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“Dogma” e a mentira

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 6 de janeiro de 2000

Sou contra a proibição de qualquer filme, mas não quero ser cúmplice de uma operação montada para enganar o público. A Igreja e a TFP, que pediram a proibição de Dogma , não são o poderoso establishment oprimindo um pobre artista libertário, que é como procuram apresentá-las os apóstolos da liberação do espetáculo. Guardadas as proporções que as separam, ambas são organizações debilitadas, perseguidas, boicotadas e marginalizadas, em luta contra a máquina internacional do  anticristão. Quando o establishment quer impedir que você veja um filme, ele não pede às autoridades civis que proíbam sua exibição: ele simplesmente tira o filme de circulação com um memorando administrativo, como a Disney fez com Sete Anos no Tibete e Kundun , que cometiam o pecado mortal de denunciar o massacre de 1 milhão de tibetanos pelo governo chinês e assim arriscavam prejudicar os interesses comerciais que unem os EUA ao seu sangrento “parceiro privilegiado” do Extremo Oriente. Quando isso aconteceu, não houve um intelectual brasileiro que protestasse, um militante de esquerda que visse aí qualquer atentado à liberdade de expressão.

Se a TFP e a Igreja pedem a proibição do filme, é porque não têm meios de lutar contra a propaganda anticristã com as próprias armas dela. Quem tem dinheiro opõe anúncio a anúncio, espetáculo a espetáculo. Quem não tem, pede socorro ao Ministério da Justiça.

Não apóio os que pedem a proibição de Dogma , porém é preciso denunciar toda tentativa de manchar a nobreza da sua causa, tão respeitável, ao menos em tese, quanto a da liberdade de expressão.

Essa causa é, no fundo, o direito e o dever de qualquer fiel católico se precaver contra uma propaganda cujos efeitos, de há muito, já passaram da esfera do boicote moral à do genocídio puro e simples. A propaganda anticristã aplanou o caminho e anestesiou as consciências para o massacre de pelo menos 30 milhões de cristãos no mundo comunista. Não há rigorosamente diferença alguma, quanto à periculosidade, entre um filme anti-semita e um filme anticristão. Em ambos os casos trata-se de preparar ou legitimar genocídios. Podemos querer a liberação desses espetáculos, mas não sem expressar a repulsa que nos inspiram e não sem pedir desculpas àqueles cujos sentimentos eles ofendem. Em vez disto, o que fazem os defensores de Dogma é desrespeitar esses sentimentos uma segunda vez, usando de uma retórica truculenta que transforma o ofendido em malfeitor. O texto do manifesto que fazem circular pela Internet trai claramente a sanha comunista que o inspira, ao utilizar-se do típico jargão stalinista para qualificar a TFP de “organização fascista pequeno-burguesa” – expressão que denota, além do tradicional preconceito de classe, a típica inconsciência social do militante comunista, que, ignorando a classe a que pertence, usa o nome dela como se fosse um insulto e, ademais, insulto aplicável somente aos outros.

Não morro de amores pela TFP e não hesitaria, noutras circunstâncias, em argumentar que é estúpida e herética, mas não vejo sentido em bater em quem já está apanhando. A TFP, que nunca cometeu crime nenhum exceto o da babaquice, recebe da imprensa o tratamento que se dá a uma quadrilha de malfeitores, enquanto notórios seqüestradores, assassinos e assaltantes de bancos são premiados com dinheiro público e elevados ao céu das beatitudes por uma mídia comprometida e servil. Numa hora dessas, iria eu me associar covardemente à investida unânime de massas e elites contra um punhado de fanáticos inermes e encurralados?

Quanto à Igreja Católica, apelando ao mecanismo repressivo do Estado, ela só faz é posar de membro de um establishment que a despreza e achincalha, e tornar-se voluntariamente vítima da mentira generalizada que faz dela a encarnação do poder, e da indústria internacional de  um desamparado grupo de artistas independentes que gemem sob o tacão da autoridade. Dogma é só mais um prego fincado na cruz de Cristo. Mas Cristo, sangrando, não haveria de querer posar no palanque ao lado de Anás e Caifás. Antes mais um prego do que tamanha desonra.

Recebi pela Internet pedidos de aderir à luta pela proibição e pela liberação do filme. Aos primeiros devo responder: vocês têm todo o meu respeito, mas não o meu apoio. E aos segundos: vocês têm todo o meu apoio, mas não merecem o meu respeito.

Maniqueísmo, ignorância e mendacidade

J. O. de Meira Penna

3 de janeiro de 2000

Em 27 de dezembro de 1999, eu estava meio mal de saúde. Quando fico doente, abstenho-me de ler jornais, porque senão demoro mais para sarar. Mas nesse dia me dei mal, porque perdi, no Jornal da Tarde, a melhor coisa que já se escreveu neste país sobre as doutrinas do Dr. Emir Sader, aí honrado com o título de Emir dos Crentes, o mais apropriado, sem dúvida, à sua austera carranca doutrinária. Só agora pude ler esta pequena maravilha, que me foi enviada pelo autor, o meu caro amigo José Osvaldo de Meira Penna, um escritor do qual se deve ler tudo, tudo o que ele publica. – O. de C.

Numa de suas obras principais, A Nova Ciência da Política, atribui Eric Voegelin a Dario Hystapis, o xá que fundou o Império persa no 5.° século antes de Cristo, a primazia de um fenômeno ominoso que perdurou até nosso século. Após haver sido integrado à civilização ocidental, ele constitui, na verdade, a essência da Ideologia, essa “religião civil” de nossa época. Trata-se da iniciativa do rei Aquemênida de atribuir a si próprio a defesa do Bem e da Verdade, projetando sobre seus adversários, quaisquer que fossem, a pecha de serem os defensores da mentira e do mal. O origem dessa dicotomia ética aplicada à política se encontra no próprio dualismo original da religião dos iranianos, desde que seu fundador, Zarathushtra ou Zoroastro, cindiu em dois a divindade, concedendo a Ormudz ou Ahura Mazda as qualidades de bondade e veracidade, a ele opondo Arihman, o “grande satã”, deus do mal e da mentira. O dualismo transcendente tomaria uma forma mais pronunciada nos ensinamentos de um outro profeta, Mani ou Manichaeus, que viveu 800 anos depois e influenciou as seitas gnósticas de princípios de nossa era. Fundador de uma religião conhecida como maniqueísmo, Mani contaminou de mitologia mágica dualística todas as heresias que ameaçariam a ortodoxia católica na Idade Média, Cátaros, Albigenses, etc. Não nos esqueçamos que S. Agostinho, o maior filósofo cristão, professou o maniqueísmo em sua mocidade, a tal ponto que muitos críticos reconhecem em sua teologia reminiscências do dualismo ético, tão entranhado agora na mente humana que é difícil dele nos libertarmos.

Foi Agostinho, no entanto, quem melhor desenvolveu a interpretação correta que S. Paulo fez do Evangelho de Cristo, segundo a qual é em nós mesmos que devemos procurar a oposição entre o Bem e o Mal. No maniqueísmo, ao contrário, somos nós, seus professos, donos da verdade e da justiça, enquanto detestáveis são aqueles que não pensam como nós porque portadores da maldade e da mentira. É fácil avaliar a importância dessa psicopatologia na postura do ideólogo moderno, fiel ao cego dogmatismo de suas mais estapafúrdias doutrinas e sempre disposto a acusar de mentiroso, injusto, perverso e egoísta seus adversários. A dialética do Bem e do Mal que o maniqueísmo provoca leva o alegado defensor da Verdade a recorrer a qualquer instrumento para eliminar o Outro. A faca do assassino (do árabe hashishim, comedor de haxixe), os fogos da Inquisição, o Gulag e Auschwitz, a bomba terrorista da “guerra santa” dos aiatolás, o tiro na nuca no porão do KGB e o paredón para punir o traidor vendido aos interesses alienígenas, tornaram-se banais em nossa época. Orwell descreveu magnificamente o “duplo-pensar” totalitário que justifica o crime. O ideólogo pensa estar defendendo a justiça e a verdade, de tal modo que a prisão moscovita se transforma em “amorzinho” (Lubianka) e o genocídio é a justa recompensa dos “capitalistas burgueses”. Voegelin descobre traços do processo psicopatológico que cinde a realidade histórica, necessariamente complexa e cinzenta, na simplicidade dualística do branco X preto ou, como se prefere hoje dizer, da “esquerda” e “direita”. O nazismo e o marxismo, em suas várias vertentes, são as manifestações mais clamorosas da enfermidade mental. Claro. O nacionalismo xenófobo se tornou, porém, a partir da 1.ª Guerra Mundial, a expressão coletiva mais banal da esquizofrenia paranóica. A corrupção da verdade em seu oposto, a Grande Mentira dialética, é também suscetível de ser diagnosticada como Pseudologia Epidêmica ou Pseudodoxia Fantástica. Assim como o católico atribuía ao protestante todos os males, o nazista os atribui aos judeus, o marxista aos liberais e o latino patrioteiro aos americanos.

As observações acima vêm a propósito da ira incontida, verdadeira rebordosa histérica que maltrata os “esquerdistas” (chamêmo-los assim, já que tanto apreciam esse grotesco termo jacobino) diante do colapso da URSS, da queda do Muro de Berlim e do fenômeno da globalização, aparentemente irreversível. A adoção quase universal das receitas liberais, mesmo pelos partidos tidos como de “esquerda”, o Labour de Mr. Blair, a Gauche de Monsieur Jospin, o regime de Deng Xiaoping e Jian Zemin (Dois Sistemas, Um Só País), a “Concertación de Izquierda” do Chile, o Justicialismo argentino e mesmo, entre nós, o PSDB de FHC – se traduz por programas de abertura ao mercado global e privatizações. Assim mesmo, o annus mirabilis de 1989 (saudemos essa data maior do século 20!) concedeu a esse pessoal um tempo suficiente para que se recomponham. Afinal de contas, a revolução liberal foi uma “revolução de veludo”, como a denominou o presidente checo Vaclav Havel. Os liberais, não somos vingativos, reconhecemos nossos próprios defeitos e insuficiências, não absolutizamos nossas idéias, reconhecemos que elas evoluem e se integram em outras receitas. Se tivéssemos imitado Lenin, Stalin, Hitler, Mao ou Fidel Castro, os socialistas que escapassem do paredón ou da bala na nuca estariam hoje encerrados todos num Gulag apropriado, maior do que a ilha de Cuba. Ao invés, eles voltaram ao poder sob títulos diversos. São “populistas”, “petistas”, “social-democratas” ou “socialistas cristãos”. Agarram-se aos cargos e mordomias. Escrevem nas folhas mais conservadoras do País. Colaboram com os mais opulentos bilionários. Chamam Roberto Campos de Bob Fields. E até mesmo o senador Roberto Freire é convidado de honra num simpósio da Fundação Konrad Adenauer (ó manes do der Alte!).

No Brasil, é mais óbvio seu descaramento. Um exemplo supino é o do Emir dos Crentes, mais conhecido como professor Sader. Perdoe-me esse eminente “sociólogo” levantino e guru do PT se lhe renovo o merecido galardão, do “Prêmio Imbecil Coletivo de 1996”, a ele concedido por Olavo de Carvalho. Suas idéias são bastante características. Definem o mecanismo de transferência de culpa, dialética mendaz, deslealdade e cínica hipocrisia “xiita” (mas será que o professor é sunita?). Um exemplo é a tentativa de contrapor ao “Livro Negro do Comunismo” (cem milhões de mortes) um pseudo “Livro Negro do Capitalismo”. Ao denunciar o “desconhecimento da história”, indigitar o “pensamento único” e utilizar o truque de interpretar de modo estreitíssimo os dogmas marxistas-leninistas, ele atribui a 1.ª Guerra Mundial (20 milhões de mortes) ao capitalismo. Admiravelmente simples! Só que em 1914 a França e a Grã-Bretanha eram governados por partidos de esquerda – os dois líderes, René Viviani e Clemenceau, ambos socialistas, e Lloyd George um liberal de esquerda apoiado pelo Labour. Um único prestigioso socialista se opôs ao conflito, Jean Jaurès, e foi assassinado por ser germanófilo. O reich bismarckiano era, similarmente, dirigido pelos social-democratas e, dos dois lados da cerca, todos os socialistas aplaudiram e votaram os orçamentos de guerra de seus respectivos governos. O mesmo em 1939. Atribuir ao “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães”, os Nazistas de Hitler, um vezo “capitalista” é uma aberração da inteligência. Em 1939, capitalistas eram os judeus… Todos os liberais austríacos e alemães que, no pós-guerra, iriam erguer a “economia social de mercado” e promover o “milagre alemão”, homens como Adenauer, Eucken, Machlup, Ludwig Erhard, von Mises e Hayek, se encontravam no ostracismo, na cadeia ou no exílio.

Mas porventura os militares nipônicos que, em 1932, invadiram a Manchúria, em 1937 a China, promoveram o rapto de Nanking e, em 1941, bombardearam Pearl Harbor seriam também burgueses capitalistas? E o Pacto Molotov-Ribbentrop de agosto de 1939, que desencadeou a guerra (50 milhões de mortes) permitindo a Hitler liquidar separadamente com a Polônia, a Escandinávia e a França, enquanto Stalin, o outro parceiro, se locupletava com a outra fatia da Polônia, os Estados bálticos e a Finlândia – foi por acaso firmado por capitalistas burgueses? E como foi mantido e se expandiu o Império soviético (60 milhões de vítimas)? Quem invadiu a Coréia do Sul em 1950, o Tibet em 1951 e a Índia setentrional em 1963? Não foi o Vietnã de Ho Chimin que assolou a Kampuchea democrática (um milhão de mortes) e entrou em guerra com a China maoísta em 1979? Não foi o Iraque que atacou o Irã e a URSS que ocupou o Afeganistão? E a Iugoslávia de Milosevitch não era comunista quando se desintegrou em sangrenta guerra civil (300 mil mortos)? O ilustre Emir dos Crentes deve aprender história no curso primário antes de escrever “Em Defesa da História” nos jornais burgueses de Brasília, Rio e São Paulo, essas mesmas folhas que acusa de colaborarem no “festival do pensamento único que assola nossa imprensa”. Mas talvez tenha razão: o festival de pensamento único que assola nossa imprensa e o “clima de impunidade” com idéias estrambólicas é a mesma orgia ideológica de que o comendador está, precisamente, gozando com seus comparsas…

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J.O. de Meira Penna é embaixador, escritor e presidente do Instituto Liberal de Brasília. E-mail: meirapen@zaz.com.br

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