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Poligamia na Grã-Bretanha

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 21 de fevereiro de 2008

Quando o arcebispo de Canterbury declarou dias atrás que as leis britânicas teriam de assimilar algumas regras do direito islâmico mais cedo ou mais tarde, talvez nem mesmo ele imaginasse que sua sugestão já estava se materializando naquele mesmo instante, e da maneira mais revolucionária possível: destruindo de repente a instituição do casamento civil e religioso e legalizando a poligamia.

A mudança não foi feita às claras, nem precedida de qualquer debate no Parlamento ou na mídia. Se o fosse, teria sido rejeitada maciçamente. Em vez disso, foi introduzida subrepticiamente por uma obscura comissão técnica – é esse o procedimento legislativo mais usado hoje em dia – mediante uma simples mudança no regulamento da previdência, sem que o povo sequer se desse conta da revolução sociocultural que se tramava às suas costas. Segundo noticia a National Review desta semana, os maridos britânicos polígamos terão doravante o direito a uma pensão estatal para cada uma de suas esposas – e o dinheiro não irá nem para elas: será depositado diretamente na conta deles! A lei não fará distinção entre os casamentos poligâmicos celebrados no Exterior e nas mesquitas do Reino Unido: valerão uns como os outros.

Na prática, isso significa não somente a legalização da poligamia, mas um formidável incentivo estatal à sua expansão, portanto à conversão em massa dos súditos de Sua Majestade ao islamismo.

Não é preciso dizer que isso trará como conseqüência a destruição total do que ainda possa restar da cultura britânica tradicional, depois de todas as transformações devastadoras descritas por Peter Hitchens em The Abolition of Britain: From Winston Churchill to Princess Diana (San Francisco, Encounter Books, 2000) e mais assustadoramente ainda por Melanie Phillips em Londonistan: How Britain is Creating a Terror State Within (Encounter Books, 2006; vídeo da autora em conferência na Heritage Foundation, http://www.heritage.org/Press/Events/ev051006a.cfm ; mais informações em http://www.melaniephillips.com ).

Também não é preciso dizer que as políticas de “apaziguamento” e “multiculturalismo” que produziram esse estado de coisas não são promovidas só pela esquerda, mas pelas correntes “liberais” que abdicam de todos os valores religiosos e culturais para concentrar-se na pura defesa do livre mercado, como se a economia fosse tudo. Já expliquei mil vezes que um liberalismo infectado de ateísmo e cientificismo militantes não é uma alternativa cultural viável: serve apenas para criar um vazio que é preenchido imediatamente, seja pela mitologia revolucionária da esquerda, seja pelo islamismo.

Mas não é de todo inútil ressaltar algo que a mídia mundial ignora por completo: que o poder da comunidade islâmica na Grã-Bretanha, desproporcional com o número de seus membros, não adveio da pura imigração, nem da propaganda ostensiva, mas, muito antes disso, veio da influência direta exercida por organizações esotéricas islâmicas sobre membros da família real e sobre parcelas importantes da elite intelectual britânica. Essas organizações, as “taríqas” (o plurál árabe é “turuq”, mas achei melhor adaptar o termo para a flexão portuguesa) dispõem de conhecimentos sobre as correntes profundas da História, que em geral os analistas políticos ocidentais não podem nem mesmo imaginar, e que transcendem, em precisão e sutileza, a estratégia revolucionária de Antonio Gramsci. Elas não têm grande dificuldade para transmutar em islamização maciça o que começou como “revolução cultural”. E é precisamente o que está acontecendo na Grã-Bretanha. Tempos atrás escrevi que a questão mais decisiva para as décadas vindouras era saber se quem sairia ganhando com a destruição das tradições ocidentais seria o movimento revolucionário ou o Islam. O Islam parece que está ganhando.

A mentira estrutural

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 27 de setembro de 2007


Quando falo em “mentalidade revolucionária”, não me refiro só aos revolucionários ex professo, mas a uma certa estrutura de percepção que pode estar presente em indivíduos alheios à atividade política. Um de seus traços característicos é o pseudoprofetismo: o sujeito se imagina o portador de um novo mundo – que pode ser um novo mundo científico, artístico, moral, religioso, político ou tudo isso ao mesmo tempo – e tão inebriado fica ante a visão desse futuro brilhante que sua percepção da vida atual se torna deformada, grotesca e, no sentido mais radical e absoluto, falsa.

A mentira e o fingimento, que a humanidade normal usa como expedientes ocasionais e momentâneos, são no revolucionário a base constante da sua visão de si mesmo e do universo. Eu usaria a palavra “histeria” para descrever esse quadro, se ele não fosse compatível com uma conduta externa aparentemente normal em tudo quanto esteja fora da área de atuação específica do indivíduo. Quando René Descartes, nas Meditações de Filosofia Primeira, confunde o seu eu temporal concreto com a idéia universal do eu cognoscente e passa de um ao outro sem perceber que toma como narrativa autobiográfica o que é mera análise lógica de um conceito abstrato, isso é evidentemente um sintoma histérico, embora na vida diária o filósofo não desse o menor indício de histeria. Talvez “histeria intelectual” seja o termo. E histeria significa deixar-se arrebatar pelo próprio fingimento ao ponto de acreditar nele piamente.

No revolucionário político, o fingimento exerce por isso mesmo uma função totalmente diversa daquela que tem nos políticos normais. Estes mentem quando lhes interessa, com a parcimônia necessária a manter um controle razoável da própria encenação. Suas mentiras são conscientes e refletidas, compatíveis com o realismo mais grosso e saudável. O revolucionário, como mede a vida presente com a régua do futuro maravilhoso que imagina personificar, simplesmente não pode enxergar as coisas como são. Ele tem de falsificar tudo para que os méritos hipotéticos da sociedade prometida sejam tomados como virtudes atuais da sua própria pessoa e do seu partido. A mentira do político comum é instrumental e pontual, a do revolucionário é estrutural, permanente e expansiva: não podendo dosar conscientemente a mentira e a verdade, ele tem de destruir no público mesmo a capacidade de fazer essa distinção. Daí a “revolução cultural”, o desmantelamento sistemático da inteligência popular.

Quando o sr. Luís Inácio posa de nacionalista durão ao proclamar que “a Amazônia tem dono” e poucas horas depois abre o território amazônico à cobiça internacional como quem anuncia um loteamento, o contraste é tão ostensivo, tão obviamente escandaloso, que a hipótese do fingimento instrumental tem de ser afastada in limine. O sr. Luís Inácio não é idiota ao ponto de pensar que pode enganar alguém com uma mentira tão patente. Mas é louco o bastante para deixar-se enganar ele mesmo por ela, acreditando que o entreguismo, se praticado por um representante autorizado do futuro beatífico, se torna instantaneamente uma espécie de amor à pátria. Transfigurada pelo pseudoprofetismo, a contradição vira identidade, e honny soit qui mal y pense.

Longe de camuflar o abismo entre suas palavras e seus atos, o revolucionário o exibe com uma candura estupefaciente, que desarma o espectador. Ele não quer propriamente enganar o público. Quer estupidificá-lo para que viva em estado de engano permanente, como aliás ele próprio.

Reação débil e tardia

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil,20 de setembro de 2007

Em 17 de setembro de 1998, no Jornal da Tarde de São Paulo, denunciei a propaganda comunista mentirosa e emburrecedora que, a pretexto de ensinar História, o governo do sr. Fernando Henrique Cardoso — sim, o governo tucano — espalhava pelas escolas brasileiras. Mencionei especialmente, entre outras obras usadas para esse fim, a Nova História Crítica, de Mário Schmidt (v. ).

Não me limitei a expor esse e inumeráveis fatos similares. Tanto em livros e conferências quanto em artigos, mostrei, com todo o rigor possível, que não se tratava de episódios isolados, mas de uma imensa articulação estratégica baseada “revolução cultural” de Antonio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano, da qual o então presidente da República se gabava de ser ainda melhor conhecedor e implementador do que seus amigos, concorrentes e depois sucessores petistas. Segundo essa proposta, o movimento revolucionário deveria conquistar o controle hegemônico da cultura, do imaginário social e dos debates públicos antes de se aventurar a introduzir mudanças radicais na política econômica ou na estrutura de poder.

Decorridos nove anos, O Globo finalmente conseguiu notar a existência do livro acima mencionado – como se fosse o único do mesmo teor — e, ao comentá-lo na coluna de Ali Kamel, ainda se gaba de fazê-lo “sem incomodar o leitor com teorias sobre Gramsci, hegemonia etc.”

Se até um jornalista competente como Ali Kamel leva quase uma década para notar o que está acontecendo, se o percebe somente por um ângulo isolado e se ao falar do assunto ainda se sente inibido de pedir ao leitor um pequeno esforço intelectual para apreender o conjunto de uma situação que nesse ínterim evoluiu do perigoso ao catastrófico, tão persistente letargia pode parecer estranha, mas não para mim. Sem medo de incomodar, informo aos interessados que hegemonia é precisamente isso: é dominar o fluxo das idéias ao ponto de controlar a velocidade de percepção do adversário, de modo que ele só note o perigo quando já não tenha mais tempo nem força para reagir.

De 1998 até agora, a ideologia comunista que entrou pelos livros de História se alastrou pelo sistema de ensino inteiro e infectou todas as disciplinas — até matemática e educação física –, de modo que para as novas gerações de estudantes brasileiros tudo o que escape da cosmovisão marxista se tornou inexistente e impensável. Como previa Gramsci, o “senso comum modificado” é algo de mais profundo e arraigado do que a mera crença consciente.

Ao longo desses anos, as organizações Globo, em parte iludidas pelo mito da morte do comunismo, em parte manipuladas desde dentro por agentes esquerdistas, não fizeram outra coisa senão colaborar com o empreendimento gramsciano, cultuando os santos do panteão comunista e glamurizando tudo aquilo que Roberto Marinho detestava.

Não espanta que, agora, ao emergir pouco a pouco de um longo torpor mental, o grupo não consiga esboçar senão gestos de reação débeis e acovardados, dizendo mui polidamente umas palavrinhas pró-capitalistas pela boca do sr. Eduardo Gianetti da Fonseca ou fazendo na coluna de Ali Kamel um eco parcial, tímido e quase inaudível a minhas denúncias de uma década atrás.

Também não espanta que, como prêmio de sua paternal solicitude para com os esquerdistas, a Globo agora receba deles toda sorte de insultos, acompanhados da ameaça de fazer com ela o que Hugo Chávez fez com a RCTV. Vocês não imaginam com que satisfação os comunistas atiram ao lixo um “companheiro de viagem” quando não precisam mais dele.

 

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