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Liberdade e ordem

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de fevereiro de 2010

Sei que magôo profundamente os sentimentos de meus amigos liberais ao afirmar que nenhuma filosofia política séria pode tomar como princípios fundantes as idéias de “liberdade” e “propriedade” – precisamente as mais queridas dos corações liberais. Mas, sinto muito, as coisas são mesmo assim.

Entendo por filosofia política séria aquela que não se constitui de meras justificativas idealísticas ou pragmáticas para ações que se inspiram, de fato, em razões de outra ordem, quer sejam estas ignoradas ou propositadamente escondidas pelo agente.

A missão da filosofia política não é dar uma aparência de racionalidade a opções e decisões pré-racionais. É dar inteligibilidade ao campo inteiro dos fenômenos políticos, possibilitando que ações e decisões tenham firme ancoragem na realidade dos fatos e na natureza das coisas. Para isso é estritamente necessário que seus próprios conceitos tenham inteligibilidade máxima, para que não se caia no erro de explicar obscurum per obscurius.

A liberdade, embora clara e nítida enquanto vivência subjetiva, não se deixa traduzir facilmente num conceito classificatório que se possa aplicar à variedade das situações de fato. A noção e a própria experiência da liberdade são de natureza essencialmente escalar e relativa. De um lado, é muito difícil dar um significado substantivo à noção de liberdade política sem ter esclarecido primeiro o da liberdade em sentido metafísico – uma questão das mais encrencadas. De que adianta defender a liberdade política de uma criatura à qual se nega, ao mesmo tempo, toda autonomia real? Se somos produtos do meio, de um condicionamento genético ou de um destino pré-estabelecido, é ridículo esperar que a mera promulgação de leis reverta a ordem dos fatores, assegurando-nos o direito de fazer aquilo que, de fato, não podemos fazer. Lembro-me, sem conter o riso, de uma conferência em que o filósofo da hermenêutica, Hans-Georg Gadamer, negava toda autonomia à consciência individual, fazendo dela o efeito passivo de mil e um fatores externos, e logo adiante reclamava dos regulamentos da universidade alemã, que não concediam espaço suficiente à liberdade de expressão individual. Com toda a evidência, ele exigia que a burocracia universitária revogasse mediante portaria a estrutura da realidade tal como ele próprio tinha acabado de descrevê-la.

De outro lado, a “liberdade” é, com freqüência, nada mais que um adorno retórico usado para encobrir a vigência de algum princípio totalmente diverso. Quando, com a cara mais bisonha do mundo, o liberal proclama que “a liberdade de um termina onde começa a do outro”, ele está reconhecendo implicitamente – embora quase nunca o perceba – que essa liberdade é apenas a margem de manobra deixada ao cidadão dentro da rede de relações determinada por uma ordem jurídica estabelecida. O princípio aí fundante é, pois, o de “ordem”, não o de “liberdade”. Isso basta para demonstrar que a “liberdade” não é jamais um princípio, mas apenas a decorrência mais ou menos acidental da aplicação de um princípio totalmente diverso.

Compare-se, por exemplo, a noção de liberdade com a de “direito à vida”. Esta é um princípio universal que não admite exceções nem limitações de espécie alguma. Quando você mata em legítima defesa, ou para proteger uma vítima inerme, não está “limitando” a vigência do princípio, mas aplicando-o na sua mais plena extensão: a morte do agressor aparece aí como um acidente de facto, que em nada afeta o princípio, já que é imposto pelas circunstâncias em vista da defesa desse mesmo princípio. Nenhum raciocínio similar se pode fazer com relação à “liberdade”. Quando você limita a liberdade de um para preservar a de outro, o que aí está sendo aplicado não é o princípio da “liberdade”, mas o da “ordem” necessária à preservação de muitas liberdades relativas.

Do mesmo modo, não existe “propriedade absoluta”, de vez que a propriedade é essencialmente um direito, portanto uma obrigação imposta a terceiros. O mero poder de uso de uma coisa não é propriedade, é posse. A propriedade só surge na relação social fundada pela “ordem”. O mero fato de que existam propriedades legítimas e ilegítimas mostra que a propriedade é dependente da ordem, portanto não é um princípio em si. Só para fins de contraste, imaginem se pode existir um “direito à vida” meramente relativo. Esse direito é um princípio que está na base mesma da ordem, a qual se torna desordem no instante em que o nega ou relativiza. A própria ordem, nesse sentido, não é um princípio (ao contrário do que imaginam seus defensores tradicionalistas e reacionários). Se, na hierarquia dos conceitos, toda ordem se coloca acima da “liberdade”, como garantia da possibilidade de haver liberdade em qualquer dose que seja, nem por isso a noção de “ordem absoluta” deixa de ser impensável.

O primeiro dever de uma filosofia política séria é depurar os seus conceitos de toda contradição intrínseca e de toda confusão categorial. Sem isso, qualquer diagnóstico de um estado de fato ou todo fundamento que se possa alegar para ações e decisões é apenas um sistema de pretextos retóricos destinado a enganar não só o público, mas o próprio agente. Infelizmente a maioria dos opinadores políticos, acadêmicos ou jornalísticos, está incapacitada para essas distinções, que lhes parecem demasiado abstratas e etéreas, quando, por uma fatalidade inerente à inteligência humana, nunca é possível apreender cognitivamente o fato concreto senão subindo no grau de abstração dos conceitos usados para descrevê-lo.

O último dos reacionários

Olavo de Carvalho


O Globo, 9 de agosto de 2003

Num ensaio publicado em 1961 na Partisan Review, Lionel Trilling observava que o traço essencial da cultura intelectual moderna era “uma crença de que a função primária da arte e do pensamento consiste em libertar o indivíduo da tirania da sua cultura — no sentido ambiental do termo — e permitir-lhe erguer-se diante dela com autonomia de percepção e de julgamento”.

O tema da cultura intelectual versus cultura ambiental aparece já num estudo anterior do crítico norte-americano, The Opposing Self (“O Eu Oponente”), de 1955. A literatura romântica entre os séculos XVIII e XIX assinala o advento do “escritor” como tipo humano marcado pela capacidade — ou necessidade — de sobrepor ao império do discurso coletivo a autoridade intrínseca de uma visão do mundo nascida da experiência pessoal. Numa época de derrocada geral das crenças e valores, quando tudo parecia naufragar na banalidade compressiva da sociedade de massas, o testemunho direto do artista adquiria uma força moral comparável à de Sócrates ante a assembléia de seus carrascos. A “cultura intelectual” era o refúgio do espírito contra a “cultura adversária” — a cultura dos slogans e da demagogia.

Mas a era do escritor moderno já estava em declínio em 1961. Desde algum tempo, assinalava Trilling, era cada vez maior, nos meios intelectuais, o número de pessoas que aderiam à “cultura adversária”. Os jovens que ingressavam no mundo das letras já não queriam exercer a autêntica, a profunda liberdade de consciência, com toda a grave responsabilidade íntima que ela implicava. Em vez disso, queriam “pensar por si mesmos”, fórmula pomposa que significava apenas: repetir servilmente as beatices progressistas em vez das conservadoras.

A situação tomara esse rumo no instante em que as universidades se tornaram o canal e molde predominante da carreira literária. Transformados em classe profissional acadêmica, os escritores da segunda metade do século XX cortaram os laços com a experiência pessoal para integrar-se na revolta padronizada do “intelectual coletivo”. Sua rebelião já não era a do espírito contra o mundo: era a “rebelião das massas”.

Dois outros fatores contribuíram para esse resultado. Primeiro, o ensino acadêmico tornou-se fornecedor de mão-de-obra para a “índústria cultural”, substituindo a autenticidade individual pela “novidade” produzida em série. Segundo: as novas fórmulações ideológicas do progressismo, herdadas sobretudo da Escola de Frankfurt, diluíam a marginalidade criadora do “eu oponente”, absorvendo as possíveis individualidades intelectuais no ódio coletivo a toda cultura superior. “Diversidade” e “multiculturalismo” são fórmulas que hoje desviam os jovens letrados dos anseios espirituais mais profundos, substituídos pelas satisfações morais postiças do discurso “politicamente correto”.

Essas considerações não me vêm à mente assim por nada, a esmo, mas a propósito de um personagem de quem se falou muito nos últimos dias: aquele homem extraordinário que foi Roberto Marinho. Ele foi o criador e senhor da maior organização de indústria cultural do continente. Teve a máquina nas suas mãos e não hesitou em usá-la para orientar o país na direção que lhe parecia a mais desejável. Mas, acima das suas crenças, acima do seu próprio poder de empresário e de líder, havia para ele um recinto sagrado, intocável: a liberdade da consciência. Ele combatia tenazmente por aquilo em que acreditava, mas com idêntico vigor lutava para que ninguém fosse privado da possibilidade de acreditar no contrário. Como intelectual e jornalista ele foi, nesse sentido, um típico filho das letras modernas, um homem para quem a liberdade interior, em si, valia mais do que este ou aquele conteúdo de consciência, do que esta ou aquela idéia, do que esta ou aquela certeza, por importante e querida que fosse. Dono da máquina, não apenas não se deixou engolir por ela, mas também impediu que ela esmagasse, com o seu peso, a liberdade de seus próximos — incluindo-se nesta categoria os seus mais rancorosos adversários e detratores, aqueles mesmos que fizeram dele o brasileiro mais difamado e caluniado do século XX, mais até do que Roberto Campos.

Roberto Marinho foi, assim, homem de outra época.

Para a quase totalidade dos intelectuais de hoje, a vitória da sua causa, do seu partido, da sua crença, está tão acima de qualquer outro valor ou ambição, que cada um a identifica com a vitória da liberdade mesma, da liberdade geral e universal, da grande e definitiva liberdade que há de imperar na bela “sociedade mais justa” de amanhã. E em nome de tão elevado ideal é legítimo e válido, e até moralmente obrigatório, suprimir pelo caminho a liberdade pequena e provisória, a liberdade de consciência dos indivíduos. O problema é que esta é uma realidade concreta, da qual toda a literatura moderna dá testemunho, enquanto a outra é uma hipótese abstrata, um chavão para uso de agitadores e cabos eleitorais. Os antigos totalitarismos falavam em nome da ordem, da autoridade, da hierarquia. Ostentavam com orgulho o nome de ditaduras. O neototalitarismo contemporâneo sufoca a liberdade viva em nome de um estereótipo de liberdade, feito para a autolisonja fácil de “movimentos sociais” criados em série por intelectuais ativistas, a prole inumerável, ruidosa e prepotente da universidade de massas e da indústria cultural.

Para a cultura intelectual moderna, a tolerância era, em essência, tolerância para com os adversários. Os novos tempos substituiram-na pela fórmula da “tolerância libertadora” proposta por Herbert Marcuse: “Toda a tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a direita.”

Hoje, aqueles que mais professam abominar a autoridade, a ordem, a repressão, são os primeiros a convocá-las para sufocar as vozes discordantes. Por isso a defesa da liberdade de consciência, como advertia o próprio Trilling, tornou-se conservadora, “reacionária”. Roberto Marinho foi, nesse sentido, o último dos grandes reacionários. E por isso é mais fácil elogiá-lo, depois de morto, do que seguir o exemplo

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