente nem uma propriedade. Digo apenas o gênero. A definição se faz indicando o gênero a que um ente pertence e qual a diferença que ele tem em relação aos outros do mesmo gênero. Vocês podem testar isto com quaisquer pensamentos e quaisquer frases. Isto continua sendo rigorosamente assim.

Esta divisão em quatro é a dos predicáveis. Por que este nome? Predicar quer dizer atribuir alguma coisa a algum ente. Tudo o que se afirma é uma predicação, é atribuir um predicado a um sujeito. Tudo o que se fala pode ser colocado ou na tábua das categorias ou na tábua dos quatro predicáveis. Quanto às categorias o próprio Aristóteles mostra dúvida quanto ao seu número. Numa lista dá sete, e outra dá oito, em outra dez. Isto significa que esta parte da teoria não está pronta. Quanto às sete categorias básicas não parece haver dúvida, porque ele as repete sempre. Além disso verifiquei que este número é o mesmo em todos os sistemas de categorias conhecidas nas outras lógicas do mundo (chinesa, hindu etc.).

Quando existe uma coincidência muito grande entre indivíduos de muitas civilizações sem contato entre si e com milênios de distância, muito provavelmente estes indivíduos estão captando estruturas básicas do pensamento humano ou da realidade mesma. Então podemos fechar negócio em torno das seguintes categorias: 1- substância, 2- quantidade, 3- qualidade, 4- relação, 5- ação, 6- paixão, 7- espaço/tempo.

O segundo livro da série da lógica chama-se “Da Interpretação” ( Peri Hermeneias ). Quando Dante fala: “No meio do caminho desta vida, eu me encontrei por um selva escura, onde a correta via era perdida”, classifique isto nas categorias, se puder: de que Dante está falando? De um acidente, teoricamente. Nem todo mundo se encontra, em determinada etapa da vida, perdido em uma selva escura. Porém, num outro sentido,podemos dizer: isto é uma imagem de um processo essencial à vida humana, segundo Dante. A vida humana é perder-se do caminho reto, porque vivemos no tempo, entre os acidentes, e perdemos o sentido da nossa caminhada. E isto é um processo essencial à vida humana. Se é essencial, como pode ser um acidente?

Vemos que antes de classificar pelos predicáveis e pelas categorias é necessário interpretar a sentença. Conforme o sentido, a mesma sentença poderá equivaler a uma definição, a uma propriedade, um acontecimento etc.

Não podemos identificar a sentença gramaticalmente considerada, materialmente falada, com a proposição lógica correspondente. Por exemplo, se se trata de uma obra poética, a mesma sentença equivale a quatro, cinco, dez proposições lógicas. A interpretação correta da frase e de seu desdobramento nas proposições ou juízos lógicos formais é uma operação preliminar. É por isso que a gramática não funciona nem funcionaria jamais. Na gramática, o cachorro, por exemplo, é substantivo, mas o azul também é substantivo, embora às vezes também seja adjetivo. Ou seja, estes conceitos lógicos das categorias não correspondem rigorosamente aos conceitos gramaticais que depois foram forjados com base neles. Houve alguns espertinhos, a começar por um dos fundadores da lógica matemática – Rudolph Carnap – que dizem que as categorias de Aristóteles são apenas uma extrapolação das categorias gramaticais. Ele as teria tomado, dando-lhes um sentido lógico. Isto é pura ignorância, pois ninguém havia pensado em categorias gramaticais até então, não existia nenhuma gramática da língua grega e as primeiras especulações gramaticais dos gregos são do século I a.C., e baseadas em Aristóteles.

Carnap pertence à escola neopositivista. Para os neopositivistas, as categorias aristotélicas seriam apenas tipos de palavras, quando o que se deu foi o contrário: a gramática é que surge com base na lógica de Aristóteles. Surge, e já faz uma confusão medonha, porque evidentemente os tipos de palavras não correspondem a estes tipos de conceitos. Porque as palavras são apenas signos que indicam sons que por sua vez indica idéias. São representações indiretas de conceitos. A uma mesma palavra podem corresponder três, quatro, dez conceitos diferentes. É evidente que se temos sete tipos de conceitos, não vamos poder ter sete tipos de palavras. Assim como a um mesmo ser correspondem incontáveis maneiras de representá-lo. Você pode ser representado pelo seu nome, ou por uma fotografia ( num outro sentido da palavra representar ), e ainda em outro sentido, por um procurador, ou por um objeto de sua propriedade ( marcando um lugar etc. ). Entre o conceito e a palavra a relação é esta.

Nossos educadores, o Ministério da Educação, acham que o ensino do pensamento, o ensinar a raciocinar – incumbe aos professores de português. Ao ensinar a redigir, estariam ensinando a pensar. E é evidente que uma coisa nada tem a ver com a outra. Isto é admitir que ninguém pensa nada antes da escrever a primeira palavra. Existe um hiato de pelo menos sete anos entre aprender a pensar e aprender a escrever. E segundo lugar, os processos que estruturam a gramática não são processos lógicos. Uma gramática se forma por usos e acidentes. Se as pessoas decidem chamar gato de abóbora, ao fim de umas duas ou três gerações o gato fica abóbora definitivamente.

A gramática se faz empiricamente, isto é, ao sabor de fatos reais. E esperar que ela tenha uma estrutura lógica é como esperar que os resultados da loteria esportiva funcionem com um rigoroso padrão lógico repetitivo. As estruturas da gramática não são lógicas – são estruturas de sons e grafismos que são sedimentadas pelo uso, uso este que está submetido a milhões de influências casuais. Por exemplo, antes e depois do sujeito comprar televisão, sua linguagem não será a mesma. Se dois povos entram em contato mais estreito, o povo mais forte, mais antigo, mais civilizado, exercerá sobre o outro uma influência terrível. É o que acontece hoje com a língua inglesa que está comendo a nossa língua, não no sentido de exportar palavras, processo normal, mas no exportar estruturas de frases: estamos falando português com estrutura de frase inglesa. Isto é muito comum em jornais, televisão etc. Os brasileiros também começam a dar um valor semântico diferente às suas próprias palavras, similar ao valor semântico de palavras vagamente parecidas da língua inglesa. Isto é a estrutura mental de um povo sendo implantada sobre outro. O resultado disto será maior ou menor conforme o apego maior ou menor que cada população tenha aos seus costumes linguísticos anteriores.

É uma trama estabelecida pelo desenrolar dos fatos, e então não obedece a uma regra lógica, mas ao puro empirismo. O serviço da gramática consiste e descrever o estado da língua e cada momento, mais ou menos como ela se encontra. E por uma decisão de ordem estética, estabelecer certos usos como preferenciais. Mas é uma decisão estética. Quando dizemos que tal frase ou tal outra é errada, ela é errada em função de determinado padrão que num certo momento foi adotado, às vezes por uma conveniência sociológica, ou política. Quando uma província é mais adiantada do que as outras, a linguagem dela se torna padrão para que as pessoas possa entender-se, como aconteceu na Itália, quando o dialeto da província toscana foi adotado como língua italiana. O que chamamos língua italiana hoje é na verdade um dos dialetos, que se tornou dominante. Então o italiano aprende em casa o seu próprio dialeto e na escola o toscano. É um processo de unificação da língua. Isto não quer dizer que a língua toscana seja em si melhor do que as outras. Os processos de uniformização da língua obedece a fatores casuais. Hoje em dia no Brasil, a linguagem-padrão é a da Rede Globo. Podemos questionar a autoridade da Rede Globo em matéria gramatical, mas não podemos questionar o seu poder, e a gramática não é feita pela autoridade, ela é feita pelo poder. Quem fala mais alto acaba sendo imitado.

A tentativa de estruturar a gramática segundo conceitos rigorosamente lógicos leva a perversões. Um exemplo comum é a diferença que existe entre sujeito lógico e sujeito gramatical. Se digo: “João matou Pedro”, o sujeito é João. Agora digo: “Pedro foi morto por João”. O sujeito gramatical é Pedro, mas o sujeito lógico continua sendo João. Isto é para verem o abismo que existe entre lógica e gramática. E também deve dar para entender a que desastre deve levar a idéia de quem tem de ensinar a pensar é o professor de português.

Além de levar em conta as categorias e os predicáveis, para poder aplicar estes conceitos à classificação dos demais conceitos, é necessário que a frase seja interpretada e que da sentença gramatical considerada nós retiremos os juízos ou proposições formais. Se pegamos esta primeira sentença da Divina Comédia, ela é uma sentença só, mas poderá ter um ou mais sentidos que constituirão as suas proposições formais, que estão materialmente todas na mesma frase. Jamais confundir a sentença real com as proposições formais. A sentença pode ser ambígua, ter dois sentidos, duas proposições formais. É disto que trata o livro da interpretação.

A frase de Dante, conforme seja interpretada como acidental ou própria do destino humano, já tem duas proposições formais que teriam de ser analisadas separadamente. É próprio da linguagem poética corresponder a várias proposições formais possíveis e é por isso mesmo que ela é sintética. Se desmembrássemos, para cada sentença, uma proposição formal, teríamos uma linguagem logicalizada. Ora, nem a língua corrente do dia-a-dia. nem a língua literária, nem a de comunicação social ou jornalística ou da televisão – nada disto é linguagem logicalizada. Tudo isto é linguagem ambígua.

A diferença da linguagem poética é que ela é um tratamento técnico dado a esta linguagem ambígua. O poeta é ambíguo porque quer, porque quer fazer sentenças que contenham o máximo de proposições formais possíveis. O máximo de sentidos no mínimo de palavras – isto é a poesia. A linguagem do dia-a-dia não é ambígua por escolha; ela não consegue ser outra coisa. O poeta é ambíguo por suficiência, e nós por deficiência – mas há ambiguidade nos dois casos.

A terceira obra de lógica seria os “Tópicos”, que tratam da ciência da dialética, que leva este nome por tratar da confrontação de dois discursos simultâneos (dois ou mais). Segundo Aristóteles, a dialética é a arte de raciocinar onde não temos premissas firmes, ou seja, onde não conhecemos os princípios do assunto. Aí não temos base para raciocinar sobre os casos particulares. Imagine que você é Charles Darwin estudando a evolução animal. Você encontra o esqueleto de um determinado bicho e quer referi-lo a uma evolução. Você vai ter primeiro de situa-lo num certo momento, depois da espécie que o antecedeu e antes da que o sucedeu. Para isto você precisa ter a noção pronta da escala. Se você não tem a escala pronta ao menos como hipótese, não pode situar o bicho. É evidente que Charles Darwin não encontrou a doutrina da evolução pronta. Ele encontrava fatos biológicos, mas na hora de compreendê-los, lhe faltavam os princípios explicativos e mesmo os princípios classificatórios pelos quais pudesse situar cada fato. Então, como raciocinar? Tinha de fazer várias hipóteses. Por exemplo, você faz duas hipóteses a respeito do mesmo fato – encontra um determinado bicho e diz: “Isto aqui parece ser parente da lagartixa, mas por outro lado parece ser parente do hipopótamo”. É difícil ter acontecido isto a qualquer esqueleto real, mas suponhamos que você tivesse estas duas hipóteses. Quando Darwin associou o elefante ao cavalo, como o fez? À luz das aparências, não seria mais lógico procurar um parentesco com o rinoceronte, com alguma coisa mais parecida fisicamente? Por que ele achou o parentesco com o cavalo? Porque não usou o critério de aparência macroscópica, mas o da conformação dos ossos. Talvez, se tivesse encontrado outro critério, teria feito outras associações. Pela estrutura dos ossos, viu que se tratava de espécies contíguas ou parentes. Para cada um destes casos, ele tinha várias hipóteses possíveis. Ora, duas hipóteses contrárias se sustentam em duas séries contrárias de razões. Há argumentos a favor desta, que formam uma linha de raciocínio, e argumentos em favor daquela, que formam outra linha de raciocínio. Esta comparação é que se chama dialética. Quando você não tem princípios para explicar o caso determinado que você está averiguando, só lhe resta procurar estes princípios. E como encontrá-los? Seguindo as várias linhas de hipóteses contrárias, ao mesmo tempo. Não pode ser uma depois da outra. Porque cada hipótese é validada pelo confronto com a sua contrária. Entre duas hipóteses, uma parece mais válida. Então a que sobrou você compara com uma terceira e assim por diante. Por isso se chama dialética, porque é sempre uma operação dupla.

A arte da dialética serve, segundo Aristóteles, para três coisas:

1) Para investigações nas quais não existam ainda princípios científicos assentados.

2) Para o treinamento da mente. A dialética servirá ao longo de mais de mil anos como a prática escolar central do aprendizado de filosofia. Porque é pela dialética que aprendemos a confrontar as diversas possibilidades e deixar que elas se desenvolvam até que uma delas saia vencendo.

A importância escolar disto é incalculável. Se houvesse um treino dialético hoje em dia, a maior parte das idéias que estão em curso público desapareceriam, porque não suportam o mais leve exame dialético. Sustentam-se exclusivamente em argumentos retóricos. A argumentação retórica é baseada na verossimilhança, na impressão de veracidade. Quando discutimos retoricamente, temos uma crença e produzimos verossimilhança para sustentar esta crença. Produzimos exemplos em profusão. O exemplo é o tipo mais característico de argumento retórico. Exemplo não prova nada, mas dá verossimilhança; faz parecer verídico, dá vida ao assunto. Quando argumentamos mediante exemplos, estamos tentando tornar nosso raciocínio verossímil para quem nos ouve, tentando fazê-lo ver as coisas como as vemos. Se soubermos produzir exemplos vívidos, interessantes, o sujeito acaba vendo as coisas como queremos. Mas isto só serve para persuadi-lo, não serve para testar a veracidade do argumento. Então, como já foi explicado, a dialética serve para fazer uma triagem dos argumentos retóricos. Você confronta os vários “prós” e “contras” e desenvolve cada um de acordo com a melhor argumentação lógica possível, dando igual chance a todos os argumentos, para ver qual deles fica de pé no fim. Ou seja, na dialética você faz uma arbitragem, não toma partido. O argumento retórico é um advogado defendendo uma causa. O dialético é um juiz julgando a causa. Se houvesse este treinamento nas escolas de filosofia, política, ciências sociais etc, 99% das crenças iriam embora, porque elas não suportam o exame dialético. Nele devemos conferir igual chance aos dois argumentos. Se isto não é possível, entendemos também que não é possível uma decisão correta do assunto e que esta irá para o lado volitivo ou irracional. Se isto fosse levado em consideração não teríamos discussões como o confronto entre o capitalismo e o socialismo. O homem que defende o capitalismo, refere-se ao capitalismo como existe historicamente. O que defende o socialismo não se refere a nenhum socialismo histórico, que tenha acontecido em algum lugar, mas a um vago ideal futuro. Ora, o capitalismo também tem ideais – mas a discussão retórica compara os ideais de um com a realidade de outro, em vez de comparar ideais com ideais, realidades com realidades. Então é evidente que esta questão não pode ser resolvida. Se você compara os ideais de um com as realidades do outro, a discussão está viciada. Se você compara as suas qualidades com os meus defeitos, você sai ganhando automaticamente. Por outro lado, os defensores do socialismo – todos, sem exceção – hoje em dia já não podem fazer assim, porque temos uma experiência socialista de cem anos no mundo. Mas dizem que não é representativo, porque não corresponde ao seu ideal… Isto é o mesmo que julgar um indivíduo levando em conta somente os atos que correspondem aos seus ideais, e considerando como falsos todos aqueles que estão abaixo do ideal. Vejo que um sujeito é um bêbado, ms como tem o ideal de deixar de beber, tenho de apagar a realidade da sua bebedeira, e encará-lo como se ele não bebesse. Isto é o tipo da discussão viciada. Tenho um belíssimo livro que se chama Ideals and Realities of Islam, escrito por um homem por quem tenho o máximo respeito, Seyed Hossein Nasr, onde ele confronta civilizações tradicionais, particularmente a islâmica, com a moderna sociedade industrial, e chega à conclusão que a sociedade industrial é um horror e que as civilizações tradicionais é que são bonitas. Só que ele faz isto: compara os ideais islâmicos com as realidades do Ocidente, e nunca o contrário. O que é representativo do ocidente? A crise ecológica, esta sujeira toda, a alienação do trabalho. O que é característico do Islã? Os ideais maravilhosos que estão no Corão. Esta comparação não é possível, está viciada. Teria de comparar bens com bens e males com males; ideais com ideais e realidades com realidades.

Isto é uma regra dialética elementar. Quando você faz isto, é obrigado a engolir muitas coisas que retoricamente não desejaria. Toda esta revisão de ideais socialistas que existe hoje começou com a queda do muro de Berlim – ex post facto. Também fui socialista aos 20 anos, mas mudei sozinho muito antes que caísse o muro – por exame, confrontando. Levou quinze anos este processo; eu sei o trabalho que me deu. E as pessoas hoje mudam do dia para a noite, com a maior facilidade. Isto indica que não querem chegar a uma conclusão real. A solução não é fácil, do tipo pró ou contra. A dialética tem, então, entre outros usos, esta utilidade de formar a mente para o exame objetivo das questões.

3) A terceira utilidade assinalada por Aristóteles é a utilidade científica. Quando você está discutindo um assunto cujos princípios você desconhece, tem de remontar das questões até os princípios. Como se faz isto? Pela discussão dialética. O confronto crítico das várias possibilidades acaba fechando as alternativas até que num certo momento você tem uma espécie de intelecção ou intuição dos princípios que governam aquele assunto. Pode ser uma falsa intuição. Porém é claro que onde você não conhece os princípios, não tem as premissas, você não pode fazer um raciocínio inteiramente lógico. Vai partir do que? Todo raciocínio lógico parte de uma premissa. Se não tem premissa você tem de fazer uma espécie de raciocínio lógico ao contrário, das consequências para as premissas possíveis – sem esquecer que as mesmas consequências podem derivar de vinte premissas diferentes e até contrárias. Então os processos de exame dialético podem ser infinitamente complicados e estão todos descritos com bastante sutileza não só no livro dos Tópicos mas também em todos os tratados de dialética que depois foram escritos, desde então até a Idade Média e depois. Este é um material pelo qual a maior parte dos filósofos modernos não tem o menor interesse.

Vimos então os três usos da dialética:

1º) Para discussões onde você pretende alcançar um resultado meramente provável (uma retórica aperfeiçoada).

2º) Para utilização escolar – treinamento da mente.

3º) Uso científico – princípio de investigação científica. Guardem isto porque mais tarde é a esta sentença de Aristóteles, de que “a dialética é o meio de encontrar os princípios” que vamos recorrer para propor uma remontagem da nossa visão do sistema aristotélico, onde se coloca a dialética como a ciência principal.

As Analíticas e a teoria do silogismo

Depois do livro dos Tópicos, vêm dois livros que se chamam asAnalíticas e tratam do raciocínio lógico – o sistema dos silogismos. Silogismo é uma sequência de três proposições, onde das duas primeiras decorre necessariamente a terceira. Existem várias maneiras de montar um silogismo, algumas válidas, outras não. Aristóteles distingue 64 caminhos pelos quais o raciocínio silogístico pode chegar a uma conclusão. As premissas, por sua vez, segundo ele se dividem em dois tipos: universais ou gerais e particulares. Universais são as que se referem a toda uma espécie de seres; particulares, as que se referem a um em particular.

No famoso exemplo – Todo homem é mortal, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal – a primeira premissa é universal ( Todo homem… ) e a segunda particular. Conforme o jogo de premissas universais e particulares, você terá conclusões que serão válidas para um indivíduo em particular ou para vários. No exemplo citado a conclusão se refere especificamente a Sócrates – a um indivíduo em particular e não a todos. Seguindo o jogo de premissas universais e particulares, temos um ciclo de 64 etapas possíveis – exatamente a estrutura do I Ching. O conceito de universal-particular em grande parte coincide com o conceito de Yang-Yin, respectivamente.

Se você pegar os silogismos válidos e os inválidos e fizer um raciocínio completo, terá 64 etapas, das quais somente dezoito são efetivas, probantes, as outras não. Por exemplo: Algum homem é careca, Sócrates é um homem. Posso concluir que Sócrates é careca? Não. Mas posso fazer o silogismo. Tem uma estrutura silogística, porém não é válido. Se você pegar cada etapa do raciocínio, pode tomar como nova premissa uma conclusão para um segundo raciocínio, desde que a some com uma outra premissa.

A = Premissa universal D = Nova sentença ( premissa universal ou particular )

B = Premissa particular

E = Conclusão.
C = Conclusão particular, premissa ( particular ) do novo silogismo

Rodando com todas as combinações possíveis, você verá que algumas são válidas, outras não. E a totalidade destes arranjos dá 64.

A combinação é entre as palavras todos e algum; conforme todos ou algum estejam na 1ª, ou na 2ª premissa ou na conclusão, você terá 64 combinações.

Existe uma clara analogia aí, porque o yang evidentemente se refere sempre ao universal e o yin ao particular, — o grande e o pequeno. Isto é bastante claro. O yin é um princípio de particularização, de segmentação, por isso mesmo é representado por um traço dividido ( — — ). A divisão, a distinção entre os seres é um princípio yin; a unidade do universo é um princípio yang. É o contrário do que diz o Fithjof Capra. Para ele, o yang representa a razão que é analítica e divide, e o yin representa a intuição que unifica. Mas se é assim, por que o chinês representou o yang com um traço contínuo ( —— ) e o yin com um traço dividido ( — — )? É porque o chinês não tinha lido o Capra…

Como se divide o I Ching? Não é um jogo de 3 e 2? Aqui também temos um jogo de 3 e 2. São três sentenças e duas possibilidades ( todos e algum – universal e particular). Se você tiver paciência, vai combinando e vai chegar nos 64. A silogística é um jogo exclusivamente matemático. Na verdade, um joguinho para crianças. É algo que qualquer pessoa aprende com a maior facilidade, é algo totalmente mecanizado, que é possível ensinar a um computador mediante um circuito em que você tem um jogo de 2 e 3 igualzinho.

Isto seria a Analítica. Aristóteles nunca usou a palavra “lógica”, que será mais tarde inventada pelos estóicos. Ele chama-a Analítica ou ciência demonstrativa. Esta é a ciência que, partindo de uma premissa admitida como certa, chegará a um resultado que terá de ser admitido como certo, queiram ou não queiram, exatamente como na aritmética elementar. Se você tem a premissa certa, chegar à conclusão certa é mera questão de ajeitar formalmente o raciocínio correto. Um computador faz isto. Dada a premissa, se você der a conclusão errada, ele corrige, porque é mero ajuste formal. Este é o raciocínio mais certo que existe, uma vez que você tenha a premissa certa. O problema é este: onde encontrar as premissas? Se tudo fosse uma questão de raciocinar logicamente, já estava tudo resolvido há muito tempo. Porém, é claro que a lógica não pode encontrar premissas, e sem premissas nada se pode fazer. Para encontrar a premissa certa, é preciso partir de um grande número delas – meramente prováveis, premissas hipotéticas. Portanto, a coisa decisiva passa a ser a dialética.

Aula IV – Parte II

 

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