Posts Tagged Jornal do Brasil

Perdidos no espaço

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 8 de dezembro de 2005

Os juízes da Primeira Turma Recursal de Brasília que semanas atrás impuseram uma pesada multa ao Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz por chamar uma abortista de abortista já mostraram, só com isso, sua falta do mínimo de capacidade lingüística requerido para um cargo no qual ler, ouvir e compreender são noventa por cento do serviço. A sentença só agora foi publicada, e lida por inteiro fica ainda pior do que aos pedaços.

Afinal, nenhum termo do idioma pode ser pejorativo ou insultuoso quando não há outro supostamente mais amável para substituí-lo. A palavra “abortista” é a única que existe para designar o adepto do aborto e distingui-lo tanto do “aborteiro”, que pratica o que ele prega, quanto do “anti-abortista” que se opõe a ambos. Aplicá-lo, numa polêmica anti-aborto, a alguém que dedicou anos de sua vida à promoção do abortismo, é não somente um direito, mas um dever. Um dever de precisão vocabular. A reverência ao termo próprio corresponde, na língua escrita e falada, à retidão na prática judicial. Mostrando-se, por unanimidade, desprovidos de uma coisa e da outra, e ademais inclinados a punir um inocente pelo delito de ter as duas, aqueles magistrados nada provaram contra o réu, mas contra si mesmos: não compreendem o sentido das palavras nem podem, por isso mesmo, julgar com justiça os fatos que elas enunciam.

Mas, então, com que direito permanecem nas altas funções que ocupam sob estipêndio do Estado? Com o direito — respondo eu — ao analfabetismo doutoral, o qual nunca existiu mas foi consagrado neste país desde que um governante disléxico se tornou doutor honoris causa sem precisar ter para isso a causa nem muito menos a honra. Se o presidente pode resolver os destinos da nação inteira sem entender o que lê nem o que diz, por que não poderia aquele punhado de excelências decidir, com igual privação de entendimento, o destino de um mísero cidadão brasileiro?

Mas nem tudo é deficiência naquele tribunal. Em compensação talvez de sua inépcia jurídica e linguística, Suas Excelências excelem no dom da comédia e da farsa em medida raramente igualada não só no mundo real mas em todo o universo da ficção. Pois, além de punir a expressão perfeita de uma verdade óbvia como se delito fosse, ainda vetaram ao réu todo uso futuro da mesma palavra. Ora, o silêncio seletivo, a proibição de dizer certas coisas, é figura inexistente no direito civil ou penal brasileiro. Encontra-se apenas no direito canônico. Faz parte da disciplina clerical. Para aplicá-la, portanto, os magistrados brasilienses tiveram de fantasiar-se mentalmente de superiores eclesiásticos do réu e, ao mesmo tempo, atribuir ao seu tribunal cardinalício imaginário uma prerrogativa da justiça civil e penal, que é a de impor multas. Após terem assim sintetizado em suas pessoas os poderes eclesial e estatal, usando-os para tapar a boca de um cidadão sem poder nenhum, ainda proclamaram que ele – e não o tribunal que o condenava – era a Santa Inquisição rediviva.

Esses magistrados, portanto, não falham somente em compreender o sentido das palavras, por falta de sensibilidade lingüitica. Falham também, por excesso de imaginação, em perceber a situação real, imediata, concreta, na qual eles próprios vivem e atuam. Com a maior desenvoltura e segurança, entendem-na às avessas, como aquele maluco do filme de Woody Allen que, recebendo no hospício a visita diária da médica, acreditava ser o psicólogo clínico atendendo a paciente em mais uma sessão de análise. Em psiquiatria, isso chama-se “delírio de interpretação”. Suas excelências não se contentam com não saber o que dizem. Não sabem onde estão nem o que fazem. A exemplo do mineiro da piada, bem poderiam despertar de um traumatismo craniano perguntando: Docovim? Oncotô? Pocovô? (“De onde vim? Onde estou? Para onde vou?”). A diferença é que o mineiro despertou. Não creio que este artigo ajude Suas Excelências a fazer o mesmo.

Lei esotérica

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 1o de dezembro de 2005

No momento em que escrevo, ainda não sei se foi aprovada a lei do aborto. Sei é que já na sua redação ela é pura fraude: engana o povo e os congressistas fazendo de conta que libera o aborto só até a décima-segunda semana de gestação, mas nos parágrafos finais, discretamente, como quem não quer nada, revoga os artigos do Código Penal que o criminalizam, o que resulta – surpresa! – em permiti-lo até o nono mês. Crianças perfeitamente sãs poderão então ser assassinadas cinco minutos antes do parto, por puro capricho das mães, sem qualquer pretexto médico, e não haverá nisso crime algum. Feita por vigaristas para ser votada por otários, é a primeira lei do mundo que libera o que ela mesma proíbe. E é a primeira lei esotérica, com sentido oculto, só acessível aos iniciados até o momento da votação mas obrigatório para todos depois disso.

***

O mínimo que se exige de alunos da quinta série é que, lendo ou ouvindo, consigam distinguir entre a pessoa que fala e a pessoa de quem se fala. Mas isso está acima do que se pode esperar de Jalmelice Luz e Mônica Bara Maia, redatoras do Observatório da Imprensa. Lendo meu artigo da semana passada, no trecho em que digo que todo abortista honesto deveria encarar a hipótese retroativa do seu próprio aborto como coisa natural ”e até como medida humanitária, contribuindo para o avanço da pesquisa com células-tronco”, as duas palpiteiras, sem entender que ali eu apenas reproduzia a lógica imanente do argumento abortista para evidenciar sua absurdidade, atribuíram a mim a opinião que eu satirizava e, assanhadíssimas, explodiram num protesto irado: ”Isto cheira a barbárie, esbarra na insanidade, na vulgaridade e na intolerância. Esta combinação levou ao Holocausto e justificou genocídios.” Embora errando o alvo do ataque, elas têm completa razão no seu conteúdo. Se eu pensasse daquela maneira, seria mesmo um bárbaro, um insano, um genocida. Só que quem pensa assim não sou eu: são os abortistas – todos realmente uns bárbaros, insanos e genocidas pelo menos inconscientes. Disparando equivocadamente contra mim esses adjetivos, as duas se incluíram a si próprias nessas classificações, sem qualquer ajuda da minha parte. Fica aí exemplificado, de novo, que idéias malucas como o abortismo destroem na alma do seu portador não somente o discernimento moral, mas, com o tempo, até a inteligência lógica, substituindo-a por efusões patéticas de verbosidade auto-imbecilizante. As mulheres americanas, desde a liberação do aborto, já mataram uns quarenta milhões de bebês – o dobro do total de vítimas de Adolf Hitler. Todo abortista sensato deveria, pois, abster-se cuidadosamente de falar em ”genocídio”, para não correr o risco de cuspir na própria cara. Mas, como a sensatez depende da coerência moral, o abortista sensato é ainda mais raro que o abortista honesto. Tão alucinadas se encontravam as duas mocinhas – ou velhinhas – ao escrever contra mim, que erraram até no título do artigo criticado (”Cabeça abortista” em vez de ”Cabeça de abortista”) e no nome do autor, que virou ”Olavo Costa”. Cadê o Alberto Dines, que some na hora em que o Observatório mais precisa de um editor de texto?

***

Concordo inteiramente com a sugestão de Augusto Nunes, publicada neste jornal no dia 29, de apresentar Marilena Chauí às platéias circenses do mundo civilizado como substituta, mais exótica e atraente, dos surradíssimos ursos ciclistas. Apenas acrescento que, para evitar o desemprego decorrente dessa medida, os bichos demitidos poderiam ser contratados para lecionar na USP, naqueles cursos do MST que, por caridade para com os doutorandos analfabetos, dispensam a prova escrita. A introdução de (mais alguns) seres irracionais no corpo docente suprimiria também a prova oral, instaurando a justiça social completa mediante a distribuição igualitária do direito presidencial de não saber falar. Os alunos, uma vez adestrados em comunicar-se por meio de urros e grunhidos, teriam emprego garantido no Observatório da Imprensa.

Cabeça de abortista

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 24 de novembro de 2005

A história do movimento abortista – e que vão para o diabo os juízes que quiseram proibir o uso dessa palavra – é uma sucessão de fraudes nojentas. A mais famosa foi o processo Roe versus Wade, que legalizou o aborto nos EUA enganando a Suprema Corte com o falso depoimento de uma jovem que alegava ter engravidado por estupro. Passadas três décadas, a própria testemunha pediu reabertura do caso, confessando que havia mentido sob pressão de militantes abortistas.

Bernard Nathanson, importante líder da luta pela liberação do aborto nos anos 60, admitiu ter falsificado estatísticas para persuadir o público a aceitar a nova lei.

A CFFC, “Catholics for a Free Choice”, é uma organização satanista — com papisa, odes a Lúcifer e tudo o mais — que se faz passar por católica para induzir os fiéis a acreditar que a Igreja, no fundo, não é contra o aborto.

A Planned Parenthood, barulhenta organização abortista dos EUA, está sob investigação porque há décadas seus membros médicos praticam abortos em meninas menores de 14 anos sem apresentar prova de estupro, exigida por lei nesses casos. São alguns milhões de crimes, sob o manto de uma “luta pelo direito”.

Na perspectiva dessa tradição, não espanta que seus adeptos brasileiros cheguem ao requinte de mentir quanto ao conteúdo mesmo da lei que está para ser votada no Congresso, levando o povo a crer que ela só libera o aborto até os três meses de gestação quando de fato ela o permite até o último dia da gravidez. Entre o texto da lei e o discurso que a embeleza, a diferença é abissal.

Perto dessa obra-prima de propaganda enganosa, é até irrelevante que mintam também nas estatísticas, alegando que a legalização diminui o número de abortos e apresentando como prova os cálculos estilo Nathanson produzidos por um tal Instituto Allan Guttmacher, sem avisar, é claro, que essa entidade pertence a uma clínica de aborteiros. Na verdade, o número de abortos legais, depois da liberação, subiu de 200 mil para 1.400.000 por ano nos EUA e de 4 mil para 115 mil no Canadá. O primeiro país a legalizar o aborto foi a Rússia, em 1921, por decreto do próprio Lênin. Hoje ela é recordista mundial de abortos: a média é seis por mulher. Daí o surgimento, relatado pela revista Veja , de um próspero comércio de fetos, vendidos a 200 dólares cada um para clínicas de estética que oferecem tratamentos com células-tronco.

Nenhuma causa idônea necessita de tantas fraudes, de tantos crimes, de tantas baixezas para defender-se. Se o abortismo se mela nessa sujeira com tanta persistência, é por causa da moral sui generis que o inspira.

Cada abortista honesto, se é que existe, deveria estar pronto para admitir que, se o pegassem de jeito umas horas antes do seu nascimento, não teria havido mal nenhum em picá-lo em pedacinhos e vendê-lo para um laboratório. Teria sido até uma medida humanitária, contribuindo para o avanço da pesquisa com células-tronco.

Ele não teria agora o gostinho de apresentar ao público sua proposta indecente com trejeitos de dignidade quase persuasivos, mas alguma senhora das redondezas talvez estivesse contemplando no espelho, com enorme satisfação, o sumiço de uma rugas e pés-de-galinha. A própria mãe do distinto teria desfrutado por mais uns anos o prazer narcísico de uma vagina apertadinha e de umas estrias a menos, incentivando o maridão a gerar mais alguns bebês para ser jogados no balde e fomentando destarte o progresso da ciência. Todas essas vantagens indiscutíveis teriam sido obtidas em troca da supressão de um simples feto de abortista, uma coisinha de nada. Vendo frustrada por pais reacionários a sua oportunidade de prestar tão relevante serviço à humanidade, e não podendo, lamentavelmente, realizá-lo em modo retroativo, o referido encontra alguma compensação moral na luta para que outros bebês tenham o direito que ele não teve.

Pessoas orientadas por um ideal como esse não poderiam mesmo adaptar-se aos padrões de moralidade e legalidade bons para os demais seres humanos.

Veja todos os arquivos por ano