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A arte de mentir

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 6 de outubro de 2005

No jornalismo há muitos tipos de fraude. O mais banal é ofuscar os leitores com um título, na esperança de que não leiam a matéria ou não percebam que ela o desmente.

“A maioria das armas do crime teve origem legal”, proclama O Globo de 4 de outubro. No cérebro do leitor, a conclusão é instantânea: o grosso da violência no Brasil não é causado pelos criminosos assíduos, mas por pessoas de bem que “matam por motivos fúteis”. Urge portanto desarmá-las. Desarmar os bandidos é secundário.

No texto, a informação, baseada numa pesquisa da polícia carioca, não é bem essa: é que, “de um total de 86 mil armas apreendidas de criminosos desde 1999, 33% eram do chamado estoque legal — com registro… Outras 39% eram do estoque informal — originalmente pertenciam a pessoas sem antecedentes criminais, mas nunca foram registradas. Apenas 28% tinham origem criminosa… Do total de armas registradas, cerca de dois terços pertenciam a pessoas físicas, um terço ao Estado (polícias, Forças Armadas etc.)”.

Basta você ler com atenção e a fraude embutida salta do pacote gritando: “Surpresa!”, como aquelas garotas do bolo de aniversário nos filmes de máfia. Armas sem registro não provêm do comércio lícito. Estão fora da lei. Classificá-las eufemisticamente de “informais” não modifica em nada a sua condição. Portanto, 67 por cento das armas apreendidas eram ilegais. Sessenta e sete? Nada disso. Dos 33 por cento restantes, um terço pertencia ao Estado. Sobram 22 por cento de armas lícitas roubadas. Setenta e oito por cento das armas usadas na prática de crimes ao longo de seis anos eram de origem ilegal. Exatamente o contrário do que diz o título.

O jornal ainda reforça a informação errônea explicitando a sua conclusão, para maior didatismo do engano: “Para Rubem César Fernandes, do Viva Rio, a pesquisa é um argumento único a favor do desarmamento no Brasil.” Único no sentido de ímpar, inigualado, lindão mesmo.

Aí o engodo aparentemente simples do título sobe às alturas de uma fraude lógica requintada. Pois aqueles 22 por cento abrangem somente armas de origem legal que passaram às mãos de criminosos. Não incluem de maneira alguma as que permanecem em poder de seus donos legítimos – aqueles mesmos cidadãos de bem que matam por nada, por frescura, em transes repentinos e inexplicáveis. Se estes e não os bandidos, segundo o discurso desarmamentista, são os responsáveis pela maior quota de crimes com armas de fogo, então é óbvio que, quanto mais armas são roubadas dessas perigosas criaturas e postas a serviço da bandidagem, mais diminui o poder de fogo da parcela mais perigosa da sociedade. O roubo de armas, nessa perspectiva, é uma ajuda providencial que os delinqüentes dão à manutenção da ordem pública. A análise do discurso desarmamentista revela implacavelmente essa premissa maior oculta. O desarmamentista coerente, em busca de um “argumento ímpar” para a proibição do comércio de armas, o encontraria portanto num índice baixo, e não alto, de armas legais roubadas. O índice é realmente baixo, como o demonstra a pesquisa. Mas a premissa maior é imoral e absurda demais para ser declarada em voz alta. Para tornar o silogismo digerível é preciso então uma dupla camuflagem: inverter as proporções no título e em seguida convocar o sr. Rubem César para tirar delas uma conclusão também invertida. Tudo parece lógico e veraz, quando é completamente irracional e falso.

É que a inverdade, por si, às vezes não pega. Para aumentar sua aderência é preciso acrescentar-lhe uma dose de absurdo. Não basta mentir: é preciso estontear a vítima para que, mesmo percebendo vagamente a mentira, não consiga discerni-la da verdade.

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“João Figueiredo: Missão Cumprida”, coletânea organizada por Gilberto Paim, com colaborações de Paulo Mercadante, Jarbas Passarinho e outros (Rio, Escrita, 2005), é um ato de coragem. É preciso uma lucidez destemida para admitir o que no fundo todo mundo sabe: que, comparado a Lula, Figueiredo foi um ótimo presidente.

Fontes primárias

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 29 de setembro de 2005

No jornalismo como na ciência histórica, a condição número um da busca da verdade é a supremacia das fontes primárias — aquelas informações que vêm diretamente dos personagens atuantes ou das testemunhas mais próximas. Uma vez firmada a sua autenticidade, elas quase sempre têm, por si, o poder de restabelecer os fatos, separando-os do erro e da mentira.

Três exemplos:

1) No discurso que fez na celebração dos quinze anos de fundação do Foro de São Paulo, em 2 de julho deste ano, o sr. presidente da República confessa que submeteu a uma assembléia de estrangeiros ­– Fidel Castro, Hugo Chávez, os narcoguerrilheiros das Farc e os seqüestradores do MIR chileno, entre outros – decisões fundamentais da política externa brasileira, ocultando-as deliberadamente do Congresso, da Justiça e da opinião pública. A íntegra do documento está no site oficial, http://www.info.planalto.gov. br/download/discursos/pr812a .doc. Uma análise mais extensa pode ser lida em http://www.olavodecarvalho.org/semana/050926dc.htm.

Os brasileiros já se tornaram sonsos e insensíveis, mas é improvável que pelo menos alguns deles, civis ou militares, não percebam que um governante capaz de extinguir por arbítrio próprio a soberania nacional, de esconder isso durante anos e de confessá-lo depois com vaidosa presunção como se tivesse feito algo de meritório, não deve ficar na presidência por mais um minuto sequer. O que é possível, sim, é que todos o percebam, mas, acanalhados pela prática diária da covardia disfarçada de esperteza, consigam fingir que não perceberam. Isso, no Brasil, já virou quase uma regra moral, um imperativo categórico.

2) A “Carta de um Desertor” reproduzida pelo jornal coreano Daily NK do dia 27 traz o relato de um fugitivo da Coréia do Norte que, capturado na China, sofreu torturas hediondas que culminaram na amputação de seus dois pés. O documento, com fotos da vítima, está em http://www.dailynk.com/english/read.php?cataId=nk00100&num=291.

Embora sejam abundantes e em geral de fácil confirmação os relatos como esse, bem como os apelos desesperados vindos de prisioneiros políticos vietnamitas, cubanos e chineses, a mídia brasileira inteira – como aliás boa parte da americana – faz questão estrita de manter tudo isso longe dos olhos do público. Assim fica fácil persuadir a multidão de que o máximo de crueldade concebível são aquelas brincadeiras de mau gosto feitas pelos americanos com os agentes de Saddam Hussein em Abu Ghraib. Afinal, que são dois pés a mais ou a menos, em comparação com a dor suprema – oh! o horror! o horror! — de ouvir uns gritos ou de ser filmado com uma calcinha na cabeça ?

3) No artigo da semana passada, falei do suicídio de Salvador Allende, substituído no imaginário popular pela lenda do homicídio praticado pelas tropas rebeldes. Graças ao repórter brasileiro Ib Teixeira, a versão fantasiosa foi por fim desmoralizada mediante o testemunho do médico de Allende, que encontrou o ex-presidente morto, com uma metralhadora na mão, bem antes que as tropas de Pinochet entrassem no Palácio de La Moneda. Mas o depoimento, na verdade, só inocentava os golpistas, não provava o suicídio. Pois agora fico sabendo que não foi suicídio mesmo: Allende foi assassinado por agentes da inteligência cubana para impedir que se rendesse. Uma eficiente rajada de metralhadora transfigurou o derrotista covarde num mártir cujo cadáver pôde então ser utilmente explorado pela propaganda comunista. A história está no livro Cuba Nostra: Les Secrets d’Etat de Fidel Castro, publicado pela Plon em Paris, que o jornalista Alain Ammar escreveu com base em declarações de alguns dos próprios agentes cubanos do entourage de Allende. Um resumo encontra-se em http://www.midiasemmascara.org/artigo.php?sid=4132.

Vocês entendem agora por que o jornalismo brasileiro tem um sacrossanto horror às fontes primárias, preferindo sempre as opiniões de “especialistas” e “intelectuais”?

O Mensalão de Allende

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 22 de setembro de 2005

Se vocês querem uma pequena amostra de como funciona o serviço de desinformação comunista nos jornais brasileiros, leiam esta notícia:

”Um livro a ser lançado no próximos dias deve revelar que os soviéticos já desconfiavam da capacidade do presidente chileno Salvador Allende de manter-se no poder. Segundo os autores, o desertor da KGB Vasily Mitrokhin e o historiador Christopher Andrew, o Kremlin acreditava que Allende estava cometendo um erro fundamental ao resistir em usar a força contra seus inimigos. Um resumo do livro O Arquivo Mitrokhin foi publicado ontem pelo jornal britânico The Times .”

Ao ler isso no Estadão, fiquei desconfiado. A prudência recomenda suspeitar de tudo o que se publica na mídia nacional sobre comunismo, regime militar, Cuba, Hugo Chavez e assuntos correlatos. No caso, a suspeita era maior ainda por três motivos.

Primeiro: eu já era jornalista no tempo da Unidade Popular. Acompanhava seus feitos diariamente, com entusiasmo idiota de jovem esquerdista. Lembrava-me, pois, claramente, de que Allende não havia deixado de usar de violência contra os inimigos. Sua guarda pessoal matara vários deles. Na ocasião, isso me parecia pouco. Como todos os ”companheiros”, eu queria ver o sangue da burguesia jorrando em quantidades deslumbrantes. Mas negar que o nosso ídolo chileno tivesse derramado algum era impossível.

Segundo: tendo lido o primeiro volume do livro, publicado em 1999 (o Estadão nem sequer o menciona), eu sabia que Mitrokhin, alto funcionário encarregado de fiscalizar a mudança dos arquivos da KGB de um prédio para outro, tinha pouquíssimo tempo para copiar diariamente o que podia dos documentos. Limitava-se ao essencial. Nunca daria atenção ao comentário banal sobre um governante do Terceiro Mundo. Ali tinha de haver algo mais.

Terceiro: Mitrokhin só colhia informações da KGB, nunca ”do Kremlin”, como pretendia o jornal.

Fui, portanto, averiguar a fonte. Como geralmente acontece quando faço isso, descobri que o texto publicado no jornal brasileiro maquiava a informação originária, alterando-lhe radicalmente o sentido. Na notícia do Times, a crítica ao ”pacifismo” de Allende é um detalhe menor: o que o jornal destaca em primeiro lugar é a informação, esta sim essencial e nova, de que Allende era um agente pago do serviço secreto soviético. Seus contatos com o governo de Moscou não eram feitos através do embaixador em Santiago, mas do representante da KGB, Svyatoslav Kuznetsov. Os documentos mostravam vários pagamentos feitos por Kuznetzov ao presidente chileno, alguns como remuneração, outros para que ele usasse o dinheiro subornando políticos. Era o Mensalão chileno.

Como aí se evidenciava a verdadeira índole de um político desprezível, a cuja carantonha de bon-vivant a esquerda sobrepusera uma imagem de santo (chegando a transformar seu suicídio em homicídio), era preciso varrer essas informações para baixo do tapete. O redator do Estadão fez isso de maneira engenhosa, suprimindo o foco da notícia e enfatizando, isolado, o acréscimo secundário. O efeito é notável. Uma coisa é um presidente ameaçado abster-se de violências. Outra totalmente diversa é um empregado da KGB ser criticado pelos superiores porque usou de brutalidade em dose inferior à expectativa da organização. Na notícia do Estadão, o traidor a soldo de genocidas estrangeiros torna-se um herói da paz.

Aliada ao procedimento ainda mais costumeiro da omissão pura e simples, esse tipo de fraude é há tempos a norma vigente no jornalismo brasileiro para toda notícia que arrisque despertar algum sentimento anticomunista. Que isso é crime, é. Mas quem liga? Após três décadas desse tratamento, o público está maduro para acreditar que o Foro de São Paulo não existe, que Hugo Chávez nunca matou ninguém, que George W. Bush é racista, que o povo iraquiano odeia os EUA ou até que o PT rouba desde 1990 porque passou para a direita em 2002.

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