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O maior dos genocídios

Olavo de Carvalho

O Globo, 9 de setembro de 2000

Quando escrevi — na revista Época — que no Brasil o grupo mais discriminado eram os cristãos, nada disse sobre as perseguições que sofriam em escala mundial. Digo agora: nenhuma comunidade humana ofereceu mais vítimas à sanha assassina dos totalitários do que a Igreja cristã. Só na Ucrânia os mortos na perseguição religiosa chegaram a 4 milhões. É impossível um calculo global exato, mas, entre as revoluções francesa, russa, mexicana, espanhola, chinesa e cubana, o número de cristãos que pereceram nas mãos do regime que professou, nas palavras de Lênin, “extirpar o cristianismo da face da Terra”, não foi inferior a 15 milhões.

Se isso não foi o mais vasto genocídio da História, a aritmética elementar foi revogada.

A maioria dessas vítimas eram ortodoxos, mas a Igreja de Roma não saiu ilesa: em “Catholic Martyrs of the Twentieth Century: A Comprehensive World History” (New York, Crossroad Publishing, 2000), o historiador Robert Royal mostra que pelo menos um milhão de católicos foram sacrificados no altar do comunismo.

Esse fato só é ignorado do público graças à omissão proposital da hierarquia romana e dos intelectuais católicos. Estes são hoje um dos esteios da revolução comunista que, partindo da Colômbia, ameaça alastrar-se por toda a América Latina. Mas não se pode dizer que sua escolha seja individual e extra-oficial. Em 1962, na cidade francesa de Metz, emissários do Vaticano e do governo de Moscou assinaram um acordo secreto pelo qual a Igreja se comprometia a não fazer, durante o Concílio Vaticano II, nenhuma condenação ao comunismo. O pacto, inicialmente desmentido pelas autoridades vaticanas, foi revelado pelo arcebispo de Metz e depois confirmado por “La France Nouvelle”, boletim do Partido Comunista Francês, pelo diário católico “La Croix” e pelo próprio cardeal Tisserant, encarregado pela Igreja de assinar o documento e zelar pela sua aplicação.

Daí por diante, todas as acomodações e cumplicidades com os assassinos de cristãos tinham, por assim dizer, a chancela conciliar. Mesmo a CNBB, entidade dedicada à glamurização beata do comunismo, não pode ser acusada de desobediência.

Por isso é que, mais exatas ou menos exatas, as acusações ciclicamente repetidas de que o Vaticano foi omisso ante as perseguições de judeus não me espantam: por que é que o pastor há de proteger as ovelhas do vizinho, quando com tanta solicitude entrega ao lobo as suas próprias?

Os judeus, ao organizar-se mundialmente para preservar a memória de seus mortos, fizeram algo mais do que agir na defesa de seu próprio direito: agiram no interesse da espécie humana, fazendo da insistente rememoração dos horrores da II Guerra um baluarte contra a revivescência do totalitarismo nazista. Cumpriram seu dever para com todos nós que, nascidos depois do Holocausto, poderíamos ter-nos deixado enganar pelas promessas de novos tiranos salvadores se a memória de seus feitos hediondos tivesse se apagado com o tempo em vez de nos ferir os olhos e alertar o coração a cada vez que nos chegam novos e novos documentos sobre esses fatos.

Contra o comunismo os judeus também não se calaram. Devemos a autores judeus algumas das primeiras e mais dramáticas revelações dos horrores por trás da Cortina de Ferro. Arthur Koestler, ex-agente do Comintern, tornou-se objeto de ódio mundial dos comunistas ao descrever a técnica da destruição psicológica dos acusados nos Processos de Moscou. Menahem Begin deu-nos o conhecimento do que se passava nos campos de concentração soviéticos na época em que Stalin brilhava nas telas do Ocidente como a melhor alternativa a Hitler.

E não pensem que, ao revelar essas coisas, eles tentem poupar os membros da sua própria comunidade envolvidos em cumplicidade com o comunismo. Ainda recentemente, os editores dos escritos do rabino Itzhak Schneerson, o grande líder espiritual preso, torturado e exilado pelos comunistas, não hesitaram em denunciar que entre os mais ferozes repressores do judaísmo na Rússia estavam os membros da famigerada Seção Judaica do Partido Comunista, que se prevaleciam de suas ligações de língua e parentesco para servir de espiões e desmantelar a comunidade judaica por dentro.

Por que os católicos não têm idêntica coragem de cortar na própria carne para expelir do seu meio os devotos de São Guevara? Será que estes se tornaram maioria entre os fiéis, como já o são na CNBB?

Mas o exemplo de coragem não vem só dos judeus. Vem também dos protestantes, como o pastor Richard Wurmbrand. Este notável homem espiritual romeno teve destino análogo ao do rabino Schneerson: 16 anos de cárcere, incontáveis torturas depois confirmadas por uma comissão médica da ONU. Espantado com a ênfase mais anti-religiosa do que anticapitalista da propaganda comunista na prisão, ao ver-se livre ele se dedicou a pesquisas históricas que resultaram na descoberta de que Karl Marx nem sempre fora um adepto do materialismo, mas andara metido num culto satanista e, segundo depoimento de sua empregada e amante Helene Demuth, fazia estranhos ritos dentro de casa. Publicados estes achados em “Marx and Satan” (Bartlesville, Oklahoma, The Voice of the Martyrs, 1986), o livro tornou-se um sucesso de distribuição clandestina nos países comunistas, ao mesmo tempo que, no Ocidente, os intelectuais de esquerda, inclusive católicos, faziam o possível para abafar sua difusão e a discussão séria de suas revelações.

De que adianta proclamar que o catolicismo tem o monopólio da salvação, se tantos e tão ilustres são entre os católicos os que servem ao império da danação?

Paradoxo estatal

Olavo de Carvalho

Época, 9 de setembro de 2000

Se a universidade forma a classe dominante, por que produz tão poucos empresários?

Se você perguntar a um marxista o que é universidade, ele lhe dirá que é a máquina de autoperpetuação da ideologia da classe dominante; a engenhoca de fazer com que os filhos de capitalistas pensem como capitalistas.

Praticamente todos os membros mais falantes da nossa classe falante acreditam nisso.

O que eu queria era que um deles estivesse na minha pele, terça-feira passada, no Forum Universidade-Empresa promovido na PUC gaúcha pelo Instituto de Estudos Empresariais. Pois a questão que ali me foi proposta mostrou como esse sentencioso lugar-comum é apenas uma bolha de sabão, que não resiste a um sopro.

A questão foi: Por que a universidade brasileira não forma pessoas com mentalidade de empresários, e sim de empregados? A premissa da pergunta é um fato notório: os recém-formados se queixam sempre de falta de vagas no mercado de trabalho, nunca de dificuldades para iniciar seus próprios negócios. Trazem com o diploma a expectativa de arranjar emprego, não de assumir a responsabilidade pessoal de criar empregos para quem não tem diploma. Gerar riqueza e oportunidades é obrigação do Estado: não deles. Bela classe capitalista!

Respondi o seguinte: as idéias que fizeram a cabeça das nossas elites foram sempre autoritárias, coletivistas e uniformizantes — o jesuitismo ou ideologia da Contra-Reforma; o positivismo ou ideologia do Estado científico redentor; o marxismo ou socialismo internacional; o fascismo ou socialismo nacional. Em todas, o objetivo da educação é formar algum tipo de militante. E que perspectiva de futuro tem um militante? Uma só: tornar-se membro da nomenklatura, ascender na burocracia. Tal é, pois, o ideal de vida implícito que a nossa educação transmite aos jovens. O burocrata é o inverso do empresário: ele não concebe a vida como disputa em campo aberto, e sim como “plano de carreira”, fechado e garantido. E o burocrata frustrado se revolta contra o Estado que lhe sonega, junto com essa garantia, um sentido de vida

Mas a resposta é menos interessante do que a pergunta e do que o fato mesmo de que fosse formulada por um jovem empresário, chocado com o espírito servil de seus companheiros de geração, espírito que, com a maior facilidade, se transmuta em rebelião de escravos — com burgueses no papel de escravos. A constatação desse paradoxo basta para explodir o lugar-comum acima citado: pois ou a universidade não é o que os marxistas dizem, ou a classe dominante no Brasil não é empresarial e sim burocrático-estatal. No primeira hipótese, adeus teoria marxista da ideologia. Na segunda, a universidade forma, sim, a classe dominante; mas não uma classe capitalista, e sim uma já socialista ou quase, a qual, quanto mais cresce, tanto mais multiplica, com as vagas universitárias que ela adora ampliar, o exército de burocratas sem emprego, em cujo ressentimento ela em seguida se escora para clamar por mais socialismo, mais Estado, mais burocracia. E, neste caso, jovens socialistas, quando é que vocês vão perceber que o que solapa o seu sentido de vida não é o capitalismo – entidade fantasmal num país sem empresários –, mas sim a ideologia que faz de vocês mendigos de cargos e se alimenta da falta de cargos?

Crença e percepção

Olavo de Carvalho

3 de setembro de 2000

Notas para uma das próximas aulas do Seminário de Filosofia.

A consciência cognitiva do sujeito concreto – com tudo o que nele está subentendido de biológico, de histórico-social e de espiritual – é rigorosamente o único campo de observação onde podem ser estudados diretamente os problemas da teoria do conhecimento. Os processos cognitivos não podem ser totalmente objetivados e reduzidos a esquemas gerais e médios sem que deixem de ser, precisamente, processos cognitivos e se tornem seus meros símbolos lingüísticos, submetidos portanto a leis e condições que, em relação ao conhecimento enquanto tal, são, por assim dizer, de segundo grau e, na verdade, coisa já diversa e outra.

O processo do conhecimento deve ser surpreendido in fieri, isto é, no lugar e no momento onde se dá. Só aí pode-se dizer que o observamos. Ele nunca se dá genericamente ou especificamente, mas sempre singularmente e no próprio sujeito que o examina. Fora disso, escapamos da observação e entramos na rememoração e na análise lógica.

Nesse sentido, colocar uma questão como a das origens ou fundamentos da nossa “crença no mundo exterior”, como se fosse coisa básica e da qual dependesse a validade cognitiva da percepção, é uma grave alienação das condições concretas em que se dá a nossa relação com o mundo exterior e a reflexão que fazemos sobre ela.

O mundo exterior, no instante em que é apreendido, não é jamais apreendido como “crença”, e sim como dado, presença, injunção ou coisa assim, sem qualquer mediação de uma crença. Se não fosse assim, não haveria diferença entre nossa relação com o mundo exterior e a relação que temos com nossas crenças, isto é, não haveria diferença entre o agir e sentir, de um lado, e a memória e reflexão, de outro – diferença que, não obstante, não só se nos apresenta de maneira imediata e intuitiva mas é também a condição mesma da própria reflexão.

A “crença” no mundo exterior não é pois um elemento da percepção e da ação, mas um momento da reflexão, totalmente ausente no ato mesmo da percepção e da ação. A prova mais eloqüente disto é que aqueles filósofos que não creem no mundo exterior percebem esse mundo da mesma maneira que os outros, que nele crêem; ou, mais claramente ainda, eu próprio, se alternadamente creio no mundo exterior ou duvido dele, filosoficamente, nem por isto o percebo diferente no instante em que o percebo.

Como elemento da reflexão, desnecessário à percepção e à ação, a “crença” não pode ser apreendida empiricamente no ato da percepção e da ação senão per accidens e nas ocasiões excepcionais em que entre nelas um componente essencial de reflexão, como por exemplo no ato da leitura ou da comparação consciente entre um objeto percebido agora e um outro conservado na memória.

Isso já basta para provar que a crença, não sendo essencial ao conhecimento perceptivo do mundo exterior, também não pode ser fundamento dele, mas somente fundamento de conclusões que, na reflexão, tiramos eventualmente do que sabemos dele. A noção de “crença” é pois uma premissa menor que introduzimos na reflexão gnoseológica, mas que não obtemos diretamente do exame dos processo cognitivos concretos, e sim de uma suposição extra que fazemos ex post facto para “explicá-los”.

Ora, de onde podemos extrair a idéia de que nossa aceitação espontânea dos dados percebidos é uma “crença”, senão de um raciocínio que, partindo da dúvida cética ou crítica, coloca essa aceitação “entre parênteses”? Se, na reflexão, fazemos abstração da presença atual dos dados e raciocinamos somente sobre sua representação, seus conceitos ou seus símbolos, aí já se introduziu entre sujeito e objeto aquele hiato sem o qual não haveria a possibilidade da dúvida e portanto a possibilidade de explicar como “crença” aquela aceitação espontânea. Mas é esse hiato que, precisamente, não pode haver no ato da percepção.

A aceitação espontânea dos dados não é, de maneira alguma, uma “crença”, embora possa, na reflexão, se expressar sob a forma de crença. Acreditar, portanto, que a resposta a uma pergunta sobre “qual o fundamento da nossa crença no mundo exterior” possa nos ajudar a compreender algo sobre os processos reais e concretos do conhecimento é confundir percepção e reflexão e afastar-se infinitamente da possibilidade de uma elucidação do problema.

A consideração destas observações basta para por à mostra a inocuidade das longas especulações que, sobretudo na tradição filosófica anglo-saxônica, têm se concedido a esse ponto.

O fenômeno da aceitação espontânea deve ser estudado em si mesmo, tal como se dá efetivamente no ato da percepção, e não na interpretação secundária a que damos o nome de “crença”. Bem ao contrário, a aceitação espontânea é que pode ser alegada retrospectivamente como razão em favor da crença ou da descrença. Podemos, é claro, refletir sobre essa aceitação espontânea, mas jamais caindo na esparrela de confundi-la com uma “crença”, pois, uma vez feita a confusão, não encontraremos outro fundamento para a crença senão a crença mesma e, aí, fazer correr rios de tinta não nos libertará da dúvida cética nunca mais, como parece acontecer, de fato, na tradição anglo-saxônica, mesmo entre os autores mais “realistas”, como por exemplo Bertrand Russel, que nunca pode crer no mundo exterior sem sentir que faz uma concessão à fragilidade humana ou, pior ainda, que se permite uma indulgência no pecado.

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