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Como não enxergar a realidade

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de novembro 2007

No meu artigo de 29 de outubro (A inversão revolucionária) prometi dar alguns exemplos de inversão revolucionária, e lá vou eu.

“Revolução” significa um giro, uma inversão de posições. É natural, pois, que as criaturas seduzidas pela idéia revolucionária, nem sempre sendo capazes de virar o mundo de pernas para o ar como pretendem, façam ao menos a revolução dentro de suas próprias cabeças, invertendo as relações lógicas de sujeito e objeto, os nexos de causa e efeito e até a ordem seqüencial dos tempos, enxergando, em suma, tudo às avessas e não admitindo como verdade senão o oposto simétrico daquilo que os fatos dizem, os documentos atestam e a razão proclama.

Não, caro leitor, por esquemático e satírico que pareça, o parágrafo anterior não é uma caricatura, uma figura de linguagem. A inversão da realidade percebida é um esquema de uso tão freqüente e obsessivo no discurso revolucionário, que a dificuldade principal em documentar sua presença é a hesitação na escolha, tão abundantes são os exemplos. Há também um obstáculo secundário, que é a variedade dos tipos de inversão e dos usos que se faz deles. Eis aqui um breve mostruário.

Em primeiríssimo lugar, vem a inversão essencial, estrutural, onipresente no movimento revolucionário porque subjaz à sua própria autodefinição. A promessa de um mundo de paz, amor e liberdade, conferindo aos revolucionários a autorização para realizá-la por meio da violência, do ódio e da opressão, implica necessariamente que as virtudes destinadas a brotar na humanidade futura só podem aparecer nos seus criadores presentes sob a forma invertida do mal e do pecado. A culpa dessa inversão, decerto, nunca é dos revolucionários, mas das condições estabelecidas que opõem uma resistência obstinada ao advento do bem supremo, e que por isso devem ser destruídas a ferro e fogo. É a sociedade má que obriga os homens bons a fazer o mal para destruí-la. Como, porém, não é concebível que os meros beneficiários passivos da sociedade futura sejam moralmente mais elevados do que aqueles que tiveram o trabalho de criá-la, a autoglorificação dos revolucionários como tipos éticos supremos – o “primeiro escalão da espécie humana” no qual Che Guevara modestamente se incluía – traz como corolário incontornável a superioridade da virtude invertida sobre a virtude direta: o pecado cometido pelo revolucionário é mais virtuoso do que as virtudes do homem comum.

Karl Marx, que engravidou sua empregada e recusou todo cuidado paternal ao filho, escreveu páginas furibundas contra os burgueses que abusavam de moças proletárias. Seria estúpido enxergar nisso um caso de mera hipocrisia. Algo de muito mais sinistro está embutido nas desculpas convencionais que, a pretexto de impugnar acusações ad hominem como argumentos filosoficamente válidos contra o marxismo, cavam um abismo ontológico entre Karl Marx, o filósofo da revolução, e Karl Marx, o patrão de Helène Demuth. O primeiro não arca com as culpas do segundo. Não foi enquanto revolucionário que Marx abusou da moça pobre, mas enquanto filho de burguês, herdeiro inerme e portanto vítima das taras da classe dominante. Ao condenar nos outros o mal que ele mesmo praticava, Karl Marx transmutou o pecado burguês em virtude revolucionária. Do mesmo modo, Mao Dzedong, o santo da devoção do PC do B, estuprou algumas dezenas de camponesas adolescentes para que no futuro não houvesse mais fazendeiros ricos capazes de fazer outro tanto. Os habitantes da utopia agrária socialista, é claro, não estuprarão ninguém, mas nem por isso merecerão tanta honra e glória quanto o “Grande Timoneiro” que os conduziu à paz edênica de uma sociedade sem estupros. Eis como estuprar mocinhas, se você é Mao Dzedong, se torna mais virtuoso do que abster-se de fazê-lo, se você é um outro qualquer. Ainda na mesma linha de raciocínio, Che Guevara considerava que, ao fuzilar prisioneiros inermes, era ele próprio, não eles, a vítima sacrificial. É a inversão revolucionária em estado puro – essencial e arquetípica.

Dela nascem inumeráveis tipos derivados, dos quais o mais usual é a identidade sociológica invertida. A liderança revolucionária, bem como o núcleo da militância, compõem-se, predominantemente, de representantes das classes média e alta. Não há dado histórico mais amplamente comprovado. Ele não impede, no entanto, que muitos desses movimentos continuem se denominando proletários, e qualificando de burgueses e pequeno-burgueses os seus opositores, mesmo quando manifestamente proletários. Na Revolução Francesa, por exemplo, a força ativa eram os intelectuais, os aristocratas hostis ao rei, uma parcela do clero e uma massa de manobra composta de delinqüentes e prostitutas. A única rebelião popular que ali se viu foi a da Vendéia, o levante em massa dos camponeses católicos contra o governo revolucionário. E mesmo na sua segunda fase, quando de acordo com a versão clássica da historiografia esquerdista a Revolução perde o seu impulso proletário e se torna um movimento da burguesia, os burgueses, os famosos burgueses capitalistas, estão notavelmente ausentes dos postos de comando. Eles só entram na história, a bem dizer, como aproveitadores menores do saque empreendido pelo governo revolucionário sobre os bens da Igreja, principalmente terras. Terras que, durante séculos, tinham estado entregues ao livre cultivo pelos necessitados, e que agora se tornavam repentinamente propriedades do governo ou dos novos ricos. Por qualquer dos dois lados que a encaremos, a história oficial da Revolução Francesa é pura inversão. Como movimento popular destinado nominalmente a acabar com a fome, a Revolução criou uma multidão de esfaimados – os primeiros autênticos “sem terra” do Ocidente. De outro lado, chamada “Revolução burguesa”, não o foi por ter sido obra da burguesia, mas por ter criado a burguesia como subproduto do roubo estatal. Nos dois casos, a lenda historiográfica consagrada é a inversão simétrica da realidade.

Dos vários movimentos revolucionários ao longo da História, o único que teve o apoio maciço do proletariado foi o nazifascismo, isto é, precisamente aquele que a historiografia pró-comunista e o consenso da grande mídia insistem em definir como um movimento da pequena burguesia e do grande capital. O meticuloso estudo de James Pool (“ Who Financed Hitler: The Secret Funding of Hitler’s Rise to Power, 1919- 1933” , Simon & Schuster, 1997 ) mostra que, malgrado exceções bem conhecidas, alemãs e estrangeiras (os Krupp; Henry Ford), o grosso da alta burguesia alemã via Hitler com extrema desconfiança e não lhe deu nenhuma ajuda substantiva. Até sua ascensão ao poder, que lhe forneceu por fim os meios de “colocar a burguesia de joelhos” (expressão do próprio Hitler), o Partido Nazista subsistiu principalmente das contribuições da militância operária, enquanto o Partido Comunista, na Europa e nos EUA, nadava em dinheiro da alta burguesia. Aliás, seduzir os ricos para arrancar-lhes dinheiro e apoio, em vez de organizar as massas para a luta, foi precisamente a missão específica que Stálin assinalou ao Partido Comunista Americano, cujo sucesso nesse empreendimento deixou marcas que duram até hoje (V. “Double Lives”, de Stephen Koch, New York, The Free Press, 1994).

Nos próximos artigos mostrarei mais alguns tipos de inversão.

Uma glória da educação nacional

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 3 de maio de 2007

Nada debilita mais a inteligência racional do que a ostentação de racionalismo. Erigida em símbolo de autoridade, a razão perde toda eficácia cognitiva e se torna um mero fetiche hipnótico. O opinador ignorante, infectado de progressismo “científico” e decidido a não ler, ouvir ou compreender nada que possa abalar as suas crenças, é, na escala humana, a encarnação mais perfeita da invencibilidade absoluta. Nada pode demovê-lo da convicção de que seu apego fanático a chavões iluministas faz dele a personificação triunfante do conhecimento e das luzes, um herói libertador em luta contra o obscurantismo fundamentalista.

Nas presentes condições da sociedade brasileira, esse personagem caricato tende a tornar-se o tipo dominante na cultura, no ensino e nos meios de comunicação.

Exemplo nítido é o autor deste parágrafo da apostila de História do Colégio Pentágono/COC, instituição de ensino particular de São Paulo:

A escravidão no Brasil [era] justificada pela condição de inferioridade do negro, colocado como animal, pois era ‘desprovido de alma’. A Igreja… legitimou tal sandice.

Não vou nem perguntar onde o distinto obteve a idéia de que segundo a Igreja os negros não tinham alma. É uma lenda urbana de origem setecentista, que de tempos em tempos ressurge nos meios iletrados junto com aquelas histórias sinistras de fetos inumeráveis, produtos da incontida lubricidade eclesiástica, enterrados nos porões dos claustros. O crédito que nenhum historiador jamais deu a essas tolices lhes é sempre abundantemente concedido por algum botequineiro anarquista ou por estudantes de ginásio empenhados em tornar-se Voltaire quando crescerem, se crescerem.

Jean Sévillia, no indispensável Historiquement Correct (Paris, Perrin, 2003), assinala que hoje em dia há duas Histórias, separadas por um abismo de incompatibilidades: a dos estudiosos acadêmicos e a do cidadão comum, inventada pela mídia e pelo sistema de ensino.

O fenômeno é universal. A diferença nacional específica é que no mundo civilizado a ciência dos historiadores ainda tem alguma autoridade para reprovar a do pedagogo iluminado, ao passo que no Brasil esta última está sob a proteção da lei. Tão logo o parágrafo acima foi denunciado como calúnia imbecilizante pelo site www.escolasempartido.org, um juiz sentenciou que o nome da instituição responsável pelo seu uso no ensino secundário fosse apagado da matéria.

Imunizado à crítica histórica, o colégio poderá assim continuar transmitindo a seus estudantes a “educação transformadora” que alardeia, sem ter de explicar em que, afinal, ela os há de transformar. Em empresários é que não, ao menos se depender do autor da apostila, que assim descreve o cotidiano de um membro típico dessa classe abominável, na qual se incluem aliás os proprietários da entidade e os pais de uma boa parcela de seus alunos: “…vendeu, ganhou, lucrou, lesou, explorou, burlou, convocou, elogiou, bolinou, estimulou, beijou, convidou, despiu-se, deitou-se, mexeu, gemeu, fungou, babou, antecipou, frustrou, saiu, chegou, beijou, negou…

Por que não sou liberal

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 08 de março de 2007

Há muitos motivos para você ser contra o socialismo, mas entre eles há dois que são conflitantes entre si: você tem de escolher. Ou você gosta da liberdade de mercado porque ela promove o Estado de direito, ou gosta do Estado de direito porque ele promove a liberdade de mercado. No primeiro caso, você é um “conservador”; no segundo, é um “liberal”.

Durante algum tempo, você não sente a diferença. Quando a direita é ainda incipiente, nebulosa e sem forma, liberais e conservadores permanecem numa gostosa promiscuidade, fundidos na ojeriza comum ao estatismo esquerdista. Tão logo a luta contra o esquerdismo exige uma definição doutrinal mais precisa, a diferença aparece: ou você fundamenta o Estado de direito numa concepção tradicional da dignidade humana, ou você o reinventa segundo o modelo do mercado, onde o direito às preferências arbitrárias só é limitado por um contrato de compra e venda livremente negociado entre as partes. Nos dois casos você quer a liberdade, mas no primeiro o fundamento dela é “material”, isto é, definido por valores e princípios explícitos, no segundo é “formal”, isto é, definido por uma equação contratual cujo conteúdo está aberto à escolha dos interessados.

Se você é um conservador, você acha que um cidadão não tem o direito de contratar outro para matá-lo (muito menos para matar um terceiro), porque a vida é um dom sagrado que não pode ser negociado. Mas, para o liberal, nada existe de mais sagrado que o direito de comprar e vender – a própria vida inclusive: se você acha que sua vida está um saco e quer contratar um profissional para dar cabo dela, nem o Estado nem a Igreja têm o direito de dar nisso o menor palpite. Já se quem está enchendo o saco é o seu bebê anencéfalo, a sua avó senil ou o seu tio esquizofrênico, eles não têm capacidade contratante, mas você tem: caso tenha também o dinheiro para pagar uma injeção letal e o enfermeiro para aplicá-la, nada poderá impedir que os três chatos sejam retirados do mercado mediante os serviços desse profissional. Curiosamente, não conheço um só liberal que atine com a identidade essencial de contratar um enfermeiro para dar uma injeção nos desgraçados, um pistoleiro para lhes estourar os miolos ou uma motoniveladora para reduzi-los ao estado bidimensional. Quando dizem que consideram a primeira alternativa mais “humana”, não percebem que estão apelando a um argumento conservador e limitando abominavelmente a liberdade de mercado.

O conservadorismo é a arte de expandir e fortalecer a aplicação dos princípios morais e humanitários tradicionais por meio dos recursos formidáveis criados pela economia de mercado. O liberalismo é a firme decisão de submeter tudo aos critérios do mercado, inclusive os valores morais e humanitários. O conservadorismo é a civilização judaico-cristã elevada à potência da grande economia capitalista consolidada em Estado de direito. O liberalismo é um momento do processo revolucionário que, por meio do capitalismo, acaba dissolvendo no mercado a herança da civilização judaico-cristã e o Estado de direito.

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