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Corram, que os ianques vêm aí

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 17 de novembro de 2005

Em junho, o Paraguai autorizou militares dos EUA a realizar no seu território exercícios que devem prolongar-se até dezembro de 2006 e envolver, entre idas e vindas, uns duzentos soldados e oficiais no total. Embora atividades similares se realizem ali desde 1943, o desembarque dos treze primeiros soldados provocou estranhas reações na mídia. Desde logo, o jornal boliviano El Deber , ampliando o número dos recém-chegados para quatrocentos, concluiu que estavam lá para construir uma base permanente. O objetivo, segundo o periódico, seria intimidar os bolivianos para que, na eleição de 5 de dezembro, não votem em Evo Morales, defensor do livre plantio de coca.

No Brasil, o historiador Moniz Bandeira assegurou que “o projeto é ampliar as instalações de Mariscal Estigarríbia (perto da fronteira com a Bolívia) de modo a aquartelar cerca de 16 mil soldados”.

Na Argentina, a agência Prensa Latina publicou o desmentido do governo paraguaio mas tratou logo de neutralizá-lo por meio de novo e mais belo aumento do contingente americano, desta vez para… 500 mil soldados!

De um momento para outro, inscrições como “Fora, tropas ianques” surgiram nos muros de Assunção do Paraguai, enquanto no parlamento boliviano vozes indignadas exigiam uma comissão de inquérito.

Ao mesmo tempo, a revista Carta Maior estendia a ameaça para o nosso lado, alertando: “Pela primeira vez teremos bases estrangeiras permanentes na América do Sul, na estratégica região da usina de Itaipu.” Que perigo, hein? Além de secar os negócios de Evo Morales, os gringos podiam desligar nossa eletricidade. E notem o plural: a base hipotética não apenas se tornava uma realidade palpável, mas, sem nenhuma explicação, já surgia até multiplicada, se bem que não com a mesma velocidade dos prolíficos soldadinhos.

Devidamente preparados os espíritos, quem apareceu então para tirar a conclusão geral antecipadamente embutida em toda essa notável articulação continental de potocas? Disse “Fidel Castro”? Acertou. Em 26 de agosto, ele informava ao perplexo auditório que, partindo das bases hipotéticas materializadas pelo poder do pensamento dialético, os EUA estavam se preparando para invadir não só a Bolívia como também o Brasil, no intuito de sufocar qualquer veleidade de socialismo. Em toda a mídia nacional não apareceu um só intrometido para lhe perguntar se ele não havia se esquecido da Venezuela. Em vez disso, O Globo de 30 de outubro criava logo um “Comando América” incumbido de esmagar sob o tacão ianque o continente latino inteiro. No dia seguinte, amparado nessa evidência inegável, Mauro Santayana gesticulava contra o “retorno do terror militar” planejado pelo Pentágono. Só mesmo aquele malvadão do George W. Bush para invadir tantos países sem nem avisar o Congresso americano. E aqueles tontos deputados e senadores ainda acham que podem continuar vivendo sem ler o Globo e a Carta Maior .

Mas, pelo menos na zona diretamente interessada, a repercussão do zunzum foi profunda. O site Conesulnews , de Ponta Porã, auto-apresentado como “o primeiro jornal virtual da fronteira”, anuncia: 55,93% de seus leitores acreditam que os EUA planejam invadir o Brasil.

Devem ter mesmo razão, porque a esta altura os treze americanos já entraram em ação imperialista no interior do Paraguai. Seis deles, médicos, estão até dando assistência às populações pobres da região. Hugo Chavez, porém, é que não dormiu diante de tamanha brutalidade: já comprou aviões, tanques e metralhadoras, colocou a sociedade venezuelana inteira sob controle militar, consolidou a aliança com as Farc e unificou a polícia e a justiça do seu país com as de Cuba. É verdade que ele já começou a se preparar para uma guerra muito antes que a mídia, com a conversa de invasão americana, lhe desse para isso um bom pretexto retroativo. Mas ninguém terá a impolidez paranóica de reparar nesse detalhe, muito menos a de ver aí algo mais que a mágica banal das puras coincidências.

Ilusões que se desfazem

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 10 de novembro de 2005

Qualquer tomada de posição nos debates do dia a dia depende de três fatores. Antes de tudo, cada indivíduo opinante traz consigo uma hierarquia abstrata de valores genéricos que orienta suas escolhas. Em segundo lugar, ele possui alguma representação esquemática das forças em disputa, de modo a poder identificar quais delas personificam os seus valores e quais os valores opostos. Mas – terceiro fator — essa representação depende do fluxo de informações que ele recebe da cultura em torno. Um fluxo viciado pode levar as pessoas a apostar em forças que destroem os seus valores em vez de realizá-los. Repetidas desilusões não bastam para reorientar as escolhas se o erro básico não é conscientizado e sua correção sistemática não se integra por sua vez na corrente de informações.

Na política, as escolhas dependem, em última instância, da representação geral dos poderes em conflito no mundo. Há décadas o público brasileiro se deixa guiar por uma representação falsa. Isso vem acontecendo desde que a orientação da cultura deixou de refletir o pluralismo espontâneo das idéias e passou a ser moldada hegemonicamente por uma corrente de opinião organizada, investida dos meios de marginalizar as demais e impor a sua própria visão como se fosse a única. Não o fez de maneira unilinear e dogmática, mas de tal modo que as suas próprias contradições internas, de ordem puramente adjetiva, parecessem esgotar o rol das discussões possíveis, tornando difícil apreender e verbalizar qualquer outra alternativa. A disputa presidencial de 2002, protagonizada por quatro candidatos ideologicamente uniformes, foi a cristalização eleitoral de um longo processo de recorte e moldagem do imaginário coletivo, em resultado do qual os cidadãos permaneciam livres para cultuar os valores subjetivos que quisessem, desde que na prática os personificassem nas forças escolhidas para esse fim pela representação imperante.

Durante um tempo, isso produziu um sentimento geral de unanimismo eufórico, infundindo em todos a ilusão de ter encontrado a fórmula da harmonia entre os valores amados e as forças capazes de realizá-los.

Contradições insolúveis não demoraram a aparecer, rompendo o círculo da falsa harmonia. Se a concorrência política normal já custa muito dinheiro, a hegemonia custa muito mais. Para conquistá-la, impondo-se artificialmente como personificação monopolística dos valores mais altos, a organização dominante teve de recorrer aos meios mais baixos. Nem poderia ser de outro modo. Na ética comunista, isso não tem nada de mais. Mas como explicar isso a eleitores que foram levados a enxergar num partido comunista a encarnação da moral no sentido mais usual e burguês do termo?

Pode-se tentar remendar o véu da ilusão, mas uma contradição ainda mais inconciliável, em escala planetária, ameaça rasgar em breve o que reste dele. Em vista dos resultados políticos desejados localmente, a população nacional foi ensinada a conceber o mundo como um cenário dividido, tal como no filme “Guerra nas Estrelas”, entre um Império global — identificado com os EUA — e as forças esparsas das nações sequiosas de liberdade. A disputa pelo poder sobre a internet desfará, num instante, essa representação grotescamente invertida. A República do Irã, a China, a Arábia Saudita e a ONU, que ao lado do Brasil e da burocracia européia lutam contra a “dominação americana” sobre a rede, jurando com isso defender o pluralismo e a democracia, são notórias censoras da internet , ao passo que o controle nas mãos dos americanos tem assegurado justamente a total ausência de censura. Aqueles que odeiam os EUA mas amam o direito de navegar livremente pela rede não demorarão a perceber, diretamente nas telas de seus computadores domésticos, que seu objeto de ódio é a única esperança de salvar seu objeto de amor. A representação vigente, como um vírus pego em flagrante, correrá então o risco de ser repentinamente deletada de todos os HDs.

Ah, isso não!

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 3 de novembro de 2005

Casos de corrupção, mesmo graúdos e em quantidade epidêmica, podem ocorrer em qualquer regime estável, seja democrático ou ditatorial, sem abalar suas instituições nem colocar em risco a segurança nacional.

Outra coisa, bem diversa, é um país virtualmente dominado, desde fora e desde dentro, por uma trama criminosa cujo alcance transcende suas fronteiras até abranger todo um continente, e da qual participa o próprio mandatário supremo, ao lado de governantes estrangeiros, contrabandistas de armas, terroristas, seqüestradores e narcotraficantes, todos protegidos da curiosidade pública pelo manto do ominoso segredo que uma eficiente articulação de cúmplices, bem espalhados na mídia, estende ante os olhos dessa nação infeliz. Neste caso, não deixará de haver corrupção, mas, ao contrário de constituir apenas irritação passageira na epiderme de um corpo são, será a erupção reveladora de uma doença profunda, tenebrosa e possivelmente letal.

Se, diante dessas duas situações hipotéticas, pergunto aos leitores qual delas está se realizando no Brasil de hoje, é praticamente certo que, movidos por um reflexo espontâneo de autoproteção psicológica, forma imatura do instinto de sobrevivência, muitos repelirão a segunda como fantasia paranóica ou invencionice direitista, apegando-se à primeira com a sensação tranquilizante de que assim caminham no terreno firme do senso comum. Antes, porém, de que apostem nisso sua sanidade mental e o futuro do país, chamo sua atenção para o fato de que essa mesma primeira hipótese, que hoje todos aceitam, foi rejeitada durante mais de uma década sob as mesmíssimas alegações e com idêntica ilusão de segurança absoluta. Todos taparam os ouvidos às advertências de César Benjamin, os olhos à evidência sangrenta das mortes de testemunhas em série no caso Celso Daniel, os olhos e ouvidos a um sem-número de obscenidades patentes. Ainda um ou dois meses atrás, quando o sr. Roberto Jefferson cantou a bola do Mensalão, não faltou quem o chamasse de louco, de caluniador, de agitador fascista. Corrupção no partido ético? Roubalheira no templo de São Lulinha? Jamais.

Passadas algumas semanas, a acumulação de indícios e depoimentos chegou a proporções tais, que repentinamente os olhares de suspeita mudaram de direção, gritos de indignação e defecções em massa espalharam-se pela própria tropa-de-choque petista, as propostas de investigação rejeitadas como ofensa intolerável tornaram-se necessidade universalmente reconhecida e o inverossímil foi admitido, por fim, como verdadeiro.

Que é que impede que exatamente o mesmo venha a passar-se com a denúncia de que a candidatura Lula embolsou dinheiro ilegal de Cuba? Que é que impede que amanhã ou depois essa aparente absurdidade de hoje, se investigada com coragem e tenacidade, venha a ser admitida como verdade de senso comum?

Racionalmente, nada. Politicamente, tudo. Corrupção pura e simples, mesmo em dose lúlica, é banalidade em qualquer regime. O delito de agora é alta traição, é golpe, é conspiração, é rendição total do país a interesses macabros de ditadores genocidas e gangsters internacionais.

Simplesmente não é possível investigá-lo sem trazer à plena luz do dia tudo o que o presidente da República andou tramando em segredo com alguns dos príncipes da violência e do crime no continente – segundo ele próprio, dando com a língua nos dentes, já confessou em parte. E não é possível fazer isso sem desmantelar a mais poderosa, rica e ambiciosa máquina golpista e revolucionária já montada na América Latina.

Mesmo para desertores da tropa de choque, isso é demais. Cortar meia dúzia de cabeças no altar do moralismo hipócrita é uma coisa. Totalmente outra é dissolver, por uma repentina chuva de jatos de luz, toda uma gigantesca urdidura de sombras tecida ao longo de uma década e meia de esforços destinados, segundo um lema corrente do Foro de São Paulo, a “reconquistar na América Latina tudo o que se perdeu no Leste Europeu”.

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