1 de maio de 2000

Mensagem de Marcelo Wick

Caro Olavo,

Resolvi comprar o livro Democracia na América após ler os seus elogios sobre ele, mas já na primeira parte, surgiu uma dúvida: Tocqueville fala que a religião protege os homens contra paixões insensatas de tudo conhecer, portanto de tudo mudar, acabando assim com a paixão pela igualdade que ameaçava a liberdade. Mas só que a religião impedia a tirania da igualdade para instaurar a tirania dos costumes. Pois eram os costumes religiosos que influenciavam as leis como a pena de morte para os adúteros, separação das crianças dos pais que não as colocavam na escola, passando a guarda para a sociedade, e até leis que proibiam o tabaco! (Code 1650).

Estas leis não eram impostas mas sim votadas pelo livre concurso dos interessados. Não acho que podemos isentar a religião neste caso, culpando só o estado civil da época, já que “O puritanismo era quase tanto uma teoria política quanto uma teoria religiosa, e que ele se confundia em vários pontos com as teorias democráticas e republicanas mais absolutas.”(Pág.43) A política e a religião eram tendências diversas, mas não contrárias. Os costumes religiosos influenciavam as leis de caráter tirânico, que eram realmente cumpridas, como mostra o autor. Como eu já li a sua apostila Humanismo e Totalitarismo,eu pergunto pro senhor: Será mesmo que as outras épocas não conheceram o totalitarismo? Com certeza era um totalitarismo em menor escala, mas não deixa de ser uma semente do totalitarismo vindouro. Será que a religião não está isenta de culpas pelo totalitarismo na América de outra época? Podemos dizer também que as leis da sociedade puritana não influenciaram em nada o totalitarismo posterior? Segundo uma dedução do próprio Tocqueville, é bem capaz, já que “As leis conservam seu caráter inflexivel,quando os costumes já se submeteram ao movimento do tempo.” Há por acaso uma data ou um período que mostra que os costumes religiosos deixaram de ditar as leis? Se há, será que durante essa transição não houve influência do espírito tirânico dessas leis sobre o novo sistema legislativo? Se a igualdade exagerada é uma ameaça à liberdade, até que ponto também é a religião? Fico por aqui, agradecendo desde já pela atenção.

Um abraço,

Marcelo Wick

kritya@bol.com.br

Resposta de Olavo de Carvalho

Sua pergunta é enormemente complicada, pois não existe “a” religião, e sim uma multidão de fenômenos diversos e às vezes heterogêneos que recebem nome. Já no próprio exemplo que você cita, o puritanismo é uma dissidência de uma dissidência, uma espécie de cristianismo de terceiro grau, e como tal evidentemente haverá pontos de semelhança e de diferença entre ele e o tronco remoto do qual proveio.

De modo geral, a idéia de um controle total do governante sobre os indivíduos só aparece realizada nos antigos impérios “cosmológicos” ~ Egito, Babilônia, China. Já em Platão (República), a vaga recordação de um Estado “perfeito” na qual parecem flutuar resíduos do modelo egípcio é projetada para o futuro, ou para um tempo abstrato: a u~topia é também u~cronia. A idéia reaparece no Renascimento, insuflada pela onda de nostalgia platônica e pitagórica. Vem tingida de três novas nuances: a ciência matematizante da natureza, a autoconfiança prometéica no poder do homem e a influência de seitas gnósticas persuadidas de que o mundo criado é o mal e deve ser substituído por um mundo inventado pelo homem. Eric Voegelin (History of Political Ideas) assinala ainda o impacto que as vitórias de Tamerlão tiveram sobre a mente ocidental, promovendo a imagem do governante todo-poderoso que, pela sua força, engenho e sorte, se coloca acima do bem e do mal (tal a origem do Príncipe de Maquiavel). A influência conjugada das seitas gnósticas e da nova mitologia do rei onipotente está na origem das idéias modernas de absolutismo e de razão-de-estado, sem as quais a possibilidade de um controle oficial sobre as vidas dos indivíduos não é sequer pensável.

Daí por diante, fica difícil distinguir, na ascensão do domínio oficial sobre os homens, o que é de origem estatal, o que vem das autoridades religiosas. O que é certo é que tanto aquele quanto estas já estavam sob o domínio de concepções que não têm nada a ver com o cristianismo tal como conhecido antes disso. Também é certo que, pelo lado oficial, o “ancien régime”, mesmo intoxicado de razão-de-estado, conservou muitas das liberdades medievais pelo menos até a Revolução Francesa. Ninguém compreenderá a brutal diferença entre a liberdade antiga e a tirania moderna se não souber que a idéia mesma de uma lei uniforme para todos os habitantes de um território nacional só se implantou com a Revolução; que, antes disso, a diversificação em direitos regionais e municipais, prerrogativas de casta, de ofício, de família, etc. era tão complexa que nenhum governante nacional podia sequer sonhar em ter sobre a população o controle que desde então se tornou coisa banal e corriqueira; é à luz de uma ilusão retroprojetiva que “leis como a pena de morte para os adúteros, separação das crianças dos pais que não as colocavam na escola, passando a guarda para a sociedade, e até leis que proibiam o tabaco“, para citar os seus exemplos, adquirem alcance comparável aos controles exercidos por governos modernos, seja ditatoriais, seja mesmo democráticos. Só a título de comparação, note que o governante mais poderoso do “Ancien régime”, Luís XIV, para formar um exército de 140 mil homens, o maior da Europa então, teve de ir pessoalmente de cidade em cidade implorar que as pessoas se alistassem, ao passo que o governo da Revolução recrutou um milhão de soldados em poucas semanas implantando o serviço militar obrigatório e a pena de morte para os recalcitrantes. Outro exemplo: até o Renascimento, os papas não tinham sequer a autoridade de nomear os bispos, que eram escolhidos por negociações locais. Outro ainda: a posição dos judeus na sociedade, durante toda a Idade Média, variava de cidade para cidade, numas vigorando sua exclusão dos cargos públicos, noutras esses cargos sendo praticamente monopolizados por eles. Não resta dúvida: o controle central é, no Ocidente, invenção moderna. À luz desse fato, não tem sentido atribuir o mesmo peso a uma lei moderna e a uma lei antiga cujo conteúdo verbal seja semelhante. A idéia mesma de uma lei uniforme para toda a nação surge por obra dos humanistas, que promovem a restauração do Direito Romano com sua concepção de unidade sistêmica, totalmente ignorada na mixórdia do direito local e consuetudinário vigente na Idade Média. Ora, sem lei uniforme é contra-senso falar de totalitarismo. Não deixa de ser elucidativo que o país europeu que mais se conservou imune a qualquer tentação totalitária, a Inglaterra, fosse também aquele que mais conservou os direitos medievais, por confusos que fossem, preferindo a confusão da variedade ao risco de uma unidade tirânica.

Que pudesse haver tiranias locais e diferenças de maior ou menor autoritarismo de época para época é um fato que não as torna de maneira alguma “sementes” do totalitarismo moderno, pois não há relação causal ou continuidade entre uma coisa e outra. Quando mais não fosse, pela razão seguinte: nenhuma dessas tiranias jamais se legitimou através de uma teoria, de uma doutrina, que pudesse permanecer após o fim do regime e influenciar as gerações seguintes. A continuidade de um “modelo” supõe a continuidade da sua fórmula ideal, e a fórmula ideal do governo absoluto só surge mesmo no Renascimento, vinda da fusão do novo modelo do déspota oriental, que enfeitiçava todas as consciências, com o princípio de ordenação racional trazido pelo direito romano e pelas novas concepções científicas. O totalitarismo no fim das contas é isso: despotismo científico. Quando Tocqueville assinala o parentesco entre o totalitarismo e a ilusão de saber tudo, ele acerta na mosca: sem a idéia da ciência total não há legislação total, nem portanto governo totalitário.

A resposta, portanto, é não. Não há em toda a história ocidental antes do Renascimento nada que se assemelhe ao totalitarismo moderno.

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