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Discurso requentado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 27 de dezembro de 2007

No começo da década de 90, a ilusão triunfalista do “fim do comunismo” produziu nos liberais brasileiros a mais desconcertante das mutações: fez com que daí por diante eles concentrassem suas baterias na propaganda das vantagens da economia de mercado e na apologia abstrata do Estado de Direito, como se não lhes restasse outro inimigo a enfrentar. A esse programa acrescentou-se apenas, a partir de 2002, o combate à corrupção petista – muito mais brando e educado do que aquele que o PT havia travado contra os governos Collor e FHC. Se esse mesmo período foi também o da ascensão da esquerda ao controle hegemônico do Estado e da sociedade, só um cérebro monstruosamente letárgico poderia ver aí só coincidência.

Ao desmantelamento parcial e aparente da URSS seguiu-se, na América Latina, a fundação do Foro de São Paulo. Quando as Farc, em carta ao PT, celebram essa fundação como o acontecimento providencial que salvou da extinção o movimento comunista no continente, elas sabem muito bem do que estão falando: partidos legais e organizações criminosas de esquerda são hoje os dominadores incontestes da América Latina.

Isso aconteceu precisamente no período em que os liberais, desejando limpar-se de toda contaminação com a imagem de um passado conservador, não só se abstinham de toda menção ao perigo comunista, mas não escondiam sua má vontade hostil ante quem quer que ousasse tocar no assunto. Se, numa disputa política, um dos lados está disposto a todos os sacrifícios para reconquistar o terreno perdido e o outro se sente comprometido a jamais denunciar o que o adversário está fazendo, não é preciso ser muito esperto para saber quem vai ganhar a briga. Mas os liberais já a perderam, e a maioria deles ainda se recusa a entender o porquê.

Não percebem, essas angélicas criaturas, que toda a sua retórica não pode fazer nenhum mal à esquerda, a qual já se apossou dela quase que por inteiro, ao ponto de ser acusada, por alguns de seus membros mais loucos e por seus próprios agentes de desinformação empenhados em espalhar falsas pistas, de haver se bandeado para a direita.

O inimigo que hoje se perfila diante dos liberais e conservadores do continente não é um nebuloso “populismo”, não é um mero estatismo administrativo, não é um adocicado burocratismo social-democrata de estilo europeu: é o marxismo-leninismo, é o bom e velho comunismo de sempre, hoje com uma estratégia mais abrangente e flexível do que nunca e com adversários mais tímidos e bobocas do que seus sonhos mais róseos poderiam jamais ter concebido.

Sonsice obrigatória

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 06 de dezembro de 2007

Dividida entre duas táticas antagônicas – votar no “Não” ou recusar-se a comparecer às urnas, em protesto contra a fraude manifesta do plebiscito anterior –, ainda assim a oposição venezuelana impôs a Hugo Chávez uma derrota humilhante. Façam as contas. Se 44 por cento dos eleitores se abstêm e 51 por cento dos restantes votam contra, está claro que aproximadamente três quartos do eleitorado rejeitam na base as propostas comunistas do presidente. E estão contra por três motivos: (1) sabem que essas propostas são comunistas; (2) sabem o que é comunismo; (3) conhecem as articulações do governo local com o Foro de São Paulo, com o terrorismo islâmico e com o movimento comunista mundial. Em suma: sabem a respeito de Chávez tudo aquilo que o eleitor brasileiro ignora a respeito de Lula e do PT. Comparem, por exemplo, os discursos dos nossos políticos ditos oposicionistas com o livro “O Continente da Esperança”, de Alexandro Peña Esclusa, um dos mais destacados líderes do movimento antichavista. De um lado, são reclamações polidíssimas, antissepticamente escoimadas de qualquer tomada de posição ideológica, por tímida que seja. De outro, a denúncia corajosa do Foro de São Paulo e de seus planos para a transformação do continente num arremedo tardio da URSS.

A diferença é tanto mais obscena porque o Foro é uma invenção de brasileiros, não de venezuelanos, porque foi ao brasileiro Lula, não a Hugo Chávez, que as Farc agradeceram por essa iniciativa que salvou o comunismo da extinção, e porque, no fim das contas, é em Brasília, não em Caracas, que reside o cérebro dirigente da revolução comunista latino-americana, da qual Hugo Chávez não é senão a fachada mais escandalosa e, no fim das contas, um belo boi-de-piranha.

Acusados pela esquerda de ser “extremistas de direita”, nossos políticos de oposição e nossa “imprensa burguesa” são, na verdade, instrumentos dóceis de um vasto empreendimento de desinformação calculado para manter o eleitorado brasileiro na ignorância total do que se passa no continente.

Os leitores da Folha e do Globo , por exemplo, são insistentemente persuadidos de que o Foro de São Paulo não existe ou é inofensivo, de que o comunismo não é problema nenhum, de que toda iniciativa de combatê-lo é uma espécie de demência retroativa, causada por mórbida nostalgia reacionária dos tempos do senador Joe McCarthy. Expressões pejorativas como “saudosistas da Guerra Fria” reaparecem a todo momento, nesses e em outros órgãos de mídia, inibindo sistematicamente no público toda tentação de anticomunismo. E a esquerda, com astúcia diabólica, disfarça mediante afetações de hostilidade ao “direitismo” da classe jornalística a decisiva ajuda estratégica que dela recebe.

Entre aqueles que fomentam o avanço do comunismo no continente e aqueles que o protegem sob o manto da invisibilidade, é difícil decidir quais os mais devotados servidores do Foro de São Paulo. E não adianta alegar que os segundos são apenas idiotas úteis. Todo mundo ali sabe perfeitamente o que está fazendo. Se são idiotas, é por escolha voluntária, não por ignorância genuína.

Vou lhes dar um exemplo. No dia mesmo do plebiscito venezuelano, a polícia de Chávez invadiu a sede do “Colegio y Centro Social, Cultural y Deportivo Hebraica”, em Caracas, e revirou o edifício inteiro, camuflando a ostensiva agressão anti-semita sob a alegação de estar em busca de drogas (v. Eleonora Bruzual ) . Ninguém, na Venezuela, se deixou enganar por essa desculpa esfarrapada, porque todo mundo sabe que o comércio local de drogas está sob o domínio das Farc, contra as quais o governo Chávez não faz nem quer fazer absolutamente nada.

Mas, quando o nosso governo promove o samba carioca ao estatuto de “patrimônio cultural brasileiro” no mesmo dia em que o sr. Presidente da República visita o morro e em que a escola de samba Mangueira promove uma torpe homenagem ao traficante Fernandinho Beira-Mar, o principal sócio local das Farc, ninguém na mídia ou no Parlamento é capaz de notar sequer a unidade do simbolismo cultural subjacente, produto de uma longa simbiose de comunismo, narcotráfico e “cultura popular”.

De outro lado, e complementarmente, quando a cidade de Florianópolis aparece de repente coberta de cartazes anti-semitas, quem quer que estabeleça alguma ligação mesmo longínqua e indireta entre esse episódio abominável e uma política de governo inspirada pelo Fórum Social Mundial é automaticamente acusado de paranóia judaica.

A lógica dos nossos “formadores de opinião”, na mídia e no Parlamento, só obedece a duas regras: (1) Nada tem nada a ver com nada. (2) Querer juntar os pontos é coisa de maluco.

É a radical atomização da inteligência, a instauração da sonsice obrigatória.

Revolução capitalista na Bruzundanga

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de novembro 2007

Jamais duvidei da capacidade e idoneidade de Armínio Fraga, mas quando, com base em puros sinais da Bolsa de Valores, ele sai proclamando que “o Brasil vive uma revolução capitalista”, a palavra mais doce que me ocorre é: “Estupidez.” Não se avalia o curso das coisas num país só pela economia, muito menos por um de seus aspectos isolados. Como se pode falar de revolução capitalista quando um pool onipotente de partidos de esquerda já anuncia abertamente o ingresso próximo do país no socialismo, a propaganda comunista se tornou praticamente a única atividade cultural visível, as crianças são educadas desde a escola primária para odiar o capitalismo, a quase totalidade dos estudantes universitários sonha com um emprego público, as Farc já mandam e desmandam no nosso território, a atividade econômica privada se tornou uma concessão estatal altamente policiada, o socialismo light já é a forma extrema de conservadorismo admissível entre pessoas decentes e o único partido “de direita” que existe (aliás envergonhadíssimo desse rótulo) professa modelar-se pelo exemplo dos democratas americanos, tradicionalmente intervencionistas em economia, politicamente corretíssimos em educação, cultura e ecologia e há mais de trinta anos fanaticamente pró-comunistas em política externa?

É verdade que há pessoas e grupos ganhando dinheiro como nunca, mas isso só confirma o diagnóstico de Lênin sobre os burgueses: “Dêem-lhes uma gorjeta e eles nos entregarão alegremente o poder.” Quanto mais acreditam que seu enriquecimento prova prova a revolução capitalista, mais cegos se tornam diante do esquema socialista que vai dominando tudo à sua volta.

Já cheguei à conclusão de que neste país os economistas vivem num mundo paralelo, feito só de números, sem gente nem ação humana dentro, sem conspirações nem espionagem, sem grupos ativistas, sem revoluções nem guerras, sem movimentos de massa, sem mitos culturais, sem nada do que compõe a trama substantiva da História. E o pior é que o restante da nação, intoxicada de um espécie de marxismo capitalista, uma obsessão dinheirista como nunca se viu no mundo, os ouve como se fossem porta-vozes supremos do mundo dos fatos, primores de maturidade e realismo. O argumento final em todas as discussões é Nasdaq dixit .

O mais patético em tudo isso é que praticamente todas as grandes previsões políticas feitas na base dos índices econômicos, desde o início do século XX até agora, falharam miseravelmente.

Pelo critério bolsístico, a Rússia de Lênin, em 1920, estava em vias de tornar-se uma democracia capitalista. Pelo mesmo critério, o livre mercado estava morto e enterrado por volta de 1938: o triunfo do estatismo alemão era a última palavra no mundo da indústria. Em 1987, três anos antes do desmantelamento da URSS, o maior best seller nos meios empresariais era Ascensão e Queda das Grandes Potências , de Paul Kennedy, que, com base na comparação entre orçamentos nacionais e despesas militares, anunciava para a década seguinte a derrocada americana e o sucesso retumbante da economia soviética. Diante da queda da URSS, os tagarelas não se deram por achados: improvisaram explicações econômicas sapientíssimas e proclamaram que em poucos anos o movimento esquerdista no mundo seria coisa do passado. Uma década depois, a esquerda havia se tornado a única força política internacional significativa, e Jean-François Revel estava escrevendo La Grande Parade para explicar como isso podia ter acontecido contra todas as previsões bem-pensantes. No início da mesma década, os idiotas que haviam aplaudido o livro de Kennedy como o nec plus ultra da historiografia já estavam alardeando que uma injeção de investimentos capitalistas na China acabaria por dissolver o poder dos generais chineses. Os generais estão mais fortes e autoritários do que nunca.

Não, a economia não rege o curso dos fatos, ela nem é sequer o fator principal “em última instância”, como pretendia o charlataníssimo Karl Marx. A economia é apenas a condensação quantitativa e temporária de milhões de decisões humanas nascidas de fatores psicológicos, culturais, religiosos, militares e políticos. Nada é mais instável, mais sujeito a mudanças súbitas, do que a economia, enquanto os outros fatores se movem muito mais lentamente, com mais peso, sendo por isso mais determinantes. Prever o curso das coisas com base na economia é prever o movimento das camadas geológicas com base na direção do vento.

Previsões efetivas, realistas, nascem de um complexo raciocínio interdisciplinar, auxiliado por uma espécie de sexto sentido que se pode aprender, mas não ensinar. Digo isso com a autoridade de quem há duas décadas não erra uma. Mas digo-o também com a irritação de quem, há duas décadas, vê o erro crasso ser mais respeitado e aplaudido do que os acertos mais precisos, mais fundamentados, mais meticulosos.

As classes ditas superiores, neste país, já perderam há muito tempo aquele senso natural da verdade, que nasce — e morre — com o instinto de sobrevivência.

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