Comunicado

Olavo de Carvalho

21 de novembro de 2009

Prezados amigos,

É com grande pesar que comunicamos o falecimento no dia 17 de novembro de Jorge Luiz Nicolodi, um colega do Seminário de Filosofia. Abaixo, o relato de sua morte enviado aos alunos do Seminário de Filosofia pelo seu amigo Ivan Chudzik.

Nossos sentimentos.

Olavo de Carvalho e equipe do Seminário de Filosofia.


Há três semanas, um engenheiro agrônomo de Guarapuava, Jorge Luiz Nicolodi, esteve em Curitiba, quando assistiu à Missa do Rito Gregoriano na igreja da Ordem. Por causa da sua área profissional, Jorge continuamente estava em contato com o problema do MST. E, não obstante, sendo ele diretor da UCP (Faculdades do Centro do Paraná), também se deparava com o esquerdismo reinante no ambiente universitário. Isto o intrigou de tal maneira que ele começou uma jornada intelectual em busca de respostas. Afinal, por que ainda há quem lute pelo marxismo quando os países onde ele foi aplicado estavam arrasados?

A sua busca dedicada e determinada pela verdade o fez encontrar Olavo de Carvalho, Reinaldo Azevedo, dentre outras personalidades. Desde então ele estudou com afinco Filosofia, o que resultou no desabrochar do seu Catolicismo. Por consequência, ele passou a viver conscientemente a doutrina da Igreja, sabendo de todos os problemas que assolam a Religião Católica hoje. Jorge estava ciente das questões em torno do Concílio Vaticano II, do Novo Ordinário da Missa, do 3º Segredo. A sua redescoberta da Religião–sendo ele católico desde sempre–se deu quando Olavo de Carvalho, em seu Curso on line de Filosofia, explicou a relação do que foi proclamado pela razão e antecipado por profetas, amparado pelos estudos de Eric Voegelin. A partir de então, nasce nele um interesse surpreendente pela doutrina católica. Isso o leva a buscar o Rito Gregoriano, o qual pôde presenciar quando esteve na capital paranaense.

Na Missa, ele conversa com dois fiéis que organizam a celebração. Propõe-se até a comprar o livreto com o Ordinário do Rito, tirando uma nota de 50 reais do bolso. Claro que não aceitam a oferta, pois um exemplar daquele custaria menos de 3 reais. O dinheiro fica para a igreja da Ordem, e o livro ele leva gratuitamente. Ao perguntar pelo Rito Gregoriano, contando do seu interesse de implantá-lo em Guarapuava, os organizadores contam de que já há gente se envolvendo nesta tarefa. Prometem contactar um fiel guarapuavano para que Jorge possa se juntar ao grupo.

Foi assim que vim a conhecer o Jorge. Ele, aliás, estava impaciente, com uma “santa pressa” para que pudesse encontrar pessoas o quanto antes. Seu amor sincero e incondicional pela verdade não podia esperar mais.

Conversando com Jorge, impressionava-me ver a sua disposição em praticar o bem. Ele fazia planos faraônicos para Guarapuava: se fosse necessário, ele estava interessado até mesmo em contruir uma Capela para receber o Rito Gregoriano. Ele queria levar a boa Filosofia para a sua Faculdade, ou então fundar uma Associação de discussão filosófica. Como ele mesmo me dizia, não podíamos nos dar o direito de errar. A mentalidade revolucionária, o modernismo, o relativismo e liberalismo vencem há séculos. Temos poucas chances, e elas devem ser certeiras.

Quando nos reuníamos para estudar doutrina católica e rezar o Terço do Rosário, ele sempre foi o primeiro a chegar. Pontualíssimo. Quando conheceu o grupo pela primeira vez, ficou muito emocionado, de avermelharem-se de lágrimas os olhos dele. Finalmente ele encontrou pessoas dispostas a conhecer e lutar pela verdade, num mundo apático e desinteressado. Jorge tinha um amor supremo, estava disposto a tudo. A sua honestidade intelectual não tinha comparativos.

Segunda-feira, dia 16 de novembro, a urna com as relíquias de São João Bosco chega em Guarapuava. Fui à tarde na Catedral rezar. Mas, quando eu já ia embora, me veio um pensamento. Por que não avisar todo o grupo católico da Missa para rezármos um Terço diante da urna de Dom Bosco? Afinal, a oportunidade era única. Avisei 7 pessoas, das quais somente 3 puderam comparecer ao nosso encontro, enquanto que outras 3 foram em horários alternativos. Marcamos o Terço para o dia seguinte, na terça-feira, às sete horas, sendo que às oito e vinte a urna deixaria a cidade em direção a Ponta Grossa.

Rezamos das sete até sete e meia. Além do Terço e da Ladainha de Nossa Senhora, Jorge foi rezar um pouco diante da urna de D. Bosco. Em seguida, nos despedimos, e combinamos de fazer uma reunião de estudo para sábado.

Acontece que Jorge chegou em casa, teve um infarto, e morreu.

O fato é inacreditável, num primeiro momento. Ele tinha apenas 51 anos, não aparentando ter problemas de saúde. Não posso deixar de ver a Providência neste evento, sob o risco de que eu caia em desonestidade intelectual ou cegueira espiritual. A minha consciência não me permitiria um absurdo desta natureza. Estou convicto da relação sobrenatural dos eventos.

São João Bosco, mesmo após morto, continua a perpetuar a sua santidade pelo tempo. Posso dizer que talvez a sua urna tenha visitado a cidade só para permitir que uma alma vá para o Céu, pois, se depender da programação da Diocese, teríamos “””apresentações artísticas””” deveras inúteis–senão estúpidas–perante a urna de Dom Bosco.

Jorge passou rapidamente pelas nossas vidas. Conheci-o há três semanas. A Providência colocou-o em nosso caminho só para ele ter uma boa morte, uma morte digna da sua vida de estudo e da sua busca incondicional pela verdade? Estou certo que sim.

Nossa Senhora dignou-se dar-lhe uma boa morte, após 53 súplicas da Ave-Maria: rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte.

São estas histórias que me fazem ter a convicção de quem busca sincera e dedicadamente pela verdade, há de encontrá-la. Deus não abandona um filho seu com fome de justiça.

Ademais, o tempo pertence a Deus. Não sabemos qual é a hora de nossa morte, e por isso mesmo Nosso Senhor já advertia de que devemos estar preparados. Ainda que Deus tenha o direito de nos tirar a vida quando bem lhe aprouver, Ele, misericordiosamente, dá-nos sempre a oportunidade de morrermos bem, amparados pela sua graça. Jorge soube corresponder à graça. Quantos e quantos a ignoram! Quantos negam os sinais de Deus que não cessam de perturbá-los, insistindo pela conversão! A conversão é iminente! Amanhã pode ser tarde demais. Que ninguém recuse as chances de Deus para suas criaturas, pois de nada adianta um homem ganhar a vida se vier a perder a sua alma.

Depois deste relato que clama por uma visão sobrenatural dos eventos, peço a todos que incluam em suas orações pelo descanso eterno de Jorge.

Que Nossa Senhora do Carmo continue a interceder por ele.

Ivan Chudzik

A doutrina católica sobre a maledicência e a calúnia, segundo Adolphe Tanquerey

Nota introdutória por Olavo de Carvalho

20 de novembro de 2009

“Esses jovens conservadores estão mais longe da verdade que muitos ‘melenudos progre’ nos anos 60. Nossos cabeludos eram contestadores, atiravam coquetéis molotóv, xingavam, liam livros. Esses liberais que nasceram ontem dizem-se interessados no cristianismo, tiram o brinco (mas continuam vestindo-se mal), começam a tomar vinho e a visitar os avós. Mas na prática – Deus nos liberte desses ateus – só se tornaram um pouquinho mais vaidosos, um pouquinho mais arrogantes, um pouquinho mais sem-vergonha.”

Desde há alguns anos, noto que quase ninguém no Brasil, nem mesmo os comunistas, pratica a arte da difamação e da calúnia com o entusiasmo feroz de alguns militantes católicos, seja leigos ou sacerdotes. Protestantes também: com que freqüência deprimente não vemos pastores acusando-se mutuamente, em público, de adultério, de simonia e de sei lá mais o quê? Mas o fato é que a mim nunca me atacaram, ao passo que aqueles católicos, à simples visão da minha pessoa, sentem a comichão irresistível de entregar-se, com deleites de sadismo, à demolição do Oitavo Mandamento.

A desculpa que encontram para tão singular exercício é o zelo pelas almas de meus alunos e leitores, aos quais desejam, segundo alegam, poupar o risco da minha companhia tentadora. Daí o teor geral de suas advertências: Afastem-se do Olavo. O tom é sempre o mesmo, mas as justificativas são de dois tipos: (1) mentiras substantivas, atribuindo-me atos que não pratiquei ou hábitos que não tenho; (2) mentiras adjetivas, isto é, fatos inócuos descritos em palavras que lhes dão o ar de crimes ou pecados. Exemplos misturados:

· Afastem-se do Olavo porque ele é herético.

· Afastem-se do Olavo porque ele é gnóstico e maçom.

· Afastem-se do Olavo porque ele é guénoniano.

· Afastem-se do Olavo porque ele é astrólogo.

· Afastem-se do Olavo porque ele foi tentar arrancar dinheiro no Opus Dei.

· Afastem-se do Olavo porque ele tentou o mesmo na TFP e levou a porta na cara.

· Afastem-se do Olavo porque ele pede esmolas [quer dizer, há um linkpara doações no meu site, como em todo site similar nos EUA].

· Afastem-se do Olavo porque ele não tem diploma de filosofia.

· Afastem-se do Olavo porque ele é gay.

· Afastem-se do Olavo porque ele é centralizador e autoritário.

· Afastem-se do Olavo porque ele fala palavrões.

· Afastem-se do Olavo porque a mulher dele é uma prostituta.

· Afastem-se do Olavo porque os cursos dele são uma seita.

· Afastem-se do Olavo porque ele usa métodos de manipulação hipnótica para dominar seus alunos.

· Afastem-se do Olavo porque ele é um covarde: fica lá no bem-bom nos EUA enquanto nós aqui agüentamos o rojão petista, ateísta etc.

E assim por diante. Não vejo por que me defender de acusações tão francamente imbecis e mal intencionadas. Quem quiser acreditar nelas só fará dano a si mesmo. O único ponto que interessa ressaltar por ser em si mesmo um fenômeno sociológico de certa importância é que cada um daqueles que as emitem jura não ter-me ofendido jamais e, ao menor revide da minha parte, sai chorando que foi difamado, atacado, vilipendiado etc. etc. Isso é uma regra geral absolutamente infalível em todos os casos e, sem dúvida, uma expressão notável da logica brasiliensis.

Uma senhorita que recolocou em circulação um velho escrito difamatório anônimo, violando até mesmo meus direitos constitucionais, jamais demonstrou o menor arrependimento por isso, e não consegui por nada deste mundo fazê-la sentir que agira de maneira moralmente ilícita, além de criminosa; admoestada, recolheu-se à torre de marfim da sua religiosidade sublime, e declarou que não devia satisfações a um sujeito da minha baixa espécie.

Um rapaz que me chamara de herege assegurou, ato contínuo, que jamais me insultara de maneira alguma. Mostrou assim ignorar que, na religião que diz professar, a acusação de heresia é a mais grave de todas, superior mesmo à de homicídio, e que, nessas circunstâncias, qualquer insulto que eu lhe dirigisse em resposta seria, em comparação, um pecado venial na mais grave das hipóteses. Pior ainda: é impossível alguém ser até mesmo vagamente suspeito de heresia enquanto não se apresentar como portador de uma teologia católica legítima em oposição à doutrina da Igreja, coisa que obviamente nunca fiz, pela simples razão de que jamais ensinei teologia alguma, limitando-me a investigar assuntos terrenos acessíveis aos métodos da ciência e da filosofia e deixando a teologia para os mais capacitados. Imaginar que qualquer afirmação filosófica ou científica para não dizer qualquer opinião jornalística possa ser lida como preceito teológico, e julgada sob esse prisma, não é só um erro de leitura imperdoável em pessoas que dizem ter formação universitária: é ignorar, na base, o que seja teologia. Teologia é, como o próprio nome diz, a interpretação racional do discurso divino, a explicitação das verdades compactadas no livro sagrado. Só duas ou três vezes me aproximei vagamente desse campo, em mensagens de Natal que se contentavam em estimular a fé cristã dos leitores e de novidade teológica não tinham nada.

O mesmo cidadão assegurava que, com a minha insistência em combater o comunismo em vez de praticar as virtudes cristãs, eu me igualava aos próceres da Teologia da Libertação. Ou seja; de um lado, sem nada saber da minha vida nem me perguntar nada a respeito, baseado portanto só em zunzum de terceiros e na sua própria imaginação, ele dava por previamente demonstrada a minha indiferença ou hostilidade às virtudes cristãs, substituídas por um mero anticomunismo laico; de outro, condenava-me ao inferno com base no princípio de que combater os inimigos da Igreja é tão ruim quanto ser um deles.

Outro acrescentava à maledicência a calúnia, confundindo propositadamente as noções de erro e mentira, de tal modo que, ao me atribuir algum erro que não cometi, podia explicá-lo por uma intenção mendaz que também não tive.

Outro, que proclamava ser eu um boca-suja indigno de freqüentar os meios bem educados, somava a essa piedosa advertência a informação de que eu era um cafetão casado com uma prostituta, além de homossexual, formador de quadrilha e cavador de dinheiro de instituições católicas. Obviamente esse também não me insultou nem difamou nem caluniou, apenas praticou em meu benefício a mais pura caridade cristã.

Outro, ainda, sem medir o grotesco do que fazia, macaqueava a estrutura dialética das quaestiones disputatae medievais para discutir, com ares de Sto. Tomás na sua cátedra de Paris, esta questão transcendente: “É lícito ao filósofo usar palavras de baixo calão?” concluindo, evidentemente, pela negativa, e deixando inculcada nos seus devotos discípulos imaginários a impressão enganosa de que o filósofo referido usara aquelas palavras em demonstrações filosóficas, como substitutivos da argumentação racional, e não apenas num programa informal de rádio destinado a responder e-mails e comentar, por alto, as notícias da semana.

Qualquer que seja a variedade das imputações, uma delas reaparece com a constância recorrente de um Leitmotiv destinado a sublinhar as outras. É a acusação de covardia: sou um covarde porque vivo bem protegido em Richmond, Virginia, EUA, enquanto eles correm toda sorte de riscos no Brasil.

Desde logo, sendo todos esses acusadores bem jovens, ele deveriam fazer as contas e notar que, como jornalista de oposição no regime militar e depois como principal inimigo do esquerdismo na grande mídia, corri perigo, inclusive de prisão e morte, durante um período bem maior que a duração das suas porcas vidas.

Se depois dessa longa batalha eu tivesse me retirado para os EUA na intenção de desfrutar um período de sossego, para me dedicar a atividades intelectuais de maior envergadura longe da agitação imediata, não haveria nisso covardia alguma, apenas o exercício de um direito inerente à velhice ao fim de uma vida de combates.

Não creio que seja tão difícil fazer esse raciocínio, quando se tem alguma intenção de saber a verdade.

No entanto, para piorar as coisas, é absolutamente falso que em Richmond eu esteja protegido do que quer que seja, e os inquisidores-mirins que me condenam não deveriam ter grande dificuldade em percebê-lo, mesmo de longe, se consentissem em pensar no assunto por uns minutos antes de lavrar suas sentencinhas. De um lado, a primeira coisa que fiz aqui foi aproximar-me do grupo conservador mais discriminado, atacado, perseguido e fisicamente agredido dos EUA, grupo cujo líder, Alan Keyes, arrisca a pele diariamente como autor do processo mais explosivo já instaurado contra o presidente Barack Obama e, no curso de uma manifestação abortista, foi parar até na cadeia.

A segunda coisa que fiz nos EUA foi uma série de conferências no Hudson Institute, na Atlas Foundation, na Georgetown University, na America’s Future Foundation, na Academia de West Point e em outras instituições, acusando abertamente a mais poderosa central globalista do mundo, o CFR, de mentir para ocultar a existência do Foro de São Paulo e os laços entre a esquerda latino-americana e o terrorismo islâmico. Considerando-se que o autor dessas intervenções era um residente estrangeiro, cuja presença no país é uma concessão estatal que pode ser revogada a qualquer momento, não creio que elas tenham sido propriamente demonstrações de covardia. Exposto a todas as retaliações do establishment local, não me encontro mais a salvo de qualquer iniciativa vingadora do governo brasileiro, que tem recursos para processar qualquer um em tribunais do exterior, para negar ao infeliz a renovação do seu passaporte ou para agir contra ele de mil maneiras diversas: estariam aqueles meninos afetados de demência senil ao ponto de esquecer que foi já nos EUA que perdi meus empregos no Globo e no Jornal do Brasil, restando somente o do Diário do Comércio para garantir minha permanência nos EUA com visto de jornalista? Ou padecem de falta de imaginação ao ponto de não conceber a insegurança, a total ausência de garantias em que vive aqui o residente estrangeiro sem um Green Card?

Se alguma comodidade e proteção decorrem do fato de eu residir tão longe do Brasil, é para meus difamadores, que podem dizer o que bem entendem sem precisar temer os processos judiciais que merecem, mas que, à distância em que me encontro, com os recursos de que disponho, não posso lhes mover.

Se não fosse isso, não teriam crescido como cresceram, em número, em arrogância e em virulência, precisamente à medida da distância em que me enxergavam, como hienas que rosnam de longe a um leão do qual não ousariam aproximar-se. Com efeito, até a data da minha partida do Brasil, o contingente dos meus difamadores era recrutado quase que inteiramente na esquerda estudantil (os professores, tantas vezes humilhados em debates, já haviam desistido de me atacar e adotado a regra do Milton Temer: “Do Olavo de Carvalho não se fala”). Desde maio de 2005, quando cheguei aos EUA, hostilidades longamente reprimidas nos círculos liberais, conservadores e católicos começaram a brotar por toda parte, cada vez mais mais abertas e descaradas, sobretudo depois que perdi minhas colunas no Globo e no JB, ficando meus meios de defesa restritos a uma publicação regional, embora respeitável. Encorajados pela situação propícia, indivíduos que antes me repugnavam pela hipocrisia e pela bajulação passaram a fazê-lo pela prática da calúnia e pela ostentação de falsa valentia à distância.

Eles sabem perfeitamente disso, de modo que, se me chamam de covarde, é por pura projeção da má consciência que, no íntimo, lhes revela serem eles os únicos covardes nesta história.

Todos esses jovens escrevem naquele estilo untuoso, cardinalício, pontificando muito sobre as “virtudes”, a “fé”, a “humildade”, o “coração contrito”, etc., e praticamente não deixando passar três linhas sem alguma saudação litúrgica, quase sempre em latim.

Em nenhum momento mostram a menor hesitação ou dúvida quanto à bondade intrínseca de suas intenções e atos, na qual confiam tanto que se diria ser esse o dogma central da sua religião, acima dos Dez Mandamentos ou pelo menos do Oitavo.

A distância entre suas auto-imagens e a realidade dos seus atos é tão vasta e intransponível, que se diria tratar-se de casos de dupla personalidade, nos quais a regra evangélica “não veja a tua sinistra o que faz a tua destra” se transmutou psicoticamente em “Não veja a tua consciência o que fazem tuas duas mãos.”

Não compreendo que tipo de formação religiosa recebem esses garotos nas instituições católicas que dizem freqüentar, mas certamente não é a que recebi dos padres carlistas na Igreja de Nossa Senhora da Paz, em São Paulo, onde fiz minha Primeira Comunhão. O que ali se ensinava, a respeito de julgamentos emitidos sobre o próximo, era, em versão simplificada, substancialmente o mesmo que constava do tratado clássico de Adolphe Tanquerey, Compêndio de Teologia Ascética e Mística, então a obra-padrão para o ensino da matéria nos seminários.

Embora esses meninos se alardeiem conservadores, de vez em quando puxando as orelhas de algum teólogo da Libertação, sua conduta não se assemelha em nada ao que se esperaria dos católicos de antigamente. Ela vai até além do modernismo, dissolvendo a fé católica numa pasta indigesta de preconceitos burgueses que tudo julgam pelas aparências superficiais e consideram a impolidez um pecado mais chocante que a difamação e a calúnia, sem notar que o Primeiro Mandamento implica necessariamente, como regra máxima da moral, o senso da hierarquia dos valores.

Não sei se a leitura do excerto de Tanquerey que transcrevo abaixo servirá de alguma coisa a corações tão empedrados nas suas certezas autolisonjeiras ao ponto de tomá-las como altas expressões da fé. Mas, se não servir a eles, servirá aos demais.

Excerto de Adolphe Tanquerey

1045. B) Não é menos necessário respeitar a reputação e honra do próximo.

a) Evitar-se-ão, pois, os juízos temerários sobre o próximo: condenar os nossos irmãos por simples aparências e por motivos mais ou menos fúteis, sem conhecer a fundo as suas intenções, é usurpar o direito de Deus, único juiz supremo dos vivos e dos mortos, é cometer injustiça para com o próximo, pois se condena sem ser ouvido, nem conhecidos os motivos secretos das suas acções, e as mais das vezes sofre o império de preconceitos ou de qualquer paixão. A justiça e a caridade exigem, ao contrário, que nos abstenhamos de julgar e interpretemos o mais favoravelmente possível as acções do próximo.

c) Com mor força de razão nos devemos abster de maledicência, que manifesta aos outros as faltas ou defeitos secretos do próximo. Sejam muito embora reais esses defeitos; mas, enquanto não são do domínio público, não temos direito de os revelar. Se o fazemos : l) contristamos o próximo que, ao ver-se atingido na sua reputação, sofre com isso tanto mais quanto mais aprecia a honra; 2) abatemo-lo na estima dos seus semelhantes ; 3) enfraquecemos a autoridade, o critério de que ele tem necessidade para gerir os seus negócios ou exercer legítima influência, e deste modo causamos muitas vezes prejuízos quase irreparáveis.

Nem se diga que aquele, cujas faltas se divulgam, já não tem direito à fama ; conserva-o, enquanto as faltas não são públicas; e, seja como for, não se deve perder de vista a palavra de Jesus Cristo : “Quem de vós estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra” (Jo. VIII:7). É de notar que os Santos são extremamente misericordiosos, e buscam todos os meios de salvaguardar a reputação de seus irmãos. Imitemo-los.

e) E deste modo mais seguros estaremos de evitar a calúnia que, por meio de imputações mentirosas, acusa o próximo de faltas que ele não cometeu. O que é seguramente injustiça, tanto mais grave quanto é certo que muitas vezes é inspirada pela maldade ou pela inveja. E que de males não acarreta! Demasiado bem acolhida, infelizmente, pela malícia, circula rapidamente de boca em boca, destrói a reputação e a autoridade daqueles que dela são vítimas, e por vezes lhes causa prejuízo considerável até mesmo nos negócios temporais.

É, pois, dever estrito reparar as maledicências e os calúnias. É difícil, sem dúvida, pois custa retra­tar-se, e, depois, a retratação, por sincera que seja, não faz mais que paliar a injustiça cometida : a mentira, ainda quando se desdiz, deixa muitas vezes vestígios indeléveis. Isso, porém, não é razão para não reparar a injustiça cometida ; é dever até aplicar-se a isso com tanto mais energia e constância quanto maior é o mal. Mas a dificuldade duma reparação deve-nos levar a abstermo-nos de tudo quanto de perto ou de longe nos pudesse fazer cair nesse grave defeito.

Eis o motivo por que as pessoas, que aspiram à perfeição, cultivam não somente a justiça, senão também a caridade que, fazendo-nos ver a Deus no próximo, nos leva a evitar solicitamente tudo quanto o possa contristar.

(Adolphe Tanquerey, Compêndio de Teologia Ascética e Mística, trad. João Ferreira Fontes, 4a. ed., Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1948.)

O erro organizado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de novembro de 2009

Há anos penso em escrever um livro com o título ou subtítulo de Logica Brasiliensis, recenseando os modelos de argumentação mais em voga nas discussões de mídia neste país e mostrando como são, quase que invariavelmente, puras confusões mentais que adquiriram credibilidade de argumentos pela repetição obsessiva e por nada mais.

Nada de parecido, é claro, com os sofismas da lógica clássica nem com os esquemas de argumentação erística, ou falsa dialética, que Arthur Schopenhauer enumerou em Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão. Para fazer uso desses dois tipos de ardis é preciso ter alguma destreza que só a freqüentação habitual dos clássicos pode conferir — uma condição que, na maior parte dos nossos opinadores públicos de hoje em dia, não se cumpre nem em sonhos, embora fosse comum entre muitos articulistas de quarenta ou cinqüenta anos atrás, autênticos escritores no sentido forte da palavra. Lendo um Álvaro Lins, um Júlio de Mesquita Filho, um Otto Maria Carpeaux, um Gustavo Corção, um José Guilherme Merquior, podia-se encontrar, ao lado de muitos arrazoados sólidos, um ou outro sofisma delicioso, quase inocente, fruto do puro ímpeto de criação literária que se sobrepunha por momentos ao desejo da verdade. Desmontá-los com toda a cortesia do mundo era um prazer que o crítico podia compartilhar até com o próprio autor do erro.

Hoje, não há mais nada disso. Quando algum dos mais notórios “formadores de opinião” atuais espreme seus últimos neurônios para dar ares de verossimilhança àquilo que sabe (ou deveria saber) que é falso, só o que consegue é deformar um pouco mais sua própria inteligência, junto com a do público, especialmente estudantil, que, levado pelo prestígio dessas criaturas, acaba por macaquear seus cacoetes mentais na esperança de dar boa impressão nos debates de botequim ou em alguma lista de discussões na internet. Agravados pela comichão de discutir, que é endêmica no ambiente nacional, a incapacidade e o desleixo, descendo dos mais vistosos modelos públicos até às conversas intergrupais e de família, vão espalhando pela sociedade novos padrões de confiabilidade intelectual aparente, cada vez mais baixos, cada vez mais torpes, até o ponto em que, no conjunto, se torna praticamente impossível entender qualquer coisa com base no que os brasileiros estão dizendo dela.

Pode parecer que estou carregando demais nas tintas, mas não esqueçam que venho coligindo exemplos de inépcia letrada desde os tempos do primeiro Imbecil Coletivo (1995). O mostruário de que hoje disponho permite não só apreciar o agravamento progressivo do estado de penúria intelectual reinante, mas também discernir, por trás da maçaroca de enormidades, algumas constantes mentais, alguns esquemas de pensamento errado e grosso que se repetem e, espontaneamente, se organizam numa espécie de sistema: o sistema das razões convencionais de credibilidade, todas elas sem credibilidade nenhuma, que se tornaram meios de prova altamente persuasivos e respeitáveis para a maioria dos brasileiros opinantes.

É a esse sistema que chamo logica brasiliensis. Ela constitui-se inteiramente de erros de leitura, distinção precária entre palavras e coisas, falta de senso das proporções, imprecisões monstruosas de vocabulário, confusões entre diferentes níveis de predicação, misturas de gêneros (e de gêneros com espécies), e demais calamidades da mesma ordem, as quais não denotam apenas ou propriamente falta de cultura e treino, mas falta daquele instinto lógico elementar que é próprio do ser humano enquanto tal e que até os mais iletrados possuem por natureza. Não se trata, pois, em geral, nem de desonestidade premeditada, nem de falha educacional, mas de uma autêntica deficiência mental, adquirida no processo mesmo de aquisição dos meios de expressão necessários ao ingresso nas classes ditas cultas.

É fenômeno caracteristicamente nacional. Não que similares erros de raciocínio não se observem na mídia estrangeira. É que em parte alguma eles são aceitos como meios de prova legítimos, nem muito menos desfrutam da respeitabilidade generalizada que, no Brasil, os eleva à categoria quase que de símbolos da autoridade intelectual. Por toda parte eles existem como anormalidades. No Brasil são normais e normativos, praticamente obrigatórios. Aquele que não os pratique com a naturalidade de quem respira e com a tranqüila certeza de que diz coisas sapientíssimas vê-se logo rejeitado como um excêntrico incompreensível ou mesmo como um tipo perigosamente anti-social. Isso basta para explicar que alguns dos melhores comentaristas políticos e culturais do país tenham sido banidos da “grande mídia” e só encontrem abrigo em sites da internet ou neste heróico Diário do Comércio. Muitas vezes o que os tornou indesejáveis em outros meios não foi nenhum preconceito ideológico: foi o mero desconforto que seus escritos espalham entre pessoas que desejariam ardentemente discuti-los mas só os conseguem entender pela metade.