CARLOS SOULIÉ DO AMARAL

O Estado de S. Paulo, quinta-feira, 4 de maio de 2000

Seguido de Observações de Olavo de Carvalho

Com certeza foram os árduos compromissos da rotina, os dias programados minuto a minuto por secretárias, assessores, chefes de cerimonial e agentes de segurança. A necessidade de atender urgências, cumprir protocolos, fazer discursos convencionais em cerimônias marcantes, entrar e sair de aviões guardando o zumbido de motores na cabeça, a atenção sobre alerta às intrigas das ante-salas, o esforço contínuo de afogar bocejos em sorrisos, a substituição de ministros, os 500 anos e, de novo, a substituição de ministros. Tudo isso cansa, tudo isso pesa e o presidente, frágil criatura como todos nós, não escapou das conseqüências. Sua percepção, antes atilada e rápida, dá sinais de embaçamento e de cansaço – dizem uns e outros.

Foi no 22 de abril que tudo começou. Ao comentar as depredações, invasões, tumultos e pornofonias desencadeadas pelo Movimento dos Sem-Terra (MST) no Brasil inteiro, com o olhar circunvagando entre o pasmo e o perplexo, o presidente indagou: “Essa gente tem mentalidade fascista?” A data do descobrimento teve o condão de levar o presidente, intelectual neo-hegeliano, dedicado por formação e temperamento à indagação metódica e à constatação científica dos fenômenos, a esse recente descobrimento. Ainda que interrogativo, ele percebeu, finalmente, que o MST “está descambando para a baderna” e “tem mentalidade fascista”.

Ocupadíssimo sempre, o presidente, que não é sem-terra, é, seguramente, sem-tempo. Talvez por isso não tenha tomado conhecimento dos cursos de capacitação de militantes que o MST organiza e desenvolve em todo o território nacional. Nesses cursos, as apostilas e os mestres ensinam que “apenas ocupar a terra para trabalhar é uma posição já superada”, esclarecem que “a disputa fundamental não se dá mais entre os sem-terra e fazendeiros, mas, sim, entre os sem-terra e o Estado”, e avisam que “o MST tem um projeto político revolucionário cuja meta é a conquista do poder”. Os mestres insistem que o objetivo do movimento “é ocupar os espaços que se conformam na superestrutura da sociedade” e advertem: “se alguém disser que esses espaços não devem ser ocupados por nossa organização, pois esses temas não nos competem, digamos, sem receio de equívocos, que os audazes sempre prevalecem sobre os medrosos!”

Este é o velho MST, paroleiro e quebrador, perfeitamente enquadrado na configuração do “fascismo vermelho” detectado pelo cineasta comunista Pier Paolo Pasolini, como um grupo de pressão que violenta a sociedade e o direito instituído por não ser capaz de conseguir representatividade democrática. O cineasta italiano, após a denúncia dos campos de concentração e dos crimes em massa na União Soviética durante o governo de Stalin, feita por Krushev no 20º Congresso Comunista Internacional, declarou-se “privado da esperança”. Sua referência ao “fascismo rosso” baseia-se na definição configurada pelo psicanalista e filósofo Wilhelm Reich, expulso da Alemanha pelos nazistas e, depois, pelos comunistas.

Diz Reich: “O fascismo vermelho, forma particular da peste emocional, utiliza como instrumento básicos a dissimulação, a conspiração e a cortina de ferro, que lhe permitem explorar as atitudes patológicas das pessoas simples; assim é que a peste emocional politicamente organizada se aproveita da peste emocional não organizada para satisfazer suas necessidades mórbidas.” As necessidades do MST, apoiadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), braço político-rural da Igreja Católica no Brasil, concentram-se agora em “pegar o Malan”, como determinou Gilmar Mauro, um dos coordenadores nacionais do movimento, ao lado do ex-seminarista João Pedro Stétile (que dizem ser cunhado do bispo Tomás Balduíno, presidente da CPT). A nova meta leva os militantes a ocupar e depredar prédios do Ministério da Fazenda e do BNDES para atingir o setor financeiro do governo, espaço “que os conforma na superestrutura da sociedade”.

Na organização militarizada do MST, as ordens de comando ressoam de forma idêntica a dos nazistas antes da conquista do poder: pegar, quebrar, invadir, forçar, marchar, bloquear ou – como aconteceu em Belém, na depredação da Secretaria da Segurança Pública – “matar, matar!” O pretexto de Hitler foi o mesmo do MST, ou seja, espaço vital: terra e mais terra e mais terra. Wilhelm Reich fez uma incisão profunda no organismo do fascismo vermelho para chegar a um diagnóstico transparente: “A dissimulação, a conspiração e a subversão precedem todos os alvos políticos que são inventados para servir de biombo às atividades desses grupos, cujo único objetivo é a conquista do poder sem nenhuma finalidade social específica.” Mas o presidente demorou a entender. Tempos atrás o deputado Francisco Graziano Neto alertou o general Alberto Cardoso sobre os cursos de formação de militantes. Nenhuma providência foi tomada. As milícias se ampliaram e agora o presidente declara: “O MST ultrapassou o limite da legalidade.” Bom sinal. Os árduos compromissos da rotina e do cerimonial já não conseguem embaçar a lucidez do presidente.

Observações de Olavo de Carvalho

Uma das tendências mais cretinas da mente humana é a de inventar simulacros da realidade e depois explicar a realidade pelos simulacros. No Renascimento era moda os intelectuais explicarem o movimento dos astros pela analogia com os ponteiros de um relógio, esquecendo que o relógio é que tinha sido inventado como imitação dos movimentos celestes.

Chamo a isso “analogia retroativa”. É o tipo da explicação que não explica nada e ainda desvia as atenções dos fatos para as fantasias.

É a esse tipo de explicação que o presidente Fernando Henrique Cardoso recorre diante do fenômeno da violência crescente do MST. Chamar os comunistas de fascistas é dizer que o Sol e a Lua imitam os relógios. Ou, o que dá rigorosamente na mesma, que os rabos abanam os cachorros.

O fascismo nasceu como mera imitação nacionalista de tradicionais métodos de ação comunistas. O comunismo não precisou esperar o advento de seu simulacro fascista para ser aquilo que é: um movimento intrinsecamente terrorista, assassino e genocida. E, como o original é sempre superior à cópia, o fascismo, com todo o seu apetite por violências espetaculosas, jamais pôde competir com as realizações do seu modelo no campo da crueldade organizada. Somem as vítimas de um e de outro, e verão que, com guerra e tudo, o fascismo não conseguiu matar a quarta parte do número de pessoas que o comunismo matou em tempo de paz. E notem que nessa conta consinto em misturar fascismo e nazismo num só bloco, uma absurdidade histórica comunista inventada para inflar artificialmente a imagem do “perigo direitista”: na verdade o primeiro país agredido por Hitler tinha um regime fascista (Áustria), e na guerra houve governos fascistas pró-Eixo (Itália, Hungria, Romênia), contra o Eixo (Brasil) e neutros (Portugal e Espanha). Cadê o “bloco”? Distinguidos do nazismo e arcando somente pelos crimes que lhes são próprios, os regimes fascistas, ao lado do comunismo, são um punhado de trombadinhas da Praça da Sé em comparação com a máfia internacional das drogas.

Após ter inventado a ficção histórica do “bloco direitista” – no qual, de hipérbole em hipérbole, até mesmo as democracias capitalistas do Ocidente acabam entrando na categoria de nazifascistas –, a propaganda comunista demonizou histrionicamente o termo “fascismo” com a finalidade única de encobrir por trás dele a monstruosidade dos métodos que Lênin ensinou a Mussolini e Stálin a Hitler. O truque funcionou, a finta verbal impregnou-se na linguagem comum – e hoje, quando vemos um comunista agir como comunista, não conseguimos expressar o horror daquilo que enxergamos senão chamando-o “fascista”. Ao denunciar o criminoso, recusamo-nos a revelar sua identidade e assim nos tornamos seus cúmplices.

Não, o MST não é fascista. É simplesmente comunista. Ao chamá-lo “fascista”, o nosso presidente mostra que nem mesmo no instante em que se vê acossado pela violência comunista ele tem a coragem de se livrar do esquerdismo residual que domina sua linguagem e paralisa sua inteligência.

Mas o presidente não é paralítico só no discurso. No plano dos atos ele também conspira com seus inimigos, implorando que lhe amarrem as mãos para que nada possa fazer contra eles. A prova mais evidente é que, enquanto se queixa da violência revolucionária do MST, ele consente que o Ministério da Educação distribua, a título de literatura pedagógica, milhões de cartilhas de marxismo-leninismo que induzem as novas gerações a ansiar por violências revolucionárias ainda maiores. Durante um tempo acreditei que ele fazia isso de caso pensado, para assegurar para si uma sobrevivência política em caso de virada geral à esquerda. Agora já não acredito mais. Acho mesmo é que é desencontrado e sonso, perdido entre o que vê, o que pensa, o que quer e o que fala.

Já o governador Mário Covas não tem esses problemas. Ele tem a inteligência afiada e a língua dócil. Ele sabe o que quer e sabe usar as palavras para obtê-lo. Ele quer o apoio das esquerdas e mais que depressa lhe vem aos lábios a mentira necessária para comprá-lo. O MST, no discurso dele, surge embelezado como um justo movimento social que luta por terras para os pobres, quando os próprios documentos internos do movimento, já abundantemente divulgados pela imprensa, declaram que terras e reforma agrária não lhe servem, que o que ele quer é tomar o poder mediante uma revolução e instaurar no Brasil a ditadura comunista.

A linguagem do presidente está comprometida com o seu passado, a do governador com o que ele gostaria que fosse o seu futuro. Por isto nenhum dos dois pode dizer com honestidade e realismo o que se passa no presente.

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