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Por que o brasileiro vota na esquerda

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 1o de setembro de 2006

Se no Brasil ocorre esse fenômeno aberrante de um eleitorado conservador votar maciçamente em candidatos de esquerda, o motivo da contradição aparente é claríssimo e se compõe da confluência de três fatores.

Desde logo, o conservadorismo não tem canais partidários ou culturais de expressão e se tornou politicamente nulo. Não há políticos conservadores: ninguém pode votar em candidatos inexistentes.

De outro lado, o esquerdismo usa uma linguagem nas suas discussões internas, outra para falar com o povo, e só na primeira delas assume sua verdadeira identidade ideológica. Na outra ele dilui sua imagem em generalidades moralistas, nacionalistas e populistas. É um discurso maliciosamente escorregadio, que evita o jargão marxista e impede o povo de identificar a esquerda brasileira com a revolução neocomunista continental. Até observadores estrangeiros qualificados, mas que desconhecem os documentos internos do PT e do Foro de São Paulo, como por exemplo Álvaro Vargas Llosa, Otto Reich e o próprio subsecretário Tom Shannon, se deixaram enganar por essa falsa aparência, imaginando o esquerdismo brasileiro como populista em vez de comunista. A população local, é claro, cai no engodo ainda mais facilmente. Mesmo entre pessoas letradas é comum a reação: “Lula, comunista? Você está doido.” O próprio Lula pôde dizer, sem que ninguém o contestasse, que não apenas nunca foi comunista como não é nem mesmo esquerdista. Essa declaração seria considerada cínica, inaceitável e até criminosa se a platéia não ignorasse que o declarante foi fundador e presidente da maior organização pró-comunista do continente.

Em terceiro lugar, o sucesso de quarenta anos de “revolução cultural” gramsciana foi tão avassalador — dada a completa falta de resistência –, que os valores, critérios e até cacoetes mentais do movimento comunista internacional se incorporaram no “senso comum” brasileiro e já não são reconhecidos como tais: são aceitos passivamente pela sociedade, sem consciência de suas implicações ideológicas.

Somem esses três fatores e compreenderão por que um povo conservador vota em candidatos comunistas: ele não sabe que são comunistas, não sabe o que há um movimento comunista ativíssimo no continente não tem a menor idéia das conseqüências do seu voto. As eleições brasileiras são uma farsa no sentido mais exato e integral do termo.

Não havendo partidos ou políticos de direita no Brasil, toda a confrontação direita-esquerda que se vê atualmente é uma obra de engenharia social criada pela própria esquerda com três objetivos: (1) ocultar sua hegemonia e seu poder monopolístico sob uma aparência de disputa democrática normal; (2) neutralizar quaisquer tendências direitistas, canalizando-as para uma direita pré-fabricada, a “direita da esquerda”, o que se observou muito claramente nas duas campanhas eleitorais de Fernando Henrique Cardoso, um marxista gramsciano que foi alegremente aceito como depositário (infiel, é óbvio) da confiança do eleitorado direitista; (3) dominar todo o espaço político por meio do jogo de duas correntes partidárias fiéis ao mesmo esquema ideológico, só separadas pela disputa de cargos, como aliás o reconheram explicitamente o próprio Fernando Henrique e o prof. Christovam Buarque, então um dos mentores do PT. Essas três linhas de ação definem exatamente o que Lênin chamava “estratégia das tesouras”, termo inspirado na idéia de cortar com duas lâminas.

O PFL poderia ser um partido de direita, mas, como só quer cargos e não tem nenhuma perspectiva de poder, consentiu em tornar-se uma filial do PSDB. O PMDB é esquerdista desde a origem e está repleto de comunistas. O PSDB, a “direita da esquerda”, é a boca de funil para onde converge o que possa restar de direitismo hipotético nesses outros partidos. Tal como o PT, esse partido nasceu na USP, e sua única função no conjunto da estratégia comunista uspiana é impedir que os descontentes com o PT acabem se aglutinando numa direita genuína.

Miséria intelectual sem fim

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 15 de agosto de 2005

Há quase meio século o mercado editorial brasileiro, e em conseqüência os debates jornalísticos e universitários, cujo alimento de base são os livros, não refletem em nada o movimento das idéias no mundo, mas apenas o apego atávico da intelectualidade local a mitos e caoetes fabricados pela militância esquerdista para seu consumo interno e satisfação gremial.

Sem a menor dificuldade posso listar mais de quinhentos livros importantes, que suscitaram discussões intensas e estudos sérios nos EUA e na Europa, e que permanecem totalmente desconhecidos do nosso público, pelo simples fato de que sua leitura arriscaria furar o balão da autolatria esquerdista e varrer para o lixo do esquecimento inumeráveis prestígios acadêmicos e literários consagrados neste país ao longo das últimas décadas.

Esses livros dividem-se em sete categorias principais:

1. Obras essenciais de filosofia e ciências humanas que oferecem alternativas à ortodoxia marxista-desconstrucionista-multiculturalista dominante (por exemplo, os livros de Eric Voegelin, Leo Strauss, Xavier Zubiri, Bernard Lonergan, Eugen Rosenstock-Huessy, Thomas Molnar, David Stove, Roger Scruton).

2. Análises críticas dessa ortodoxia (Hilton Kramer, Roger Kimball, Keith Windschuttle, John M. Ellis, Mary Lefkowitz, Judith Reisman).

3. Pesquisas históricas sobre o movimento esquerdista internacional, baseadas nos documentos dos Arquivos de Moscou e outras fontes recém-abertas, (John Lewis Gaddis, John Earl Haynes, Stephen Koch, Harvey Klehr, R. J. Rummel, Christopher Andrew, Herb Romerstein, Ronald Radosh, Arthur Herman).

4. Livros sobre o esquerdismo hoje em dia, com a descrição dos laços abrangentes que unem ao terrorismo e ao narcotráfico a esquerda chique da grande mídia, das fundações bilionárias e dos organismos dirigentes internacionais ( Unholy Alliance , de David Horowitz, Countdowmn to Terror , de Curt Weldon, Treachery , de Bill Gertz, Through the Eyes of the Enemy , de Stanislav Lunev).

5. Livros sobre a perseguição anti-religiosa no mundo e o fenômeno concomitante da expansão acelerada do cristianismo na Ásia e na África ( The Criminalization of Christianity , de Janet L. Folger, Persecution , de David Limbaugh, Megashift , de James Rutz, Jesus in Beijing , de David Aikman etc. etc.).

6. Livros sobre questões políticas em discussão aberta nos EUA, com repercussões mundiais mais que previsíveis (Men in Black , de Mark R. Levin, So Help Me God , de Roy Moore, Deliver Us From Evil , de Sean Hannity, Liberalism Is a Mental Disorder , de Michael Savage e, evidentemente, todos os livros de Ann Coulter).

7. Obras essenciais que deram novo impulso ao pensamento político conservador americano e europeu desde os anos 40, como as de Ludwig von Mises, Marcel de Corte, Willmore Kendall, Russel Kirk, Erik von Kuenhelt-Leddin, William F. Buckley Jr., M. Stanton Evans, Irving Babbit, Paul Elmer More e muitos outros. Neste ponto a ignorância dos nossos professores universitários chega a ser criminosa, como se viu na fraude coletiva do “Dicionário Crítico do Pensamento da Direita” (detalhes em www.olavodecarvalho.org/textos/naosabendo.htm).

Todos esses exemplos são de livros e autores bem conhecidos, amplamente debatidos na mídia americana e alguns na européia. Cada uma das sete classes comportaria mais de cem outros títulos igualmente importantes. Não é exagerado concluir que, se o debate nacional ignora todas essas obras, das duas uma: ou ele é tão rico que pode prescindir delas, fartando-se numa pletora de produtos locais mais substanciosos, ou está tão abaixo do nível delas que não chega nem a suspeitar que devam ser lidas ou mesmo que existam. Não é preciso perguntar qual das duas hipóteses é verdadeira. Qualquer estudante universitário afirmará resolutamente que se trata de autores desconhecidos no meio acadêmico brasileiro, portanto irrelevantes para quem já encheu seu pé-de-meia cultural com a moeda forte de Eduardo Galeano, Rigoberta Menchú e Emir Sader (sem contar, é claro, a ração diária de Foucaults e Derridas, invariável há cinqüenta anos).

Resta ainda o fenômeno, mórbido em último grau, da polêmica de mão única. Sua fórmula é a seguinte: uma discussão qualquer aparece na mídia americana, conservadores e esquerdistas produzem dezenas de livros a respeito e a parte esquerdista é publicada no Brasil sem suas respostas conservadoras, simulando consenso universal em questões que, no mínimo, permanecem em disputa. O establishment cultural brasileiro materializa assim o koan budista de bater palmas com uma mão só. Isso é a norma, sobretudo, nas polêmicas anticristãs. Uma fajutice barata como O Papa de Hitler , de John Cornwell, teve várias edições e toda a atenção da mídia. Os muitos livros sérios que desmantelaram a farsa (sobretudo o do rabino David Dalin, The Myth of the Hitler Pope , e o do eminente filósofo Ralph McInnerny, The Defamation of Pius XII ) continuam inacessíveis e não foram nem mesmo mencionados na mídia soi-disant cultural. Ninguém sequer noticiou que o próprio Cornwell, surpreendido de calças na mão, retirou muitas das acusações que fizera a Pio XII. No Brasil elas ainda são repetidas como verdades provadas. Do mesmo modo, os filmes Farenhype 9/11 (www.fahrenhype911.com) e Michael Moore Hates America (www.michaelmoorehatesamerica.com), respostas devastadoras à empulhação fabricada por Michael Moore em Farenheit 9/11 , permanecem fora do alcance do público e não mereceram nem uma notinha nos jornais. Resultado: o mais notório charlatão cinematográfico de todos os tempos, que nos EUA tem fama apenas de mentiroso criativo, é citado como fonte respeitável até nas universidades. É patético. Também cada nova intrujice anti-americana ou anti-israelense de Noam Chomsky é recebida como mensagem dos céus, mas ninguém pensa em publicar a coletânea The Anti-Chomsky Reader , de Peter Collier e David Horowitz, porque é impossível lê-la sem concluir que nem mesmo o Chomsky lingüista, anterior à sua transfiguração em pop star da esquerda, era digno de crédito.

Como esse estado anormal de privação de alimentos intelectuais essenciais vem se prolongando por mais de uma geração, o resultado aparece não só na degradação completa da produção cultural, hoje reduzida a show business e propaganda comunista, mas também nos indivíduos, notavelmente mais embotados e burros a cada ano que passa, quaisquer que fossem antes seus talentos e aptidões. Não hesito em declarar que, pela minha experiência pessoal, qualquer menino educado pela via do home schooling nos EUA está intelectualmente mais equipado do que a maioria dos “formadores de opinião” no Brasil, incluindo os luminares da grande mídia, os acadêmicos e os escritores de maior vendagem no mercado (imagino um debate entre qualquer deles e Kyle Williams, menino gordinho de quinze anos que, sem jamais ter freqüentado escola, faz sucesso como colunista político desde os doze – seria um massacre).

Não é preciso dizer que a essas mesmas criaturas, aliás, incumbe a culpa pelo presente estado de coisas. A instrumentalização – ou prostituição – completa da cultura no leito da “revolução cultural” gramsciana não poderia ter outro resultado, exatamente como anunciei no meu livro de 1993, A Nova Era e a Revolução Cultural.

Por orgulho, vaidade, ressentimento, desonestidade, covardia, sem contar a inépcia pura e simples e a ambição insana de poder absoluto sobre a mente popular, a liderança intelectual esquerdista fechou o Brasil num isolamento provinciano e incapacitante, sem o qual jamais teria sido possível esse paroxismo de inconsciência, essa apoteose da credulidade beócia, sem precedentes em toda a história universal, que foi a aposta maciça do eleitorado brasileiro na idoneidade do PT e na sabedoria infusa de um semi-analfabeto presunçoso.

Mas a consciência, ao contrário do dinheiro, parece fazer tanto menos falta quanto mais escasseia. Convocados quase que simultaneamente pelos dois house organs do esquerdismo brasileiro, que são os cadernos Mais! da Folha de S. Paulo e Prosa & Verso do Globo , para analisar o fenômeno do descalabro petista, os representantes mais badalados daquela liderança, os mesmos que há trinta anos dominam o palco dos debates públicos no país, lançam as culpas em tudo, exceto, é claro, na hegemonia esquerdista e no seu próprio trabalho incansável de carcereiros da inteligência.

No Mais! , César Benjamin tem ao menos o mérito de reconhecer que a corrupção petista não vem de hoje, não é súbito desvio de uma linha de conduta honesta e sim um mal antigo, de raízes profundas. Mas, na hora de explicar suas causas, apela, sem notar que se contradiz, ao subterfúgio usual de acusar a estratégia de acomodação com o “neoliberalismo”, supostamente adotada pelo governo Lula.

Reinaldo Gonçalves, economista da UFRJ, acha que o PT estaria melhor sem Lula, José Dirceu et caterva — intriga de família que, sinceramente, não é da nossa conta.

Paul Singer só se preocupa em recordar os bons tempos e tentar salvar a fé socialista. Sempre tive aliás a impressão de que os socialistas saem direto do pediatra para o geriatra.

O Prosa & Verso não se contenta em ouvir os gurus de sempre. Anuncia mais um ciclo de conferências da série “O Olhar”, “Os Sentidos da Pauxão” etc. – organizado pelo indefectível Adauto Novaes – no qual esses campeões de tagarelice comentarão, desta vez, “O Silêncio dos Intelectuais”, sugerindo que o Brasil está mal porque eles têm falado muito pouco.

Francisco de Oliveira explicita esse pensamento ao proclamar que a esquerda vem errando porque não trata com suficiente deferência os seus intelectuais – ele próprio, suponho, em primeiro lugar –, usando-os apenas como ornamentos em vez de se curvar às suas sábias lições.

O poeta Antônio Cícero divaga pelo passado histórico, exibindo sua incapacidade de discernir entre a Idade Média e o Renascimento e, quando vai chegando perto do assunto proposto, já acabou o artigo.

Sérgio Paulo Rouanet apela ao dever de “universalidade” dos intelectuais, que ele define como “pensar e agir em nome de todos”, como se a universalidade da verdade dependesse do apoio unânime das multidões e como se aquele dever não consistisse, com freqüência, em defender aquilo que todos rejeitam.

Renato Janine Ribeiro medita um pouquinho sobre “O que é ser intelectual de esquerda?” – decerto a mais interessante das perguntas para uma classe cuja principal tarefa é a contemplação extática do próprio umbigo.

Querem mais? Essas amostras bastam. A vacuidade, a falta de garra para apreender a substância dos fatos, a obscenidade espontânea e quase inocente com que esses sujeitos lambem em público o próprio ego grupal — tudo isso ilustra, ao mesmo tempo, a causa remota e o seu efeito presente: a total irresponsabilidade intelectual de ativistas ambiciosos desembocou, a longo prazo, numa degradação tamanha, que eles próprios, mergulhados nela, já não conseguem lembrar que a produziram fazendo exatamente o que estão fazendo agora.

A China no Walmart

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 20 de junho de 2005

Para saber quanto a intelligentzia brasileira está por fora do que se passa no mundo, basta uma visita ao Walmart em qualquer cidadezinha americana.

Setenta por cento dos produtos aí vendidos são chineses. Os dados são da revista China Business Weekly . “Se o Walmart fosse um país” – escreve Ted C. Fishman no seu recente livro China, Inc ., “seria o quinto maior mercado exportador da China, acima da Alemanha e da Inglaterra”.

E não é só no Walmart: em todos os supermercados populares dos EUA, é difícil encontrar algum móvel ou eletrodoméstico barato, com marca americana, que não seja fabricado na China.

Nenhum cidadão americano ignora o que isso significa: 2.900.000 vagas perdidas nas fábricas e a atrofia das velhas cidades industriais como Detroit, Cleveland, Allentown, Bethlehem e Pittsburgh. Alguns estudiosos de estratégia militar, como Jeffrey Nyquist – um dos homens mais inteligentes da América — vão um pouco além: sabem que os fregueses da rede mais barateira de supermercados da América estão financiando o crescimento da máquina de guerra chinesa, cujo objetivo explícito, já reiterado mil vezes em publicações militares da República Popular da China, é a destruição dos EUA (explicarei mais sobre isto nas próximas semanas). Essa máquina aumenta dia a dia seu estoque de bombas atômicas, num ritmo jamais conhecido pelos EUA e pela URSS durante a Guerra Fria, e investe maciçamente na produção de armas biológicas cujo estoque atual já seria suficiente para infectar toda a população americana em questão de horas. E, quando os estrategistas advertem que o gasto americano com produtos chineses fomenta o crescimento de um inimigo potencial, eles não se referem apenas ao ganho implícito que as forças armadas de qualquer país têm quando a economia nacional cresce. O Exército é o principal capitalista da China: ele lucra diretamente com a venda de cada TV, tocador de CD ou telefone celular que as fábricas chinesas vendem no exterior. E ganha em dobro, pois ao lucro se soma a verba que o governo chinês recolhe em impostos e repassa às forças armadas. Em dobro, não: em triplo, porque, quanto mais os produtos chineses fazem sucesso nos EUA, mais investimentos americanos vão para as empresas chinesas, isto é, para o Exército chinês.

É sobretudo graças à ajuda americana que a China cresce num ritmo capaz de fazer dela em 2012 a maior potência industrial e em 2050 a maior economia do mundo.

Nada disso, é claro, resulta em benefício considerável para o povo chinês. Em volta de cinco cidades que prosperam em ritmo alucinante, estende-se um continente de misérias que o público ocidental mal pode imaginar. O salário de um trabalhador na China é cinco vezes menor que no México. E não pensem que os serviços públicos – a desculpa máxima do socialismo — equilibrem a baixa remuneração. Os hospitais chineses, todos do governo, não fazem um parto, não engessam um braço, não arrancam um dente sem enviar a conta no fim do mês. A rede de água e esgotos é péssima em todo o interior, e a dificuldade de sobrevivência para as famílias camponesas é tanta que o governo se torna cúmplice delas na chamada “guerra contra as meninas”: o hábito de jogar as recém-nascidas aos porcos (e depois comer os porcos, é claro). A prosperidade chinesa não se assenta só na cegueira americana, é claro, mas na polícia política onipresente, no trabalho escravo, na esterilização forçada de milhões de mulheres e na perseguição maciça das minorias, especialmente religiosas (o número de cristãos assassinados pelo governo chega a vinte mil por ano). À violência e à crueldade de um Estado policial soma-se a sem-vergonhice institucionalizada: dos lucros da indústria chinesa, 50 bilhões de dólares anuais são em produtos falsificados.

Também não caiam na esparrela de imaginar que toda essa quantidade monumental de sofrimento humano tenha servido ao menos para preservar uma cultura milenar. A “Revolução Cultural” de Mao Tsé-tung devastou a cultura tradicional da China mais do que poderia tê-lo feito uma ocupação estrangeira. E o que sobrou foi totalmente deformado pelas reinterpretações oficiais que, incrivelmente, trataram de dar um sentido materialista aos clássicos da espiritualidade chinesa. Hoje, nas universidades de Pequim, é impossível encontrar um estudioso que compreenda o sentido do taoísmo ou o simbolismo do I-Ching. Se estudiosos ocidentais como René Guénon e Marcel Granet não tivessem preservado esses conhecimentos, o tesouro espiritual chinês estaria irremediavelmente perdido para a humanidade.

Ciência e tecnologia também não ganham nada com o investimento americano na China. A maior parte dos conhecimentos chineses nessa área é simplesmente comprada em Nova York ou na Flórida e copiada com a maior cara-de-pau. O que não se pode comprar em loja obtém-se por espionagem – às vezes sob a proteção do próprio governo americano, como aconteceu no caso do laboratório nuclear de Los Alamos, onde o presidente Clinton em pessoa mandou bloquear as investigações (nada mais lógico, aliás, uma vez que empresas estatais chinesas tinham contribuído substantivamente para a sua campanha eleitoral).

Como foi possível que tanto dinheiro americano fluísse para alimentar essa monstruosidade?

O nome do culpado é “globalização”. E é olhando as coisas desse ponto de vista que se percebe a total alienação da mídia brasileira e principalmente dos intelectuais iluminados que a freqüentam com suas lições de sabedoria. “Globalização”, para essa gente, é sinônimo de Império Americano. Nos nossos debates públicos, o triunfo da doutrina do livre mercado na década de 90 é apresentado invariavelmente como um artifício maquiavélico inventado por estrategistas de Wall Street para implantar no mundo o american way of life . Alguns desses estrategistas, de fato, alegavam que a abertura das fronteiras comerciais espalharia a democracia americana no mundo. Mas outros alertavam que a simples liberdade econômica não poderia operar essa mágica, sobretudo se adotada no ar, em abstrato, fora de um enfoque geopolítico que levasse em conta, para além da concorrência empresarial, a concorrência estratégica entre os Estados. A abertura econômica da China, diziam, era perfeitamente compatível com a continuidade da ditadura comunista e de uma política exterior agressiva, militarista e expansionista. Este lado do debate americano foi inteiramente ignorado pela nossa mídia: raciocinando exclusivamente na base do estereótipo Estado versus mercado, que se tornou o fetiche máximo do pensamento esquerdista nacional, ela identificou a priori o dogma do livre mercado com o interesse nacional americano, vendo uma convergência justamente onde os melhores analistas americanos viam uma contradição. A relação entre liberdade de mercado e interesse nacional é ambígua, para dizer o mínimo, e se torna altamente problemática quando não há reciprocidade suficiente na abertura dos mercados de parte a parte, isto é, quando um dos Estados aposta tudo na liberdade econômica e o outro no crescimento do poder nacional, usando como arma a abertura oferecida pelo outro. A abertura econômica é fórmula boa para as relações entre povos comerciantes. Mas, entre o comerciante e o guerreiro, a vantagem a favor deste último é esmagadora. No romance de Flaubert, Salammbo , dois mercenários conversam sobre o que planejam fazer quando a guerra entre Roma e Cartago acabar. Um deles sonha comprar uma fazenda e um arado, para enriquecer no comércio de alimentos. O outro responde que não precisa de nada disso para enriquecer. Mostrando a espada, diz: “Este é o meu arado.” Tal é a diferença entre americanos e chineses: os primeiros apostam no sucesso de um sistema econômico; os segundos usam esse sucesso como meio provisório para crescer e vencer no campo das armas. Os americanos querem apenas dinheiro, e se iludem pensando que os chineses querem o mesmo. Os chineses alimentam essa ilusão, apostando que ela os ajudará a obter o que querem: o dinheiro e tudo o mais – a completa destruição cultural, política, militar e econômica do inimigo. No começo, as apologias abstratas do livre mercado tendiam a encobrir essa diferença. Hoje ela é patente aos olhos de todos, e é nela, exclusivamente nela, que reside a causa do crescimento inusitado da China, paralelamente ao enfraquecimento da indústria americana.

As relações entre ideologia e poder são obviamente mais complexas do que as concebe a vã filosofia das classes falantes brasileiras. O que um observador atento aprende no Walmart é que a doutrina do capitalismo liberal pode ajudar a liquidar o capitalismo liberal, fomentando o crescimento de uma ditadura comunista tão agressiva, pelo menos, quanto a antiga URSS.

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