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Saltos qualitativos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de dezembro de 2011

Quando falo da transmutação de direitos humanos elementares em instrumentos de controle opressivo, por favor resguardem-se de ver nesse fenômeno um processo histórico-social espontâneo, um “resultado impremeditado das ações humanas”, como diria Max Weber. É transformação planejada. Estrategistas de grande porte controlam o processo, sabendo que os resultados finais serão muito diferentes daqueles esperados pela massa ignara de militantes, idiotas úteis e, é claro, inimigos também. Nenhuma proposta social vinda de cérebros marxistas tem jamais – repito: jamais – as finalidades nominais com que se apresenta ao público geral. As verdadeiras finalidades só são conhecidas daqueles que têm as qualificações intelectuais para participar das discussões sérias num círculo mais discreto de planejadores e líderes. Nada é secreto, mas, na prática, a lógica da coisa é inacessível tanto aos militantes comuns quanto, mais ainda, ao público leigo.

Um exemplo clássico é a estratégia Cloward-Piven (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/090305dc.html), alardeada como um plano de ajuda aos desamparados, mas, no círculo íntimo, admitida francamente como um artifício para gerar crise econômica, quebrar a previdência social e deixar, no fim das contas, os desamparados ainda mais desamparados – o que será em seguida explorado para impelir ao movimento um “salto qualitativo”, passando das meras reivindicações previdenciárias ao clamor revolucionário ostensivo do Occupy Wall Street. Tudo isso pensado com meio século de antecedência. O público leigo e mesmo os analistas políticos usuais logo perdem o fio da meada e não atinam com a continuidade do processo, enquanto os planejadores comunistas, habituados a cálculos de longuíssimo prazo, vão conduzindo o fluxo da transformação desde uma confortável invisibilidade, disfarçados em “fatores estruturais”, “causas sociais” e mil e uma camuflagens verbais elegantes que impedem o público de enxergar os verdadeiros agentes por trás de tudo.

A expressão “salto qualitativo” é a chave do negócio. Nenhum intelectual marxista de certo gabarito ignora essa teoria de inspiração hegeliana, exposta por Mao Dzedong mas implícita na doutrina de Marx desde o começo. Diz ela que qualquer acumulação quantitativa, ultrapassado um certo limite, produz uma mudança da qualidade, do estado, das propriedades do fator acumulado. O exemplo clássico dado por Mao é o da água que, aquecida, se transforma em vapor, perdendo propriedades que tinha no estado líquido e adquirindo novas que são inerentes ao estado gasoso.

Não é, como pensava Mao, uma lei universal, aplicável a todas as esferas da realidade. É no entanto uma constatação empírica, que vale para certos conjuntos de fenômenos, especialmente da sociedade humana. Baseei-me nela, por exemplo, para descrever a figura do “metacapitalista”: o sujeito que enriquece tanto com a liberdade econômica que, depois de um certo ponto, já não pode mais sujeitar-se às oscilações do mercado e tem de passar a controlá-lo. A transfiguração do capitalista em monopolista é um “salto qualitativo”. A imagem da água e do vapor não é uma fórmula geral, é apenas um símbolo, que condensa analogicamente vários processos similares. Mas, dentro de certos limites, esses processos funcionam.

Sempre que a intelligentzia revolucionária lança campanhas que persistentemente impelem a sociedade numa certa direção, é porque sabe que o acúmulo de forças nessa direção chegará por fim a um “salto qualitativo”, desviando o conjunto para um rumo totalmente diverso e produzindo resultados que a maioria sonsa contemplará atônita, sem saber de onde vieram. Só à luz do cálculo marxista esses resultados fazem sentido, mas mesmo dentro do movimento revolucionário só os happy few sabem fazer esse cálculo e gerenciar sua aplicação racional. Não é assunto para qualquer militante bobão, nem para qualquer bobão liberal-conservador que meça o QI dos comunistas pelo dele próprio.

A facilidade com que os artífices da mutação revolucionária levam a sociedade para onde bem desejam contrasta da maneira mais patética, é verdade, com a sua total incapacidade de criar uma economia decente a partir do momento em que destróem o último inimigo e assumem o controle absoluto do poder estatal.

Os liberais, que só pensam em economia e vêem a impotência do socialismo nessa área, deduzem daí que o marxismo é falso em tudo, um amontoado de besteiras que não merece atenção. Mas o marxismo só é uma teoria econômica em aparência. Ele é, a rigor, a teoria e estratégia da transformação revolucionária da sociedade – e, nesse campo, é perfeitamente realista e eficiente. O fato de que não sirva para fazer uma economia prosperar não significa que seja incapaz de destruir muitas economias, muitas sociedades, muitas nações, e, mesmo no meio do mais majestoso fracasso econômico, aumentar o poder internacional da elite revolucionária, como de fato aconteceu desde a queda da URSS. O sentimento de superioridade que os liberais têm ante o marxismo é como o de um empresário de boxe que, por saber fazer dinheiro com esse esporte, se imaginasse também habilitado a subir ao ringue e nocautear Wladimir Klitschko. Não existe superioridade absoluta, transferível automaticamente a todos os domínios da ação humana. Eu, por exemplo, sou capaz de fazer em picadinhos qualquer debatedor comunista que se meta a besta comigo, mas, se fosse competir com um deles em matéria de sugar verbas estatais, não saberia nem por onde começar. Quanto mais eles perdem a discussão, mais se enchem de dinheiro.

Perguntas proibidas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de agosto de 2011

Max Weber, quando o acusavam de exagerar em seus diagnósticos, respondia: “Exagerar é a minha profissão!” A boutade referia-se, naturalmente, à técnica dos “tipos ideais”, com que o autor de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, ao descrever uma conduta, um sentimento, uma atitude, ampliava certos traços típicos para maior nitidez do objeto puro, isolado de diferenças e semelhanças acidentais. Mas referia-se também, mais profundamente, à missão do cientista social em geral, que tem de olhar as coisas numa escala que não é a da atualidade patente, visível nos debates públicos e na mídia popular, mas deve cavar em busca das sementes, não raro modestas e discretíssimas, onde o futuro está se gerando longe dos olhos da multidão. Se há uma coisa que nenhum estudioso da sociedade e da História tem o direito de ignorar, é que o poder dos fatores determinantes do curso das coisas é, no mais das vezes, inversamente proporcional à sua visibilidade presente. Daí o descompasso entre os respectivos “sensos de realidade” dos observadores do dia a dia, meros constatadores do fato consumado, e o do estudioso que mergulha em águas profundas para saber o que há de vir à superfície amanhã ou depois. Com o agravante de que o fato consumado só faz sentido para quem o viu crescer desde as raízes. Para os demais, tudo é surpresa desnorteante ou mera coincidência.

Mas, quando digo “cientista social”, uso o termo como um tipo ideal weberiano. Refere-se ao que os cientistas sociais deveriam fazer para merecer o título, não ao que os profissionais universitários que o ostentam estão fazendo realmente no Brasil de hoje. Estes, coitados, não conseguem acompanhar nem o fato consumado, tão presos estão aos seus esquemas mentais rotineiros, à pressão dos seus pares e ao temor de desagradar à mídia. Não ousam sequer fazer perguntas, como por exemplo: Quantos assentados do MST foram recrutados entre militantes urbanos, falsificando completamente o panorama dos “conflitos rurais”? Qual é o peso estatístico real de duzentos assassinatos de homossexuais num país que tem 50 mil homicídios por ano, mesmo sem averiguar quantos daqueles foram assassinados por seus parceiros? Quantas pesquisas sociológicas com resultado previamente estabelecido pelas fundações estrangeiras que as financiaram foram realizadas nas universidades brasileiras nos últimos anos, e quantas foram em seguida usadas como material de propaganda por ONGs e “movimentos sociais”, se não como argumento cabal para justificar leis e decretos? Quanto dos benefícios distribuídos pelo governo federal aos pobres foi pago com puro dinheiro de empréstimos, endividando as gerações vindouras para ganhar os votos da presente? Quantos crimes de morte são praticados com armas legais registradas, e quanto com armas clandestinas cuja circulação o tal “desarmamento civil” não poderá diminuir em nada? Quantas leis e decisões federais vieram prontas de organismos internacionais e tiveram seu caminho aplanado por campanhas bilionárias financiadas do exterior? Quantas delas vieram de decisões tomadas no Foro de São Paulo com anos de antecedência, em assembléias promíscuas onde terroristas, narcotraficantes e seqüestradores debatem em pé de igualdade com políticos eleitos? Se for liberado o comércio de drogas, quem terá mais chances objetivas de dominar esse mercado?

Sem fazer essas perguntas, ninguém pode compreender nada do que está acontecendo neste país, muito menos o que está para acontecer. Mas cada uma delas é um tabu. O simples pensamento de vir a formulá-las um dia já basta para fazer um profissional universitário tremer desde os alicerces, prevendo os olhares de ódio que fulminarão sua pessoa e sua carreira – ao menos ele assim o imagina – tão logo comece a falar. Sim, o brasileiro de hoje em dia – e os cientistas sociais não são exceções – é aquele sujeito valente que teme olhares e caretas como se fossem balas de canhão, que enfia o rabo entre as pernas à simples idéia de que falem mal dele, que troca a honra e a liberdade por um olhar de simpatia paternal de quem o despreza.

É por isso que os processos históricos profundos, que estão mudando a face do Brasil com uma rapidez avassaladora, passam ainda despercebidos até àqueles mesmos que, arrastados na voragem de leis, decretos e portarias, perdem prestígio e poder a cada dia que passa e, iludidos por vantagens financeiras imediatas que o governo atira à sua mesa como migalhas, não ousam nem confessar uns aos outros que estão sendo jogados à lata de lixo da História.

Não vi até agora um único analista político, na mídia ou nas universidades, declarar em voz alta aquilo que, nos altos escalões do petismo e do Foro de São Paulo, todo mundo sabe: a fase da revolução cultural terminou, já estamos em plena revolução social. Explicarei isso melhor no próximo artigo.

A lógica da destruição

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 06 de agosto de 2007

Não conheço hoje em dia um único esquerdista que consiga ler uma página inteira de Hegel, mas na prática a conduta política e até pessoal de todos eles reflete a lógica do filósofo de Jena com uma exatidão quase literal. O modo dialético de pensar se impregnou tão profundamente na cultura do movimento revolucionário, que se transmite aos militantes, simpatizantes e “companheiros de viagem” por impregnação passiva de hábitos, de símbolos, de reações emocionais, de giros de linguagem, sem necessidade de aprendizado consciente nem possibilidade de filtragem crítica.

            Os adversários do esquerdismo, por sua vez, estão de tal modo habituados a esquemas de pensamento lógico-formais, absorvidos seja das ciências naturais, seja da economia austríaca, seja mesmo da formação escolástica no caso dos católicos, que tendem incoercivelmente a explicar a conduta esquerdista em termos da coerência linear entre doutrina e prática, ou entre fins e meios, e assim perdem de vista o que há de mais característico no movimento revolucionário, que é justamente o aproveitamento sistemático das contradições. Só isso pode explicar que seus repetidos sucessos no campo econômico e tecnológico sejam acompanhados de derrotas cada vez mais espetaculares na cultura e na política.

Não posso aqui dar um resumo da filosofia de Hegel, mas há alguns pontos mínimos sem os quais nenhuma compreensão da mente esquerdista é possível. Quem não tiver a paciência de aprendê-los deve portanto conformar-se em ser vítima inerme e cega do processo revolucionário, sem direito a sentir-se perplexo quando este o conduzir a um campo de trabalhos forçados ou à vala comum dos “inimigos de classe”.

Desde que Platão enfatizou a separação entre o mundo dos entes corpóreos e o mundo das “idéias” (ou mais propriamente “formas”), a distinção entre o absoluto e o relativo, entre o Ser e os entes, entre o permanente e o transitório, entre estrutura e processo, se incorporou às raízes do pensamento filosófico e científico no Ocidente ao ponto de que não é exagero resumir todo o esforço intelectual de dois milênios e meio na busca dos fatores estáveis por trás dos fenômenos em mudança. A idéia mesma de “leis científicas” é isso e nada mais.

O empreendimento de Hegel consistiu em introduzir nesse sistema de distinções uma confusão profunda, geral e aparentemente insanável. Partindo da observação milenar de que o mundo dos fenômenos é uma aparência ou manifestação do fundamento absoluto, ele dá um giro de cento e oitenta graus na relação entre os dois mundos e reduz o absoluto ao conjunto das suas manifestações relativas. Diz ele que o Ser, considerado em si mesmo, é idêntico ao nada; só a sucessão das suas manifestações temporais lhe dá alguma consistência; logo, o tempo é a substância da eternidade, o devir é a única realidade do ser. Já expliquei em outro lugar por que essas teses são absurdas e por que não acredito que Hegel as tenha emitido por mero engano, e sim por vigarice consciente (v. O Jardim das Aflições , São Paulo, É Realizações, 2004, pp. 168-169 e 176-179). Mas o que interessa aqui é mostrar as conseqüências metodológicas que ele tirou delas, pois foram essas conseqüências que acabaram por moldar a mentalidade do movimento revolucionário.

Se o devir é o Ser e se o único processo autoconsciente no conjunto do devir é a história humana, esta se torna automaticamente o campo por excelência da auto-realização do Ser. O Espírito, o Absoluto ou Deus é uma potencialidade inconsciente de si, que só se conhece e se realiza no processo histórico tal como Hegel o compreende (o que implica, naturalmente, que Hegel em pessoa seja o ponto mais alto da autoconsciência divina, modéstia à parte). Como no curso do processo todos os momentos altos e baixos são igualmente necessários, todos eles são igualmente portadores da verdade. A diferença entre a aparência e a realidade, que para o pensamento antigo coincidia com a fronteira entre o transitório e o permanente, é assim sutilmente deslocada para dentro do terreno do próprio transitório: a única verdade de cada fenômeno é o lugar que ele ocupa no conjunto do processo (tal como Hegel entende o processo). O falso, o ilusório, é apenas o que está isolado do processo, mas, como nada está isolado do processo, o falso não existe, é apenas uma aparência de falsidade. A verdade, por sua vez, consiste apenas em estar inserido no fluxo total, isto é, em ir para onde Hegel acha que as coisas vão.

Essa é a lei profunda que orienta e unifica o movimento revolucionário em todas as suas variantes e modificações. Por exemplo, é notório que Marx ou Lênin jamais se preocuparam em descrever como seria a futura sociedade socialista. Ao mesmo tempo, asseguram que todo o movimento histórico vai na direção do socialismo. Mas como é possível saber com certeza que um certo desenlace é inevitável, se não se sabe nem mesmo dizer que desenlace é esse? A resposta implícita é a seguinte: não é a finalidade que determina o processo, mas o processo é que determina a finalidade. Esta não é senão o processo mesmo considerado na sua totalidade. Isso implica, naturalmente, que a finalidade conscientemente alegada em cada momento pode mudar de figura um número infinito de vezes sem que se perca a unidade do processo. Por isso é que os esquerdistas tanto mais se apegam à unidade do movimento revolucionário quanto mais os objetivos pelos quais lutam em vários lugares e momentos são inconexos e contraditórios entre si. Os militantes seguem a liderança com igual fidelidade quando ela os manda fomentar a economia de mercado ou substituí-la pela estatização dos meios de produção; quando ela os manda combater todo nacionalismo como expressão da obstinação reacionária ou, ao contrário, criar movimentos nacionalistas; quando ela apóia o nazismo ou luta contra o nazismo; quando ela condena a liberdade sexual como sinal da decadência burguesa ou quando ela fomenta a mais extrema anarquia erótica contra o império do “moralismo burguês”. E assim por diante. O observador alheio às sutilezas do esquerdismo vê nisso incoerências escandalosas que, a seu ver, ameaçam a unidade do movimento revolucionário ao ponto de torná-lo inofensivo perante os triunfos econômicos e técnicos do capitalismo. Mas é dessas incoerências que se alimenta o processo – e o processo é tudo. Quando já no século XIX os revolucionários adotaram o uso de designar-se a si próprios genericamente como “o movimento”, estava claro para eles que a unidade desse movimento não estava na luta por objetivos definidos, mas na capacidade ilimitada de comandar o processo total das transformações, pouco importando a direção para onde estas fossem a cada momento. A ambigüidade, as manobras em zigue-zague, a incoerência mais alucinante incorporaram-se não só à práxis do movimento revolucionário, mas à personalidade de cada um dos seus participantes, tornando-as virtualmente incompreensíveis ao adversário que desconheça dialética de Hegel.

Hegel acrescentou a essa concepção a idéia peculiarmente diabólica do “trabalho do negativo”. O movimento deve reduzir ao mínimo indispensável o compromisso com objetivos definidos e concentrar-se na destruição do existente. A destruição acabará determinando os objetivos em cada etapa, pronta a trocá-los no instante seguinte se isto for útil à unidade do processo.

A mobilidade que esse modo de pensar confere à ação revolucionária desnorteia por completo o adversário, que ao opor-se aos objetivos momentâneos da revolução nem imagina que pode já estar colaborando com a próxima etapa do processo. Um dos aspectos mais perversos da mente revolucionária é justamente que nela é impossível distinguir com clareza a ação profunda e a camuflagem externa. O que num momento é mera camuflagem e pretexto pode se transformar em objetivo real da ação no instante seguinte, e vice-versa. Quando o adversário imagina que desvendou o ardil revolucionário, o ardil já se transformou no seu oposto. O governo militar brasileiro, por exemplo, achou que perseguindo a “esquerda armada” e fazendo vista grossa às ações aparentemente inócuas da “esquerda desarmada” estava dividindo e enfraquecendo o movimento revolucionário. Mas a ala desarmada se aproveitou dessa mesma divisão para ir tecendo em segredo a rede da hegemonia cultural gramsciana enquanto os soldados trocavam tiros com Marighela e Lamarca. Quando o regime caiu, a esquerda que parecia vencida se levantou como que do nada e rapidamente dominou o país, fazendo da derrota das guerrilhas uma vitória política espetacular.

O movimento revolucionário, enfim, não obedece às leis da “ação racional segundo fins” conforme as definia Max Weber e pelas quais o adversário procura em vão explicá-la. Na ação normal humana, a distinção entre meios e fins é essencial ao ponto de que o predomínio dos meios serve como prova de que os fins não foram atingidos. Quando, ao contrário, o objetivo é nebulosamente indefinido e tudo quanto conta é a unidade profunda do movimento em si, os meios transformam-se incessantemente em fins e os fins em meios e pretextos. Alguns estudiosos de Hegel disseram que sua Lógica não é propriamente uma lógica, mas uma ontologia, uma teoria sobre a estrutura da realidade. Acreditei nisso durante algum tempo, mas hoje vejo que não pode haver uma teoria do ser quando se começa por dissolver a substância do ser na idéia do processo. A lógica de Hegel é nada mais que uma psicologia, um estudo dos processos cognitivos que orientam (ou melhor, desorientam) o movimento da história humana. Sob certos aspectos, é mesmo uma psicopatologia – a lógica interna do desvario revolucionário.

É interessante, por exemplo, observar a imensa distância que há entre os critérios de veracidade do revolucionário e os do intelectual ou homem de ação formado na tradição ocidental da lógica e da ciência. Para estes últimos, a verdade é o pensamento confirmado pela experiência, de modo que as verdades podem ser conhecidas uma a uma, articulando-se aos poucos em conjuntos maiores. Para o revolucionário hegeliano, ao contrário, não existe a verdade dos fatos nem a verdade do ser: a única verdade é a do processo histórico, isto é, a verdade da revolução. Cada idéia ou proposição que se pretenda verdadeira deve portanto ser julgada tão somente pelo papel que desempenha no conjunto do processo. Se ela o faz avançar ou fortalece, ela é verdadeira; caso contrário é falsa, mesmo que coincida com os fatos. Vou lhes dar um exemplo local. Quando começaram a espoucar os movimentos de protesto contra o governo Lula, a reação dos porta-vozes petistas foi imediatamente atribuí-los às “elites”. Mas não era o próprio PT que, poucos meses antes das eleições de 2002 e 2006, se gabava de ter (e tinha mesmo) o voto da classe mais culta, portanto mais rica, enquanto os demais partidos exploravam a credulidade de uma multidão de pobres analfabetos? É inútil, diante disso, acusar o petismo de hipocrisia. A hipocrisia subentende a distinção entre a verdade conhecida e a falsidade alegada. Mas, na perspectiva revolucionária, verdade e falsidade factuais são intercambiáveis, já que não existe verdade no nível dos fatos e sim apenas no processo como um todo. Fortalecer o partido revolucionário é realizar a verdade do processo, que abarca e transcende ou anula as verdades parciais e transforma as falsidades em verdades. Ser o partido dos pobres é uma imagem que fortalece o partido revolucionário, mas ser o partido das pessoas cultas também o fortalece. A ênfase do discurso pode portanto recair num ponto ou no outro conforme as circunstâncias. Fatos e pretextos são apenas a matéria plástica com que o discurso revolucionário molda a verdade do processo, isto é, a sua própria vitória.

Outro exemplo. O mesmo movimento revolucionário que criminaliza a religião, lutando para eliminá-la por meios que vão da propaganda ao genocídio, busca se traduzir numa linguagem religiosa que o apresenta como a mais pura e elevada expressão dos ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Novamente, a verdade não está nem na pregação anti-religiosa nem na parasitagem do Evangelho: está no processo que se fortalece e se amplia pela força dessa mesma contradição, absorvendo ao mesmo tempo a energia da crença religiosa e a do ódio anti-religioso.

Pessoalmente, já fui acusado por esquerdistas de ser um pobretão fracassado e de ser um afilhado de poderosos, beneficiado por um fluxo abundante de verbas misteriosas. Não sou tolo o bastante para denunciar isso como contradição. Se o processo tem de avançar seja pela afirmação seja pela negação, seu adversário tem de ser acusado e destruído per fas et per nefas , como o cordeiro da fábula. Isto pode nos parecer o cúmulo da canalhice, mas nenhuma canalhice em particular se compara com a mãe de todas as canalhices, que é o movimento revolucionário em si. O militante que o serve por meio de uma conduta moralmente impecável – segundo critérios “burgueses” de julgamento – pode parecer mais aceitável aos observadores ignorantes do que o trapaceiro compulsivo tipo José Dirceu ou Lula. Mas ele sabe perfeitamente que sua elevada moralidade é a camuflagem com que o movimento encobre as ações dos embusteiros e vigaristas, tão necessárias quanto as dele e unidas a elas por um nexo de solidariedade essencial. O “esquerdista honesto”, no fundo, é o mais vigarista de todos. Onde o verdadeiro e o falso são intercambiáveis, também têm de sê-lo o certo e o errado, o lícito e o ilícito.

Mas o abismo entre a mente revolucionária e a lógica do homem comum vai ainda mais fundo. Este último acredita que pode conhecer verdades parciais por observação direta e inferência simples, mesmo ignorando as verdades últimas e supremas. Não é preciso ser um sábio ou profeta iluminado para distinguir a verdade e o erro nas situações imediatas. Qualquer que seja o sentido último da existência, e mesmo supondo-se que jamais venhamos a conhecê-lo, os fatos são os fatos, e eles julgam a veracidade ou falsidade das nossas idéias. Para o revolucionário, no entanto, os fatos são aparências parciais ambíguas, cuja única veracidade está no “todo”, isto é, no conjunto do processo revolucionário. É este que julga os fatos, sem poder ser julgado por eles. A diferença de planos entre esses dois modos de apreensão da realidade é irredutível e imensurável. Os fatos são conhecidos por intuição direta a partir dos sentidos. O “processo”, ao contrário, é uma construção mental complexa, uma teoria. O homem comum, quando constrói teorias, as erige com base nos fatos e testa sua veracidade pelos fatos. O revolucionário não pode fazer isso. Ele inverte portanto a ordem racional do “dado” e do “construído”, do evidente e do hipotético, tomando este último como verdade imediata e aquele como sinal algébrico cujo valor só a teoria, realizando o processo num prazo incerto e por meios imprevisíveis, poderá decidir. Não há, pois, diálogo entre o revolucionário e o homem comum. Este não entende a lógica daquele, aquele rejeita e destrói pela violência da teoria e da práxis os critérios de veracidade em que este deposita toda a sua confiança.

Esse abismo cognitivo revela-se, a todo momento, nas análises e previsões que os conservadores e liberais inexperientes em estudos revolucionários insistem em fazer de um processo cuja lógica lhes escapa no todo e nos detalhes. Eles se escandalizam, por exemplo, de que o partido líder das campanhas moralizantes tenha se transformado no mais corrupto de todos os partidos tão logo seu chefe chegou à Presidência. Apelam até ao adágio “O poder corrompe”, explicando o contraste pelas más companhias, sem notar as únicas más companhias visíveis no horizonte são os chamados “neoliberais”, isto é, eles mesmos, que assim aparecem no fim das contas como os culpados dos crimes do partido governante, com grande regozijo para as facções de esquerda que desejam se desvincular da imagem do PT conservando intacto o mito da santidade esquerdista. Mas é claro, para quem conhece o assunto, que não há contradição objetiva nenhuma entre o virulento moralismo petista dos anos 90 e o festival de devassidão governamental da década seguinte. Ambos são momentos do processo, igualmente necessários, igualmente úteis, igualmente meritórios do ponto de vista da moral revolucionária. Ambos fazem parte do “trabalho do negativo”: a onda de acusações indignadas destrói a confiança pública nas instituições, a corrupção desde cima desmantela a ordem legal para que o Partido se sobreponha ao Estado e o neutralize.

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