Yearly archive for 2000

Ser e Conhecer – 4

UniverCidade, Rio de Janeiro, 14 de setembro de 2000

Aula gravada. Transcrição de Alexandre Bastos

A idéia que inspira esta série de aulas é da total redução da gnoseologia à ontologia. Trata-se de eliminar o preliminar crítico, a crença de que primeiro é necessário criar uma teoria do conhecimento para depois, com base nela, chegar, se possível, a uma ontologia.

Mas essa é apenas uma das idéias, a outra é eliminar a dualidade do racional e do intuitivo, reduzindo tudo ao intuitivo. Se tivesse tido a oportunidade de expor isso ordenadamente nestas aulas, em vez de abordar as partes do assunto um tanto a esmo e ao sabor da ocasião, como o fiz, eu partiria do rastreamento histórico das origens da questão do conhecimento no mundo moderno, da origem do primado do sujeito. Primeiro, mostraria como o subjetivismo de origem cartesiana está presente em todas as escolas, inclusive as mais antagônicas a qualquer idealismo, pois até escolas materialistas, como o marxismo, aceitam implicitamente a prioridade do sujeito: a diferença, no marximo, é que é um sujeito coletivo. Mostaria que todos esses três séculos decorridos desde Descartes estão contaminados com o primado do sujeito.

Tendo verificado em seguida a total inviabilidade do projeto cartesiano, também colocaríamos entre parênteses toda a questão da fenomenologia, que não é senão um meio de tentar realizar o projeto cartesiano com mais fundamento — o próprio Husserl, em seu livro Meditações Cartesianas, diz inspirar-se em Descartes, e declara que só quer aprofundar o cartesianismo até um nível a que o próprio Descartes não chegou. É claro que nesse empreendimento chega Husserl a várias conclusões que podemos aproveitar, mas eu gostaria até de saltar essa preliminar fenomenológica, se possível também neutralizando-a, pois ela ainda está dentro da idéia do “preliminar kantiano”, e a minha idéia é eliminar completamente os preliminares, mostrando que são projetos inviáveis. E, para isso, é necessário voltar ao já exposto na aula “O problema da verdade e a verdade do problema”: tantas vezes quantas seja formulada essa questão, tantas vezes sua investigação será bloqueada por contradições internas da formulação mesma. Então, é preciso retomar o próprio Descartes, e aí entra, propriamente, minha crítica do Descartes: a idéia mesma de colocar entre parenteses o objeto do conhecimento, e ficar só com o sujeito, também é impossível: há um curto-circuito desde o início, e chega a ser espantoso que ninguém tenha mexido nesse problema antes. Ora, sujeito e objeto são um modelo, uma distribuição de papéis, e ambos não são senão funções desempenhadas por determinados elementos, nenhum dos quais corresponde inteiramente à função respectiva: não é concebível nem o puro objeto nem o puro sujeito. Assim, segue-se que o que existem são situações onde um elemento desempenha tal papel, e o outro o outro papel — mas essa situação é que é o decisivo, pois tanto podemos chamá-la de conhecer como de existir, já que não há nenhum motivo para dizer que o aspecto cognitivo predomina sobre o aspecto existêncial, se existir é, simplesmente, transmitir e receber informações.

Historicamente, as primeiras análises do fenômeno do conhecimento atacaram diretamente o ato de conhecimento sem perguntar se esse ato não seria espécie de algum gênero. Na verdade, o conhecimento é espécie do gênero relação — é uma relação entre dois entes. Se isso tivesse sido levado em conta, teria resolvido muitas questões relativas ao problema do conhecimento: todas e quaisquer relações que existem entre quaisquer seres são transmissões de informações, não há uma sequer que seja outra coisa. Portanto, essa modalidade de relação chamada “conhecimento” é apenas uma modalidade, entre milhares de outras, de transmissão de informações (é claro que com suas características diferenciais específicas). Agora, se o próprio existir é transmitir e receber informações, então não existe um estudo do conhecimento que possa colocar o existir entre parênteses, caso contrário teríamos o caso de uma espécie que coloca entre parenteses o próprio gênero ao qual pertence. Assim, só é possível estudar o conhecimento como modalidade da relação, ou seja, como algo que acontece àquilo que existe; ou, dito de outro modo, estudá-lo como maneira de existir. Mas essa não é uma maneira qualquer entre outras, e sim a maneira essencial — não é concebível nenhuma, nenhuma forma de existência que não seja, em essência, recepção e transmissão de informações. O tempo todo algo é transmitido e algo é recebido: se bloquearmos toda a entrada ou saída de informações não teremos mais um ente existente, mas apenas o conceito abstrato de uma espécie. Podemos conceber, por exemplo, uma figura geométrica: Qual a modalidade de existência de uma figura geométrica? Ora, ela só existe idealmente como conceito de espécie: Que é um quadrado senão o conceito de quadrado? Ele não é outra coisa senão seu próprio conceito, ele possui mera existência ideal e lógica, existe como possibilidade de relação matemática e só. Ou seja, não existe de maneira alguma: ele faz parte do possível, não do real. Isso não quer dizer que uma figura geométrica não transmita informação; mas ela transmite sempre a mesma, a informação essencial. Que é que o quadrado nos transmite senão o conceito de quadrado? É essa a definição do inexistir real: o que existe apenas como possibilidade lógica transmite uma única informação, que diz que o ente é aquilo que ele é. Quando lidamos com pura definições, no reino puramente lógico, os entes não têm senão existência puramente lógica, e não nos passam outra informação senão o conteúdo de seu próprio conceito. Mas existir realmente é transmitir algo mais que seu próprio conceito: é transmitir propriedades, acidentes etc. E por isso mesmo essa dimensão acidental passa a ser essencial para a existência. Aí temos a idéia, esboçada no meu livreto sobre Aristóteles, do acidente metafisicamente necessário. Algumas aspectos das coisas são acidentais, mas, sem eles, esses entes não poderiam existir. Esses acidentes, portanto, só são acidentais do ponto de vista lógico: para a existência, são essenciais. A estatura do homem é acidental, perfeitamente, mas não é acidental, para a existência, que ele tenha estatura, pois não pode haver um homem sem uma precisa estatura.

Portanto, com esse enfoque, todos os problemas metafísicos e gnoseológicos acabam por tomar outra face, mediante essa simples observação de que as questões fundamentais levantadas sobre esses assuntos não são abordadas e de que, sem elas, todas as teorias do conhecimento são projetos simplesmente inviáveis. Todos são assim, todos prometeram o que não podem fazer: o projeto cartesiano da fundamentação do conhecimento objetivo a partir do sujeito não vai dar em nada; o projeto kantiano da crítica da razão tampouco: o que se cria é um curto-circuito que não permite fazer progredir o conhecimento. Como conseqüência, como não há progresso, não há possibilidade de acumulação de conhecimentos, essa impossibilidade passou a ser vista, por filósofos da tradição kantiana, como um dos traços essenciais da filosofia. Eu mesmo já vi introduções à filosofia que diziam o seguinte: existem conhecimentos que progridem, como a ciência, e outros que não progridem, como a filosofia. É o caso de dizer que filosofia não é conhecimento de maneira alguma, como dizia Jean Piaget: filosofia, para ele, não é conhecimento, é uma coordenação de valores. Mas, como se pode coordenar algum conhecimento se a própria regra coordenante não é conhecimento? É o mesmo que ter uma regra do jogo sem nenhum conhecimento do jogo. Ora, se a filosofia não é conhecimento ela não é absolutamente nada. Wittgenstein dizia: filosofia não é conhecimento, mas uma atividade. Certo, mas atividade de quê? De conhecer, naturalmente. Isso tudo são subterfúgios: ou a filosofia é uma ciência, ou não é nada. E se é uma ciência, tem de ser possível colocar as questões, investigá-las e chegar a alguma solução. Mas desde Descartes e Kant todas as questões filosóficas não têm mais solução — todo o ciclo moderno é abortado pela sucessiva formulação de projetos impossíveis. Que é o projeto de Nietzche? É a transvaloração de todos os valores. Eu digo: pode parar, isso não é possível, pois, se você derrubar todos os valores, no fim sobra você, e você passa a ser o valor. Mas você não tem mais fundamento do que os valores que derrubou, você também é apenas fingimento e auto-engano, você é um pobretão sofredor que se faz de Anticristo para se consolar da sua miséria. Então, tudo começa com uma proposta muito arrojada e termina mal: é assim com o projeto cartesiano, com o kantiano, com o marxista, com o de Nietzche. O projeto de Wittgenstein, por exemplo, termina mal duas vezes: o primeiro projeto, o da linguagem absolutamente desprovida de ambiguidades, desprovida de qualquer elemento intuitivo, não dá em nada e então Wittgenstein passa para o segundo projeto, o da crítica da linguagem comum. Ora, só há uma forma de fazer a crítica da linguagem: a partir de algo que não é linguagem, como os dados dos sentidos, por exemplo. Ora, não é possível uma linguagem absolutamente coerente, em todos os passos, pois, se assim o fosse, dispensaria os fatos: ou seja, seria totalmente coerente na medida em que não falasse de coisa nenhuma. E de fato é aí onde chega Wittgenstein: por um lado temos uma linguagem totalmente coerente e formalizada, mas sem conteúdo algum; por outro lado há um conteúdo anárquico, atomístico, sem qualquer elo interior, que ele chama de “fatos”. É claro que isso é um projeto abortado.

No fundo toda essa aparente modéstia metodológica da filosofia moderna — todas começam com autocríticas da capa

humana — termina numa pretensão desmedida: pois seus projetos ultrapassam a capacidade humana.  Mais ainda: todos esses projetos não se justificam. Por que fazer a crítica da razão pura? Por que fundamentar o conhecimento no sujeito? Por que transvalorar todos os valores? Por que transformar o mundo em vez de tentar conhecê-lo. Não há razão suficiente para nada disso.

Quando digo que determinados projetos filosóficos são inviáveis, é porque levantam perguntas sem sentido. Por exemplo, fundamentar o conhecimento objetivo a partir do sujeito considerado isoladamente é uma impossibilidade: se alegam ter abstraído todas as coisas, e ter apenas sobrado o sujeito, como produzir o objeto a partir do sujeito? Descartes vai buscar um mediador em Deus, mas, se é necessário apelar a Deus, é porque é necessário um milagre: a filosofia de Descartes é tão inviável que, para realizá-la, é preciso um milagre.

Esses projetos filosóficos são todos abortivos por sua excessiva pretensão. O filósofo cai nessa pretensão ao tentar achar o fundamento absoluto de um objeto cuja presença ele suprime na mesma hora. Qual a possibilidade de conhecer um objeto que não está lá? Nesse sentido, toda a filosofia moderna é louca, a começar por Descartes. Ela cai na famosa definição de Borges: metafísica é um cego, num quarto escuro, procurando um gato preto… que não está lá.

Vejam que mesmo o projeto de Popper é inviável: ao dizer que as teorias ciêntificas válidas são aquelas que ainda não foram impugnadas, ele concede a toda teoria científica uma espécie de licença para o erro infinito. Se não temos um método positivo de afirmação da verdade, então não há nenhuma possibilidade de, de antemão, impugnar outras possibilidades de contestação que possam surgir. Assim, qualquer teoria está aberta a uma crítica infinita, e entramos no reino da total insegurança, onde conhecer e não-conhecer passam a ser a mesma coisa. Assim, pelo método popperiano, caímos no total irracionalismo, no convencionalismo científico, onde o único recurso que nos sobre é o apelo à autoridade científica  — “tem de ser assim porque o consenso diz que é”. Também é evidente que, não havendo confirmação positiva da verdade, é puro eufemismo dizer que na passagem de uma teoria impugnada a outra ainda não impugnada há um “progresso”. Não existe “progresso” ao longo de uma linha infinita, onde a idéia mesma de movimento é anulada por hipótese. Ou há um padrão de perfeição, ainda que meramente ideal, ou então é impossível distinguir processo, retrocesso e estagnação.

Mas, existe algo em comum entre todos esses projetos, que os condene à inviabilidade desde o começo? Existe, sim: é a proposta de que o projeto filosófico tenha de engolir o mundo, e não ser apenas uma parte dele: no fundo o que todos querem é encontrar a fundamentação filosófica do mundo, mas se a primeira coisa que fazem é suprimir o mundo, como será possível fundamentá-lo? É possível, certamente, fundamentar o mundo, mas para isso, em primeiro lugar, é preciso aceitar o mundo. É preciso reconhecer que a filosofia é apenas uma das muitas coisas que o homem faz no mundo, que a filosofia é uma resposta a uma situação que já está dada, e que ela só responde às perguntas que foram colocadas naquele momento e naquele lugar. Ou seja, ela pode remeter a uma ordem de conhecimentos e princípios universais, mas nunca vai expressar aqueles princípios na totalidade  — a função da filosofia não pode ser essa. Isso não quer dizer, no entanto, que a filosofia tenha de se contentar com o parcial e fragmentário. Quer dizer apenas que ela tem de ter a consciência de participar do todo em vez da pretensão de “abarcã-lo”. A consciência de participação é uma forma de conhecimento tão exata quanto a utópica visão desde fora, com a vantagem de ser viável. Se a função da filosofia é uma função reflexiva e crítica, de certo modo, o trabalho dela é remeter a certos princípios que já são conhecidos por participação: podem ser difíceis de exprimir, podem variar na expressão de tempos em tempos, mas a filosofia não tem de se preocupar com dar-lhes uma formulação uniforme e universalmente aceita precisamente porque o trabalho dela não é abarcá-los dentro de si, mas lembrá-los, tornar possível a sua reconquista na consciência de homens reais que em seguida terão todo o direito de os formular como desejem. A filosofia é uma correção de trajeto: ela não vai traçar o trajeto, pois este já está dado: esse trajeto é o mundo. Quando a mente humana começa a fantasias muito, e sair da realidade, a escapar da consciência viva dos princípios, a filosofia corrigem a rota, e isto é tudo. A filosofia não visa a dizer qual o sistema do mundo, pois o sistema do mundo já existe e está no próprio mundo. Se não partirmos disso, nunca iremos encontrá-lo: o mundo é sistema, e o código do sistema está no próprio mundo. Nós, como participantes dessa realidade, temos esse código em nós, e o conhecemos na medida do papel que nesse todo desempenhamos: não mais que isso. Assim,  todos os códigos que compõem uma tartaruga estão na tartaruga, senão ela não poderia ser tartaruga. Todos os códigos que compõem cada ente estão refletidos em todos os demais entes, mas refletidos de maneira inversa:  por exemplo, na tartaruga estão refletidos todos os códigos que a diferenciam de um gato — se faltar um só, a tartaruga estará imperfeita, será indistinta de um gato. Se tomarmos dois entes, todas as diferenças que os separam estão registradas nos dois — não podem estar registradas num só –, mas de maneiras diferentes e multiplamente complementares. Então, o sistema do mundo está refletido no mundo e em nós também: de maneira direita na nossa constituição enquanto homens, de maneira indireta na nossa diferença em relação a todos os demais homens e a todos os demais seres e coisas, inclusive o todo universal. Essa lei imanente, que tem de existir absolutamente, é o que chamamos sabedoria. É a sabedoria que está no próprio ser, na realidade mesma, e que pode estar presente também no homem segundo uma modalidade especificamente humana. E o que é filosofia? É o amor à sabedoria. É a reconquista de um conhecimento desse sistema universal, que está dado o tempo todo, e que conhecemos reduzidamente mas suficientemente. Então, é um conhecer que é um ser. O ser humano tem em si todas as determinações que o fazem humano, que o fazem ser fulano ou ciclano individualmente e que o fazem existir, ser real num universo real. Não é possível que ele abarque em toda sua mente subjetiva todos elementos dessa constituição, pois, se abarcasse, não abarcaria não só conceitualmente mas existencialmente: seria necessário produzir um novo homem que contivesse o primeiro, o que não é possível.  Portanto aquilo que você tem em você como ser, quando rebate no plano do seu conhecer subjetivo, rebate de maneira reduzida. Mas, em compensação, você conhece a constituição de muitos outros seres. Esse conhecimento, não é necessário registrá-lo porque o próprio real é o registro deles, e essa realidade, de certo modo, não é opaca, é translúcida: você pode sempre voltar à leitura dos mesmos registros. Não é necessário saber tudo, pois o universo sabe tudo e ele está permanentemente à nossa disposição. Ele é a nossa memória, a nossa biblioteca, o nosso saber. Ele, e não o nosso cérebro. E qual o papel da filosofia? É restaurar no ser humano a confiança e a capacidade da leitura dos registros no ser: no momento em que o ser deixa de ser opaco para alguém, está cumprida ali a função da filosofia. Agora, é necessário fazer a transcrição do ser? Ora, se é transcrição é parcial, ela não é o próprio ser. E é feita apenas para responder apenas às perguntas determinadas que alguém fez. Assim, a função da filosofia não é fazer a doutrina universal, mas remeter-nos à própria realidade, que já é a sua própria doutrina, a doutrina do ser que transluz no corpo do próprio ser. A função da filosofia é corretiva e, por isso, a maior parte da atividade filosófica é reflexiva e crítica. Nesse sentido é que não acredito em “progresso infinito do conhecimento”, mas sim em conhecimento infinito. O ser que se dá a conhecer é infinito e se dá a conhecer infinitamente. O real é infinito, é inteligível, e é inteligível infinitamente: no momento em que compreendemos isso, estamos curados: terminou a missão da filosofia, e, então começa a sabedoria: Que é sabedoria? É o conhecimento, e, se o é, não pode ser uma doutrina, mas a própria modalidade da nossa existência. Onde está a sabedoria? Está no homem sábio, não no que ele disse, pois o que ele disse pode não ser compreensível para todos. Há sabedoria nos provérbios de Salomão? Sim, mas apenas se a compreendermos, caso contrário não há nenhuma: o que há, isso sim, é o testemunho da sabedoria. E onde está a sabedoria de Salomão? Está em Salomão, e, se a compreendermos, ela já não será mais sabedoria de Salomão, e sim nossa. Daí podemos entender que a finalidade da filosofia é fazer sábios: é despertar a possibilidade da sabedoria, que não é senão a inteligibilidade direta do real. Existem obstáculos para atingi-la: obstáculos de ordem moral, fisiológica, cultural. Esses últimos obstáculos, criados pela própria atividade de busca do conhecimento, são os que a filosofia pode remover.  Por isso, se a sociedade não chegar ao ponto de criar confusão na esfera cultural, não há necessidade de filosofia.

Não se pode transmitir a sabedoria porque a sabedoria é o real, não o que pensamos ou dizemos a respeito dele. Caímos hoje numa série de ambiguidades por estarmos acostumados a entender sabedoria como conteúdo de consciência, não como algo que está no ser, no real. Onde está a ciência da mineralogia? Está nos livros de mineralogia? Não: ela está nos minerais. Se assim não fosse, ela não poderia estar também nos livros de mineralogia. Os livros são apenas registros que criam um intermediário humano entre nós e o mineral, de modo que não é necessário recapitular todas as observações anteriores para chegarmos até o mineral. Se ao estudarmos um tratado de mineralogia conhecermos apenas o que nele está escrito, sem referência aos minerais enquanto coisas reais, então não sabemos nada.

O real propriamente dito é registro infinito de conhecimento, essencialmente translucidez, acidentemente obscuridade, pelo jogo dos reflexos devido a uma ocasional posição impropícia que assumimos para enfocá-lo – aí é necessário mudar de posição. Ora, mas se tomarmos todas as possíveis dificuldades de foco, e, com elas, tentarmos formar um sistema, formaremos o mundo das sombras, o sistema da ignorância. É a isso que a filosofia acadêmica francesa tem se dedicado nos últimos trinta anos. Ora, é necessário eliminar essa idéia de que conhecimento só existe na mente humana, e entendermos que conhecimento é uma relação ativa existente entre o ente e o restante do real, o qual é conhecimento, ainda que sob a forma potencial. Tome a própria idéia de observação: para entender a vida dos tigres, nós os observamos. Ora, se nenhum conhecimento sobre tigres transparecesse na conduta dos tigres, de que adiantaria observá-los? Se o conhecimento existisse apenas na mente humana, ao observarmos o tigre não conheceríamos o tigre, mas apenas a nós mesmos, a nossos pensamentos — e cairíamos no curto-circuito kantiano: estamos observando apenas fenômenos que não são senão projetados por nossa forma cognitiva, portanto não estamos vendo um tigre, mas estamos vendo a nós mesmos e chamando de tigres os nossos esquemas lógicos e formas de percepção. Muito bem, mas aí o tigre come o filósofo kantiano, e que é que havemos de dizer? Que foram as formas a priori que comeram? Ora, o tigre que nos ataca é o mesmo que antes conhecíamos; ou seja, o objeto que conhecemos é o mesmo com que nos relacionamos fisicamente e praticamente.

Conhecimento e ato de conhecer são certamente distintos. O real é registro infinto de conhecimentos. Existe, entretanto, o ato de conhecimento, que apenas ocorre nos atos individuais concretos. E mesmo assim, quando estes ocorrem, ocorre duplamente, não apenas no sujeito: os escolásticos dizem que ao conhecermos algo, esse objeto não é alterado pelo fato de nós o conhecermos. Mas isso não é totalmente exato: aquilo que conhecemos está transmitindo informação a seu respeito naquele mesmo momento, e ser conhecido por um outro é alterar-se, sim. Não é alterar-se internamente, mas alterar sua relação com o mundo em torno.

Imagine o primeiro homem que descobriu o diamante. Naquele mesmo instante não apenas o homem transformou-se, mas também transformou a relação do diamante com o homem, ou seja, daí por diante tudo foi diferente não só para os homens mas também para os diamantes. Tornar-se conhecido é ser alterado, não internamente, é claro, mas relacionalmente. Foi porque os diamantes se tornaram conhecido que os homens começaram a escavar para procurar diamantes. No mínimo, cada coisa conhecida abre uma nova possibilidade de ação sobre ela: a partir daquele momento, ela pode sofrer um tipo de ação que antes não podia. Dizer que o objeto não foi alterado em nada é o mesmo que dizer que, para o objeto, ser conhecido ou não ser é o mesmo: ora, mas não me é possível comer um frango se nunca o conheci. Ser conhecido abre, para o objeto, a possibilidade de uma nova paixão, de sofre um novo tipo de ação –- isso muda o destino dele, o lugar dele na ordem cósmica. É uma mudança objetiva.

Se entendermos que o real é registro de conhecimento, poderemos compreender o porquê do símbolismo do “grande livro da natureza”: o que é ele senão o símbolo da inteligibilidade do real? E o homem tem, dentre os seres do mundo físico, o privilégio de poder conhecer teoricamente todas as relações entre todos os seres que estejam a seu alcance. Isto é, o homem é o local onde esta inteligibilidade da natureza se realiza sob a forma de linguagem, mas não podemos esquecer que esta é apenas uma relação entre milhares de outras possíveis.

Por isso a filosofia tem sempre de ser sistêmica, tem de ter um centro e não pode ser arbitrária, mas não pode ser “sistemática”. Sistêmico é aquilo que tem um centro e se desenvolve de forma mais ou menos orgânica a partir desse centro, sistemático é aquilo que procura conscientemente abranger e conter nos seus próprios limites o todo. É perda de tempo tentar uma filosofia sistemática: é o mesmo que tentar recriar o universo. Mas ela tem de ser sistêmica no sentido em que se refere ao sistema do universo, não perde de vista a sistematicidade do próprio real. Ela não é um amontoado de observações anárquicas, mas tampouco se constitui da construção sistemática de um todo abrangente. Quando desenhamos uma árvore, tentamos desenhá-la de todos os ângulos possíveis? Não, o que tentamos fazer é um retrato parcial referido ao todo e ao sistema, um retrato parcial que esboce, signifique ou aponte para essa totalidade — quanto mais simples for o desenho e quanto mais claramente apontar para o centro do sistema, melhor. Então, a finalidade da filosofia é devolver o indivíduo a esta posição de observador central, na qual o conteúdo sapiencial da própria realidade se mostra para ele. E quando ela se mostra? Quando ele quer: o universo responde quando perguntamos. Se for possível recuperar essa posição, está realizada a função da filosofia. Aí começa a sabedoria propriamente dita.

90 anos em 9 segundos

 Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 14 de setembro de 2000

“No início da era cristã, a filosofia adormeceu. Seus cochilos acabaram por produzir o sonho filosófico conhecido como escolástica, que tinha por base Aristóteles e os ensinamentos da Igreja. A filosofia foi rudemente despertada desses devaneios medievais no século 17 pela chegada de Descartes, com sua declaração `Cogito, ergo sum’ (Penso, logo existo). Uma era de esclarecimento havia começado: o conhecimento baseava-se na razão.”

(Paul Strathern, Nietzsche em 90 minutos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997.)

O livro que traz essa afirmação, escrito para jovens, é hoje abundantemente distribuído entre estudantes do ensino médio. Quem quer que ingresse no estudo da filosofia por meio dele levará consigo, provavelmente pelo resto da vida útil do seu intelecto, um escotoma, um ponto cego bem no meio do seu horizonte de visão. Nada tem mais força hipnótica sobre as mentes juvenis do que um tacanho preconceito revestido da aura de uma verdade libertária. Uma vez introjetado o esquema do sr. Strathern, o cérebro do leitor já não poderá ser reconduzido à normalidade nem mesmo pela improvável leitura direta dos textos aludidos – porque os textos escolásticos estarão acima da capacidade de quem aprendeu filosofia com o sr. Strathern e os de Descartes serão lidos na linha sugerida pelo sr. Strathern.

Na realidade, o que ele diz é o contrário do que se encontra nos textos. Nas célebres Meditações de Filosofia Primeira, René Descartes, em busca da certeza absoluta, fundamento de todas as ciências, encontra como primeiro e inabalável ponto de apoio a certeza do próprio pensamento. Se penso, existo, ao menos enquanto penso. Não posso pensar e, ao mesmo tempo, negar que existo. Tal é a descoberta que ele enuncia no “Cogito ergo sum”. Só que, em seguida, ele percebe que dessa certeza puramente subjetiva ele não pode deduzir nada sobre o mundo exterior, nem mesmo a existência de um universo físico em torno. Preso na sua jaula solipsista, Descartes constata que, para sair dela, precisa de uma segunda certeza: a certeza do mundo físico. E onde ele vai buscá-la? Vai buscá-la no seguinte argumento: se tenho em mim o sentimento da existência do mundo exterior e se este sentimento não pode ser deduzido de mim mesmo, isto é, da certeza inicial do “cogito”, então só pode ter sido posto na minha alma pelo próprio Deus; e, como Deus é bom, não iria me enganar infundindo-me a certeza de coisas erradas. Logo, fica provado que o mundo exterior existe.

Compreenderam bem? Numa só penada, o devoto milico aposentado, que acabara de fazer uma peregrinação à Igreja de Nossa Senhora de Loreto para pedir inspiração, faz, não da razão, mas da fé cega na bondade de Deus, a base da certeza do mundo exterior, o princípio de todo conhecimento objetivo, o fundamento das ciências da natureza. É um monumental exagero de carolice a que nem o mais piedoso dos escolásticos jamais ousaria chegar, de vez que todos estavam advertidos, pelo menos desde Boécio (século 6) da necessidade de depurar a fé no cadinho da razão.

Por isso mesmo, F. W. von Schelling, um dos gigantes da modernidade, sobre o qual aliás não poderia pesar a menor suspeita de ser católico, dizia que, na passagem da escolástica ao cartesianismo, a filosofia tinha caído para um nível pueril. Leibniz, de maneira mais delicada, afirmava a mesma coisa, e também Husserl, entre homenagens de praxe a René Descartes, deixava claro não compactuar com o que chamava, pejorativamente, “exercícios de cinegética antiescolástica”.

Está claro que o sr. Strathern, seja ele quem for, jamais leu Descartes. Seu Descartes não é o filósofo de carne e osso, autor do Discurso do Método e das Meditações. É uma imagem popular, colhida na cultura de almanaque e reproduzida em milhões de almanaques para a imbecilização geral dos jovens.

Para metê-la no miolo mole de um ginasiano distraído, não é preciso nem os 90 minutos mencionados no título: sua ação cretinizante é instantânea, seu efeito, duradouro. Em nove segundos o leitor terá a garantia de, pelos 90 anos seguintes, não compreender nem René Descartes, nem a escolástica, nem, a rigor, coisa nenhuma.

No entanto, não é somente pela sua facilidade de absorção que o ensinamento do sr. Strathern será bem recebido. É também porque coincide, no tom geral, com o discurso anticatólico cuja repetição psitacídea é a condição inicial para, nas classes falantes, um sujeito ser admitido como espírito esclarecido.

E é assim que, de esclarecimento em esclarecimento, com a ajuda de solícitas professorinhas e devotados jornalistas culturais, a burrice, cada vez mais, rege o mundo.

Origens do comunismo chique

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 10 de setembro de 2000

Já na década de 20, Stalin, julgando com razão que seria muito difícil controlar uma revolução do outro lado do Atlântico, decidiu que o Partido Comunista dos EUA não devia ser organizado com vistas à tomada do poder, mas à sustentação financeira e publicitária do comunismo europeu. Por isso o comunismo americano sempre se dedicou menos à organização do proletariado do que à arregimentação de milionários, artistas de Hollywood e intelectuais de renome. Para o embelezamento da imagem comunista, era importante que esses “companheiros de viagem” não se tornassem membros do Partido, mas conservassem sua figura de personalidades independentes, de modo que suas manifestações de apoio, acionadas nos momentos propícios, parecessem iniciativas pessoais e livres, ditadas pela coincidência inocente e espontânea entre os objetivos comunistas e os altos ideais de uma humanidade apolítica.

O sucesso do novo estilo, que contrastava com a imagem tradicional de austeridade proletária, fez com que fosse adotado também na Europa Ocidental, marcando toda uma época. Mais que uma época: o “glamour” do comunismo chique perpetuou um modelo pelo qual ainda se recorta o figurino da intelectualidade mundana em Nova York, invejado e imitado pela macacada letrada do Terceiro Mundo: vão a uma exposição de Sebastião Salgado e saberão do que estou falando.

Pessoas que ignoram esses fatos têm uma resistência obstinada a acreditar que efeitos tão vastos possam ter sido planejados por uma elite discreta, quase secreta. Preferem apegar-se à crença tola de que tudo acontece espontaneamente – crença que repousa na hipótese de um fluido metafísico em vez da ação concreta de homens atentos e espertos sobre homens distraídos e tolos. Mas a propagação espontânea tem, sim, algum papel. Os técnicos do Comintern, contando com a facilidade com que modas e cacoetes se espalham entre intelectuais mundanos, usavam calculadamente esse efeito e o denominavam “criação de coelhos”.

A própria elite às vezes tem simplesmente sorte. Ninguém poderia prever que o estilo do comunismo norte-americano iria sobreviver à queda de prestígio do regime soviético, perpetuando-se sob a forma da “New Left”, que nos anos 60 pôde continuar trabalhando pelo totalitarismo sem que sua bela imagem de independência fosse contaminada pelo que se passava na URSS. Mas às vezes também dá azar. Os dois principais responsáveis pela criação do comunismo chique, Karl Radek e Willi Münzenberg, terminaram mortos por ordem de Stalin, tão logo o sucesso mesmo da operação os tornou inúteis. A idéia inicial fora concebida por Radek, um dos pioneiros da Revolução Russa, e realizada sob a direção de Münzenberg, um gênio da propaganda.

Para vocês fazerem uma idéia da eficiência diabólica de Münzenberg, basta mencionar que foi ele o criador do mito Sacco e Vanzetti. Décadas depois do julgamento, demonstrada mil vezes a culpa de um e a cumplicidade de outro no assassinato de um homem desarmado que implorava por piedade, desmascarada a trama publicitária pelas confissões de membros da equipe de Münzenberg, o que ainda resta na imaginação popular é a lenda dos operários inocentes sacrificados por uma sórdida trama capitalista.

“Expert” em farsas duráveis, Münzenberg foi ainda o inventor de outros instrumentos típicos da propaganda comunista que de tempos em tempos são novamente retirados da cartola e sempre funcionam, como o “manifesto de intelectuais”, a passeata de celebridades e, “last not least”, os julgamentos simulados, eleições simuladas, plebiscitos simulados. A CNBB, portanto, tem por quem puxar. O estilo é o homem.

Münzenberg foi também o criador daquilo a que chamava “política da retidão”. É um elemento fundamental do comunismo chique: consiste em não bater de frente na sociedade democrática, mas em parasitar o prestígio de seus ideais morais, fazendo com que “companheiros de viagem” criteriosamente selecionados posem como seus mais representativos porta-vozes. Assim o apelo a esses ideais pode ser modulado e dirigido conforme os interesses de uma estratégia que sutilmente, e como quem não quer nada, vai levando a sociedade cada vez mais longe deles e mais perto da revolução comunista. Nossas campanhas da “ética” e “contra a miséria” foram apenas a aplicação dessa técnica: nem elevaram o padrão moral da nação nem diminuíram a pobreza, mas criaram a atmosfera na qual, hoje, o treinamento de guerrilheiros é financiado por verbas do governo sem que isto suscite o menor escândalo. O espírito de Willi Münzenberg continua baixando no terreiro político brasileiro.

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