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A vingança da inépcia

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 23 de janeiro de 2007

Aviso chocante a uma nação estupefata: o a craseado não é nenhuma monstruosidade abominável, é apenas o feminino da contração “ao”. É o equivalente de “aa”, onde o primeiro “a” significa a preposição “a” (ou “para”) e o segundo o artigo definido “a”. Quem quer que leve mais de dois segundos para entender isso e mais de três para aprender a aplicá-lo corretamente é um retardado mental incapacitado para o exercício da cidadania adulta. Deve ser imediatamente destituído de qualquer função pública e entregue aos cuidados do INSS antes que faça alguma besteira perigosa.

Infelizmente, no Brasil, a quase totalidade dos parlamentares e governadores de Estado se inclui nessa classificação junto com o sr. Presidente da República e uma infinidade de jornalistas, professores universitários, oficiais de alta patente, juízes de direito, empresários e doutores em geral.

O acento grave destina-se a indicar uma contração preposicional que sem ele teria de ser adivinhada. Acreditar que pessoas incapazes de perceber essa contração com a ajuda do acento haveriam de apreendê-la mais facilmente sem ele é uma espécie de otimismo às avessas, bem característica de boçais inaptos para imaginar mesmo as hipóteses mais simples e óbvias da vida. Aqueles que se confessam humilhados pela crase não atinam com os abismos de humilhação e confusão a que a ausência dela os jogaria perante uma frase como: “Não envie à polícia.” Suprimam o acento grave e me digam se algo não deve ser enviado à polícia ou se a polícia não deve ser enviada a algum lugar. Nem o parlamento inteiro, reunido em sessão extraordinária permanente e empanturrado de jetons, poderia tirar essa dúvida.

Isso não quer dizer que a proposta de abolição da crase não tenha nenhum sentido. Ela tem um profundo sentido político, tanto que provém do mesmo partido que advoga a substituição dos exames vestibulares por sorteios, onde o acesso ao ensino superior será aberto igualitariamente aos capacitados e aos incapacitados, compensando por meio da ação estatal a injusta distribuição do QI entre os cidadãos. Ainda do mesmo partido provieram idéias como o salário mínimo vitalício, pago desde o berço talvez como compensação pelo destino cruel de nascer brasileiro, e a “poupança fraterna”, que nivelará por baixo os ganhos de todos, instaurando a distribuição igualitária da pobreza.

A inspiração comum de todos esses projetos de lei é o ódio radical dos complexados, burros, preguiçosos e incapazes às pessoas normais, saudáveis, diligentes e estudiosas. É o ressentimento da inépcia contra a capacidade, é a vingança do demérito contra o mérito. Isso faz muito sentido, faz sentido até demais: é a razão de ser do próprio PT.

Corram, que os ianques vêm aí

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 17 de novembro de 2005

Em junho, o Paraguai autorizou militares dos EUA a realizar no seu território exercícios que devem prolongar-se até dezembro de 2006 e envolver, entre idas e vindas, uns duzentos soldados e oficiais no total. Embora atividades similares se realizem ali desde 1943, o desembarque dos treze primeiros soldados provocou estranhas reações na mídia. Desde logo, o jornal boliviano El Deber , ampliando o número dos recém-chegados para quatrocentos, concluiu que estavam lá para construir uma base permanente. O objetivo, segundo o periódico, seria intimidar os bolivianos para que, na eleição de 5 de dezembro, não votem em Evo Morales, defensor do livre plantio de coca.

No Brasil, o historiador Moniz Bandeira assegurou que “o projeto é ampliar as instalações de Mariscal Estigarríbia (perto da fronteira com a Bolívia) de modo a aquartelar cerca de 16 mil soldados”.

Na Argentina, a agência Prensa Latina publicou o desmentido do governo paraguaio mas tratou logo de neutralizá-lo por meio de novo e mais belo aumento do contingente americano, desta vez para… 500 mil soldados!

De um momento para outro, inscrições como “Fora, tropas ianques” surgiram nos muros de Assunção do Paraguai, enquanto no parlamento boliviano vozes indignadas exigiam uma comissão de inquérito.

Ao mesmo tempo, a revista Carta Maior estendia a ameaça para o nosso lado, alertando: “Pela primeira vez teremos bases estrangeiras permanentes na América do Sul, na estratégica região da usina de Itaipu.” Que perigo, hein? Além de secar os negócios de Evo Morales, os gringos podiam desligar nossa eletricidade. E notem o plural: a base hipotética não apenas se tornava uma realidade palpável, mas, sem nenhuma explicação, já surgia até multiplicada, se bem que não com a mesma velocidade dos prolíficos soldadinhos.

Devidamente preparados os espíritos, quem apareceu então para tirar a conclusão geral antecipadamente embutida em toda essa notável articulação continental de potocas? Disse “Fidel Castro”? Acertou. Em 26 de agosto, ele informava ao perplexo auditório que, partindo das bases hipotéticas materializadas pelo poder do pensamento dialético, os EUA estavam se preparando para invadir não só a Bolívia como também o Brasil, no intuito de sufocar qualquer veleidade de socialismo. Em toda a mídia nacional não apareceu um só intrometido para lhe perguntar se ele não havia se esquecido da Venezuela. Em vez disso, O Globo de 30 de outubro criava logo um “Comando América” incumbido de esmagar sob o tacão ianque o continente latino inteiro. No dia seguinte, amparado nessa evidência inegável, Mauro Santayana gesticulava contra o “retorno do terror militar” planejado pelo Pentágono. Só mesmo aquele malvadão do George W. Bush para invadir tantos países sem nem avisar o Congresso americano. E aqueles tontos deputados e senadores ainda acham que podem continuar vivendo sem ler o Globo e a Carta Maior .

Mas, pelo menos na zona diretamente interessada, a repercussão do zunzum foi profunda. O site Conesulnews , de Ponta Porã, auto-apresentado como “o primeiro jornal virtual da fronteira”, anuncia: 55,93% de seus leitores acreditam que os EUA planejam invadir o Brasil.

Devem ter mesmo razão, porque a esta altura os treze americanos já entraram em ação imperialista no interior do Paraguai. Seis deles, médicos, estão até dando assistência às populações pobres da região. Hugo Chavez, porém, é que não dormiu diante de tamanha brutalidade: já comprou aviões, tanques e metralhadoras, colocou a sociedade venezuelana inteira sob controle militar, consolidou a aliança com as Farc e unificou a polícia e a justiça do seu país com as de Cuba. É verdade que ele já começou a se preparar para uma guerra muito antes que a mídia, com a conversa de invasão americana, lhe desse para isso um bom pretexto retroativo. Mas ninguém terá a impolidez paranóica de reparar nesse detalhe, muito menos a de ver aí algo mais que a mágica banal das puras coincidências.

A arte de mentir

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 6 de outubro de 2005

No jornalismo há muitos tipos de fraude. O mais banal é ofuscar os leitores com um título, na esperança de que não leiam a matéria ou não percebam que ela o desmente.

“A maioria das armas do crime teve origem legal”, proclama O Globo de 4 de outubro. No cérebro do leitor, a conclusão é instantânea: o grosso da violência no Brasil não é causado pelos criminosos assíduos, mas por pessoas de bem que “matam por motivos fúteis”. Urge portanto desarmá-las. Desarmar os bandidos é secundário.

No texto, a informação, baseada numa pesquisa da polícia carioca, não é bem essa: é que, “de um total de 86 mil armas apreendidas de criminosos desde 1999, 33% eram do chamado estoque legal — com registro… Outras 39% eram do estoque informal — originalmente pertenciam a pessoas sem antecedentes criminais, mas nunca foram registradas. Apenas 28% tinham origem criminosa… Do total de armas registradas, cerca de dois terços pertenciam a pessoas físicas, um terço ao Estado (polícias, Forças Armadas etc.)”.

Basta você ler com atenção e a fraude embutida salta do pacote gritando: “Surpresa!”, como aquelas garotas do bolo de aniversário nos filmes de máfia. Armas sem registro não provêm do comércio lícito. Estão fora da lei. Classificá-las eufemisticamente de “informais” não modifica em nada a sua condição. Portanto, 67 por cento das armas apreendidas eram ilegais. Sessenta e sete? Nada disso. Dos 33 por cento restantes, um terço pertencia ao Estado. Sobram 22 por cento de armas lícitas roubadas. Setenta e oito por cento das armas usadas na prática de crimes ao longo de seis anos eram de origem ilegal. Exatamente o contrário do que diz o título.

O jornal ainda reforça a informação errônea explicitando a sua conclusão, para maior didatismo do engano: “Para Rubem César Fernandes, do Viva Rio, a pesquisa é um argumento único a favor do desarmamento no Brasil.” Único no sentido de ímpar, inigualado, lindão mesmo.

Aí o engodo aparentemente simples do título sobe às alturas de uma fraude lógica requintada. Pois aqueles 22 por cento abrangem somente armas de origem legal que passaram às mãos de criminosos. Não incluem de maneira alguma as que permanecem em poder de seus donos legítimos – aqueles mesmos cidadãos de bem que matam por nada, por frescura, em transes repentinos e inexplicáveis. Se estes e não os bandidos, segundo o discurso desarmamentista, são os responsáveis pela maior quota de crimes com armas de fogo, então é óbvio que, quanto mais armas são roubadas dessas perigosas criaturas e postas a serviço da bandidagem, mais diminui o poder de fogo da parcela mais perigosa da sociedade. O roubo de armas, nessa perspectiva, é uma ajuda providencial que os delinqüentes dão à manutenção da ordem pública. A análise do discurso desarmamentista revela implacavelmente essa premissa maior oculta. O desarmamentista coerente, em busca de um “argumento ímpar” para a proibição do comércio de armas, o encontraria portanto num índice baixo, e não alto, de armas legais roubadas. O índice é realmente baixo, como o demonstra a pesquisa. Mas a premissa maior é imoral e absurda demais para ser declarada em voz alta. Para tornar o silogismo digerível é preciso então uma dupla camuflagem: inverter as proporções no título e em seguida convocar o sr. Rubem César para tirar delas uma conclusão também invertida. Tudo parece lógico e veraz, quando é completamente irracional e falso.

É que a inverdade, por si, às vezes não pega. Para aumentar sua aderência é preciso acrescentar-lhe uma dose de absurdo. Não basta mentir: é preciso estontear a vítima para que, mesmo percebendo vagamente a mentira, não consiga discerni-la da verdade.

***

“João Figueiredo: Missão Cumprida”, coletânea organizada por Gilberto Paim, com colaborações de Paulo Mercadante, Jarbas Passarinho e outros (Rio, Escrita, 2005), é um ato de coragem. É preciso uma lucidez destemida para admitir o que no fundo todo mundo sabe: que, comparado a Lula, Figueiredo foi um ótimo presidente.

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