Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 29 de setembro de 2005

No jornalismo como na ciência histórica, a condição número um da busca da verdade é a supremacia das fontes primárias — aquelas informações que vêm diretamente dos personagens atuantes ou das testemunhas mais próximas. Uma vez firmada a sua autenticidade, elas quase sempre têm, por si, o poder de restabelecer os fatos, separando-os do erro e da mentira.

Três exemplos:

1) No discurso que fez na celebração dos quinze anos de fundação do Foro de São Paulo, em 2 de julho deste ano, o sr. presidente da República confessa que submeteu a uma assembléia de estrangeiros ­– Fidel Castro, Hugo Chávez, os narcoguerrilheiros das Farc e os seqüestradores do MIR chileno, entre outros – decisões fundamentais da política externa brasileira, ocultando-as deliberadamente do Congresso, da Justiça e da opinião pública. A íntegra do documento está no site oficial, http://www.info.planalto.gov. br/download/discursos/pr812a .doc. Uma análise mais extensa pode ser lida em http://www.olavodecarvalho.org/semana/050926dc.htm.

Os brasileiros já se tornaram sonsos e insensíveis, mas é improvável que pelo menos alguns deles, civis ou militares, não percebam que um governante capaz de extinguir por arbítrio próprio a soberania nacional, de esconder isso durante anos e de confessá-lo depois com vaidosa presunção como se tivesse feito algo de meritório, não deve ficar na presidência por mais um minuto sequer. O que é possível, sim, é que todos o percebam, mas, acanalhados pela prática diária da covardia disfarçada de esperteza, consigam fingir que não perceberam. Isso, no Brasil, já virou quase uma regra moral, um imperativo categórico.

2) A “Carta de um Desertor” reproduzida pelo jornal coreano Daily NK do dia 27 traz o relato de um fugitivo da Coréia do Norte que, capturado na China, sofreu torturas hediondas que culminaram na amputação de seus dois pés. O documento, com fotos da vítima, está em http://www.dailynk.com/english/read.php?cataId=nk00100&num=291.

Embora sejam abundantes e em geral de fácil confirmação os relatos como esse, bem como os apelos desesperados vindos de prisioneiros políticos vietnamitas, cubanos e chineses, a mídia brasileira inteira – como aliás boa parte da americana – faz questão estrita de manter tudo isso longe dos olhos do público. Assim fica fácil persuadir a multidão de que o máximo de crueldade concebível são aquelas brincadeiras de mau gosto feitas pelos americanos com os agentes de Saddam Hussein em Abu Ghraib. Afinal, que são dois pés a mais ou a menos, em comparação com a dor suprema – oh! o horror! o horror! — de ouvir uns gritos ou de ser filmado com uma calcinha na cabeça ?

3) No artigo da semana passada, falei do suicídio de Salvador Allende, substituído no imaginário popular pela lenda do homicídio praticado pelas tropas rebeldes. Graças ao repórter brasileiro Ib Teixeira, a versão fantasiosa foi por fim desmoralizada mediante o testemunho do médico de Allende, que encontrou o ex-presidente morto, com uma metralhadora na mão, bem antes que as tropas de Pinochet entrassem no Palácio de La Moneda. Mas o depoimento, na verdade, só inocentava os golpistas, não provava o suicídio. Pois agora fico sabendo que não foi suicídio mesmo: Allende foi assassinado por agentes da inteligência cubana para impedir que se rendesse. Uma eficiente rajada de metralhadora transfigurou o derrotista covarde num mártir cujo cadáver pôde então ser utilmente explorado pela propaganda comunista. A história está no livro Cuba Nostra: Les Secrets d’Etat de Fidel Castro, publicado pela Plon em Paris, que o jornalista Alain Ammar escreveu com base em declarações de alguns dos próprios agentes cubanos do entourage de Allende. Um resumo encontra-se em http://www.midiasemmascara.org/artigo.php?sid=4132.

Vocês entendem agora por que o jornalismo brasileiro tem um sacrossanto horror às fontes primárias, preferindo sempre as opiniões de “especialistas” e “intelectuais”?

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