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O direito de insultar

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 22 de dezembro de 2005

Raros presidentes americanos tiveram planos tão ambiciosos como George W. Bush, e a razão pela qual ele é tão odiado é que esses planos, aparentemente inviáveis mesmo a longuíssimo prazo, estão se realizando com velocidade alucinante. A consolidação da democracia no Iraque é tão irreversível que a minoria sunita desistiu de boicotar o processo e até os terroristas abdicaram de tentar anarquizar as últimas eleições (o número de ataques baixou em setenta por cento). Os países em torno improvisam reformas, não querendo ser passados para trás pela onda democratizante, enquanto as tropas americanas continuam firmes no apoio às metas do presidente, resistindo a todas as chantagens e seduções que, na guerra do Vietnã, debilitaram tão facilmente o seu espírito de combate.

Espalhar a democracia no Oriente Médio é uma realização que não fica abaixo da vitória de Ronald Reagan na Guerra Fria. A diferença é que esta se tornou visível da noite para o dia, com a queda do muro de Berlim e a autoliquidação da URSS, ao passo que os resultados visados pelo presidente Bush só podem aparecer aos poucos, espalhados em diversos países e diluídos no fluxo de notícias desfavoráveis que a oposição democrata, firmemente encastelada na grande mídia, produz diariamente para encobri-los.

“Notícias” não é bem a palavra. “Factóides” seria mais apropriado. No começo, impressionaram muito. Chegaram quase a persuadir a opinião pública de que gritos, sustos e gozações humilhantes, impostos a terroristas presos em Guantanamo ou Abu-Ghraib, eram crimes contra a humanidade comparáveis às torturas físicas hediondas que levam os prisioneiros políticos de Cuba, da China ou das ditaduras islâmicas ao desespero e à morte. Aos poucos, a diferença escamoteada acabou aparecendo naturalmente. A orquestra de exageros premeditados conseguiu mesmo é dissolver o impacto da palavra “tortura”, fazendo dela uma mera figura de linguagem.

Houve também as denúncias escabrosas contra figurões do Partido Republicano. Mas os lucros fabulosos da Hallyburton no Iraque acabaram se mostrando inexistentes, enquanto a acusação de “ruptura de sigilo” jogada contra o vice-presidente Dick Cheney vai se revelando cada vez mais uma pegadinha montada pelo marido mentiroso de uma agente da CIA. E, vendo que as imputações criminais lançadas contra Tom De Lay não vão mesmo dar em nada, os democratas já passaram ao plano B: espalhar na mídia que o ex-líder republicano na Câmara gasta muito dinheiro de campanha passeando de avião e hospedando-se em hotéis de cinco estrelas. Mesmo que nisso De Lay não ficasse muito abaixo da gastadora Hillary, restaria ainda a pergunta: E daí?

Revoltados de ter de contentar-se com resultados jornalísticos, sem trazer dano judicial substantivo ao entourage do presidente, os democratas voltaram seu ódio contra os jornalistas conservadores. Queriam vingar-se das revelações desmoralizantes que acabaram com a carreira de Dan Rather e baixaram as vendas do New York Times . Gastaram uma nota preta em investigações para queimar alguma reputação, mas tudo o que conseguiram foi descobrir que o radialista Rush Limbaugh, desde uma operação na coluna, ficara viciado em analgésicos. Rush passou umas semanas entalado numa confusão judicial, mas emergiu mais perigoso e aplaudido do que antes.

Então os frustrados, no auge do desespero, resolveram vingar-se em alguém mais fraco: saltaram sobre Michele Malkin, uma linda colunista filha de imigrantes vietnamitas, que escreve artigos arrasadores contra o esquerdismo chique do establishment democrata. Mas, não descobrindo nada contra ela, espalharam na internet o grito de dor da impotência enraivecida: “Alguém precisa dar um tiro entre aqueles dois olhinhos puxados.”

A própria Michele, notando os progressos da apelação entre as fileiras da esquerda, dedicou a eles seu último livro, Unhinged: “Destrambelhados”. É a palavra que melhor descreve o estado de espírito de uma facção que, vendo desfazer-se um a um seus ideais, seus argumentos, sua razão de ser, já não dispõe senão do último consolo: o direito de insultar.

Mas o esvaziamento moral não significa, ainda, derrota publicitária ou eleitoral. As realizações de Bush, complexas e abrangentes, precisam de tempo para consolidar-se e ser compreendidas pelo público. Enquanto isso, a confusão favorece o adversário. A curto prazo, o xingamento puro, sem pé nem cabeça, pode ainda ser uma arma mortífera.

Deuses de ocasião

Olavo de Carvalho


O Globo, 2 de julho de 2005

“Quando os homens já não acreditam em Deus, não é que não acreditem em mais nada: acreditam em tudo.” Se essa observação de G. K. Chesterton já não tivesse sido comprovada milhares de vezes, bastaria a experiência brasileira das últimas semanas para mostrar sua veracidade. Quanto mais este país renega a fé cristã que esteve nas raízes da sua formação, com tanto mais crédulo entusiasmo se entrega ao culto de ídolos de ocasião, e quanto mais se avilta na adoração do desprezível menos força tem para arrepender-se e mudar de rumo quando uma nova divindade postiça e impotente, seguindo o caminho das anteriores, o decepciona pela enésima vez. Ao contrário: cada desilusão sucessiva não só reforça a propensão idolátrica, mas a torna ainda mais tolerante para com a inépcia dos deuses, mais pronta a fabricar desculpas para as lacunas da sua onipotência e as manchas do seu véu de santidade. Por esse caminho, as relações entre a alma devota e seu objeto de culto chegam à completa inversão: já não é a criatura que vive da misericórdia divina, é a divindade pecadora e criminosa que se alimenta do perdão humano, não recebido como um dom da graça, é claro, mas extorquido como um dever, como um imposto, de tal modo que o fiel, quanto menos recebe de seu deus, mais se sente obrigado a lhe dar em profissões de fé e atos de sacrifício, numa espécie de masoquismo teológico.

Tal é, com efeito, o deus da “teologia da libertação”. A única entidade imaterial e transcendente em que os doutores dessa escola acreditam é aquela força a que chamam “processo revolucionário”, lei suprema que, a seu ver, governa o curso da história. Mas é uma lei que funciona às avessas. Ao contrário do Deus bíblico, cuja credibilidade advém do cumprimento de Suas promessas, ela jamais precisa cumprir as suas. A autoridade de que desfruta ante os fiéis assenta-se no próprio rastro de crimes e fracassos que constitui até o momento o único legado do processo revolucionário na URSS, na China, no Vietnã, na Coréia do Norte ou em Cuba. Esse aparente paradoxo explica-se pela dialética do prejuízo intolerável: quanto maior a dose de sacrifício inútil, tanto mais dificultoso admitir que foi inútil. Tanto maior, por isso, a necessidade compulsiva de redobrar indefinidamente a aposta perdida, reafirmando a fé contra os fatos em escala de progressão geométrica. O credo quia absurdum, que em Agostinho era uma figura de retórica, torna-se aí um preceito literal, o dogma constitutivo da igreja revolucionária.

Não espanta que, numa cultura intoxicada desse dogma ao ponto de já não poder reconhecê-lo como tal mas apenas obedecê-lo como impulso inconsciente, as esperanças do povo acabem se voltando para personagens cada vez menores, mais desprovidos de real valor e das condições mais mínimas para honrar a confiança neles depositada.

Quando, mais de uma década atrás, o sr. Herbert de Souza foi aceito pelas classes letradas como a máxima encarnação da virtude e um candidato à beatificação, tomei isso como indício de um embotamento da sensibilidade moral coletiva, incapaz de distinguir entre um santo e um mero estrategista esperto, cujo único mérito era o de ter ensinado a esquerda a sugar o prestígio das entidades caritativas em vez de acusá-las de instrumentos da classe dominante.

Os anos que se seguiram confirmaram esse diagnóstico, quando uma nação quase inteira apostou na moralidade superior de um partido cuja improbidade e malícia, no entanto, eram claramente visíveis no teor mesmo das suas discussões internas e na rede de suas alianças criminosas internacionais, alianças que ora ele ocultava sob negações peremptórias, ora adornava com um manto de subterfúgios dourados, sem que a mídia cúmplice consentisse em notar, sequer, a duplicidade do discurso, prova inequívoca da mentira.

Por isso, agora, que toda a indigência moral desse partido veio à tona, não é impossível que o esplendor mesmo da sua feiúra ofusque a visão popular, produzindo, após o choque passageiro das más notícias, uma restauração da confiança inicial jamais merecida.

Falsas omissões

Olavo de Carvalho

O Globo, 1º de maio de 2004

Os críticos tem sido injustos com o nosso presidente. Com base nas suas promessas de candidato, acusam-no de omisso, sem ter em conta que essas promessas não representam todo o seu programa de governo, mas só uma parte. A outra parte está nos compromissos firmados no Foro de São Paulo. Se ela não permanecesse ignorada do público, o critério de julgamento do desempenho presidencial seria bem outro.

O programa do Foro é resgatar na América Latina o que o movimento comunista perdeu na URSS, mas isso isso não significa implantar o socialismo por decreto, da noite para o dia, e sim preparar o quadro estratégico, institucional e psico-social para que, no momento apropriado, a via socialista apareça como a única possível.

Vistas sob esse ângulo, muitas atitudes do governo, que aferidas pelas promessas nominais de campanha parecem provas de omissão e incompetência, revelam-se, isto sim, passos muito firmes, muito precisos, dados na direção de objetivos discretos e de longo prazo, com os quais Lula e seu partido estão afinados mais profundamente do que com os slogans criados pelo sr. Duda Mendonça.

A aparente omissão ante a criminalidade, por exemplo, é incoerente com esses slogans , mas não com a linha geral de uma estratégia esquerdista já consagrada: apadrinhar o banditismo para usá-lo como instrumento de demolição da sociedade e ao mesmo tempo lançar na conta da “barbárie capitalista” o prejuízo decorrente.

Meses antes da eleição eu já anunciava, nesta coluna, que um presidente petista nada faria contra o crime organizado, por não poder tocar nele sem trazer dano às Farc, portanto ao Foro de São Paulo. Que ninguém prestasse atenção a isso, na época, já era uma obstinação indecente, mas perdoável. A única prova em favor da minha tese eram os papéis do Foro, que a mídia não mostrava. Mas agora, diante do fato consumado, explicar o estado de coisas por omissões gratuitas e despropositadas, sem buscar para ele alguma causa mais razoável, é, francamente, levar longe demais o desejo de não entender nada.

A licença para usar da violência contra invasores, informalmente concedida aos índios, também só é omissão em aparência. Trata-se de dar a esses servidores do globalismo esquerdista os meios de ação que, no mesmo instante, se sonegam aos “inimigos de classe”, os fazendeiros.

Outra falsa omissão é aquela que se imputa ao presidente perante os desmandos do MST. Pois, afinal, o partido governante tem ou não tem um acordo estratégico com essa entidade? E esse acordo é ou não é o mesmo que ambos juraram cumpr ir para a consecução das metas do Foro de São Paulo? Por que continuar fingindo que a conivência astuta é mera abstenção preguiçosa?

A resposta é simples: tanto na mídia quanto na classe política, quem não é cúmplice ativo da mentira geral está inibido pela fidelidade residual às obrigações esquerdistas acumuladas durante a luta contra o regime militar. Reconhecer que há uma revolução continental em marcha, que nela se articulam numa estratégia consistente todas as aparentes irracionalidades e omissões, é algo que, nesses meios, surge com a imagem abominável de uma tentação pecaminosa. Seria – dizem – “voltar à Guerra Fria”. A recusa de fazer isso é confortável para todos. Sobre a astúcia comunista, ela estende o manto protetor da invisibilidade. Aos não-comunistas, ela fornece um pretexto edificante para fazer do desmantelamento revolucionário do país uma ocasião de proveito oportunista.

***

Percorrendo as páginas do volume coletivo “O Pensamento e a Obra de Pinharanda Gomes”, publicado pela Fundação Lusíada de Lisboa, avalio a profundidade do abismo que se cavou entre o Brasil e os debates intelelectuais do mundo civilizado, mesmo aqueles que se travam na nossa própria língua. Não sei se um dia voltaremos a ser capazes de dialogar com um intelecto portentoso como o do filósofo e historiador português Jesué Pinharanda Gomes. Por enquanto, limitamo-nos a desconhecê-lo. Encerrados num provincianismo compressivo, o que quer que esteja acima da careca do sr. José Saramago já se tornou, para nós, inalcançável.

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