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Um Founding Father

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 junho de 2009

“O desastre econômico que estamos vivendo é conseqüência da hegemonia, nos últimos trinta anos, do neoliberalismo – uma ideologia de direita que desregulou os mercados financeiros.” Assim diz, em artigo publicado na Folha do dia 1º. de junho, o ex-ministro da Economia Luiz Carlos Bresser-Pereira (v. http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=3393). Sem o mínimo esforço de provar essa afirmativa, ele salta direto dela para a conclusão automática de que, se a esquerda não está se saindo tão bem como deveria nas eleições européias, é “porque nos momentos em que esteve no poder nestes últimos trinta anos ela fez tantas concessões ao fundamentalismo de mercado neoliberal que, afinal, sua política muitas vezes se aproximava daquelas propostas pela direita”.

Ou seja: partindo da premissa de que a direita é sempre culpada de tudo, fica demonstrado que a ela cabem também as culpas da esquerda quando esta está no governo. Nem mesmo uma explicação de como simples “concessões” de um lado provam a “hegemonia” do outro o sr. Bresser-Pereira nos fornece, tão longe está da sua imaginação a hipótese hedionda de que alguém possa duvidar das suas palavras. Com o mesmo ar de certeza devota que não tem satisfações a dar aos fatos ou à lógica elementar, ele assegura que, embora contaminando-se pecaminosamente de direitismo na área econômica, no plano social os partidos de esquerda permaneceram limpos e santos, porque, recusando a tentação satânica de uma política baseada na meritocracia egoísta, “mantiveram-se fiéis à idéia de que cabe ao Estado aumentar a despesa social em educação, cuidados de saúde, previdência e assistência social e, dessa forma, diminuir a desigualdade”.

Excetuado o interregno George W. Bush – tão apegado a estatismos e intervencionismos que sua base conservadora acabou por chamá-lo de socialista e traidor –, o fato é que, no período mencionado pelo ex-ministro, quem esteve no poder não só na Europa, mas no mundo, foi a esquerda. Como é possível que uma época de tantos avanços do Estado no controle da sociedade fosse também uma de “hegemonia de direita” na esfera econômica? Seria a política – e especialmente a política social – uma esfera tão separada da economia ao ponto da independência absoluta? O Sr. Bresser-Pereira sabe que não é assim. Quando lhe interessa, ele consegue explicar os fracassos da economia pelos fatores políticos. Justificando seu pífio desempenho como ministro da Economia, ele afirma que, em 1987, renunciou ao ministério “por falta de condições políticas para o necessário ajuste fiscal” (v. http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=1279). Já quando se trata de achar um culpado para a crise americana e mundial, ele repentinamente faz abstração das “condições políticas” e proclama, contra toda evidência, que o mal veio tão-somente da desregulamentação do mercado e não da proliferação monstruosa das despesas estatais. Quando um governo acumula um déficit de três trilhões de dólares, só um raciocínio morbidamente artificioso e esquivo pode fugir ao óbvio e declarar que esse governo não acumulou dívidas porque gastou demais e sim porque “desregulamentou os mercados”. Aliás, se a desregulamentação foi tanta como diz o sr. Bresser-Pereira, como foi possível extrair da economia as quantias necessárias para cobrir as “despesas sociais” cada vez maiores? Como pode a “hegemonia neoliberal” coexistir com tal pletora de impostos e gastos públicos?

Se o ex-ministro esconde por trás de uma verbiagem insensata o papel dos fatores políticos na produção da crise, é porque esses fatores, inteiramente criados pela esquerda, forçaram propositadamente o aumento dos gastos estatais e a implosão do sistema bancário, visando a gerar artificialmente a crise de modo a poder lançar as culpas de tudo no espantalho do “neoliberalismo” e, com a cara mais cínica do mundo, propor como remédio ao desastre causado pelo excesso de gastos uma dose centuplicada de novos gastos miraculosamente investidos de não se sabe quais virtudes salvadoras (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/090305dc.html).

O próprio estilo com que esse homem escreve é o de um demagogo de palanque, não o de um cientista como ele se pavoneia de ser. Todo o seu arremedo de argumento baseia-se em estereótipos lisonjeiros para um lado, depreciativos para o outro, e no apelo às certezas da mitologia esquerdista, tomadas como premissas desnecessitadas da mais mínima prova ou discussão. Na prática do charlatanismo intelectual, esse indivíduo iguala-se a qualquer Emir Sader ou Frei Betto, compondo, com eles e outros tantos, o panteão dos Founding Fathers da miséria cultural e moral brasileira.

A direita que a esquerda quer

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1 de junho de 2009

Entre outros resultados interessantes que deixarei para comentar outro dia, o estudo dos cientistas políticos Timothy Power e César Zucco, publicado na Latin American Research Review sob o título “Estimating Ideology of Brazilian Legislative Parties, 1990-2005” (v. http://www.iuperj.br/site/czucco/czucco_files/paperlarr.pdf), mostra que, enquanto os parlamentares tidos por seus adversários como “de direita” evitam colocar-se sob esse rótulo, os de esquerda, centro-esquerda e centro se autodefinem até como mais esquerdistas do que a posição nominal dos seus partidos deixaria suspeitar.

Esse fato não era desconhecido antes da pesquisa, mas adquire com ela uma certa visibilidade cientifica que tornará mais difícil, doravante, menosprezar-lhe a importância.

As conclusões óbvias que ele impõe, e que os autores do estudo evitam declarar, já que elas transcendem os limites imediatos do que se propuseram investigar, são as seguintes:

1. A esquerda tem o domínio quase absoluto dos mecanismos culturais de estímulo e inibição vigentes nas altas esferas, demarcando a seu belprazer a fronteira entre a decência e a indecência, o orgulho e a vergonha, o mérito e a culpa. Os direitistas apressam-se em submeter-se a essa autoridade moral monopolística, não com passividade e indiferença, mas com uma verdadeira ânsia de ser aprovados por seus adversários.

2. Abdicando de todo critério moral próprio, a direita exclui-se, automaticamente, de qualquer possibilidade de combate na esfera cultural e psicológica, deixando o país à mercê da hegemonia gramsciana e limitando-se à disputa de cargos (o que implica ainda mais subserviência à facção dominante), ou então à discussão de miudezas econômico-administrativas sem nenhum alcance estratégico. O presidente da República disse uma verdade flagrante ao afirmar que os partidos de oposição não têm perspectiva de poder. Eu diria até que ele foi caridoso nesse julgamento: aos partidos de direita não falta só a perspectiva de poder, falta até mesmo a compreensão elementar do que seja o poder, que eles confundem com “cargos”. Imaginar que, com cargos ou sem cargos, seja possível conquistar o poder abdicando da hegemonia, é coisa de uma ignorância tão patética que, mesmo entre os esquerdistas mais empedernidos, deve arrancar lágrimas de comiseração ante adversário tão despreparado e inerme.

3. Mais que definir as regras do jogo, a esquerda cria até mesmo a identidade do adversário, colocando na “direita” quem assim lhe interesse catalogar no momento, passando por cima dos protestos subjetivos do catalogado e ignorando com frieza de femme fatale os afagos e juras de amor com que ele tenta cavar um lugarzinho no grêmio das pessoas decentes, isto é, esquerdistas.

4. O rigor do critério de seleção para o ingresso no círculo dos bons é tão implacável, tão inflexível, que a honra suprema do esquerdismo é negada até a velhos, tarimbados e fiéis militantes de esquerda, tão logo eles cometam a imprudência de entrar num partido que a esquerda, conforme seus interesses do momento, tenha rotulado como de direita.

Pela milésima ou enésima vez, a realidade dos fatos confirma a obviedade proibida: não há política de direita sem uma moral de direita, sem uma filosofia de direita, sem uma cultura de direita, isto é, sem tudo aquilo de que a nossa direita foge esbaforida, como se foge da peste.

A unidade da duplicidade

Olavo de Carvalho

O Globo, 21 de fevereiro de 2004

Como é possível que um partido repleto de ex-terroristas, associado no Foro de São Paulo aos narcotraficantes das Farc e aos seqüestradores do MIR chileno, acusado de superfaturamento em obras e na coleta de lixo em várias das capitais que governa, suspeito de cumplicidade no assassinato de um prefeito, alimentado pelos dízimos obrigatórios dos cargos públicos que ele mesmo distribui e, last not least , inventor de uma “campanha contra a fome” que já tem 45 por cento de licitações irregulares, consiga fazer com que a denúncia de uma negociata com bicheiros apareça como uma mancha esporádica na sua reputação ilibada, como um ato isolado de “traição” a seus “altos padrões éticos”, e não como a continuação normal e previsível de uma longa carreira de delitos e mentiras?

“Hegemonia” é isso: acuada pela exibição de provas contundentes, a facção dominante ainda tem força para transmutar a perda política em vitória ideológica, fazendo com que a crença geral na bondade intrínseca da esquerda saia imune e engrandecida da revelação de qualquer sujeira. Em matéria de gerenciamento de danos, é um prodígio.

É que os dois fenômenos — o envolvimento em crimes de magnitude incomum e o controle sobre os critérios morais da opinião pública — estão profundamente interligados. É impossível elucidar o caso Waldomiro sem colocar em exame a estrutura interna do PT, que herdou das organizações revolucionárias que a originaram a técnica de articular legalidade e clandestinidade, miolo e fachada, realidade e aparência.

O partido que mama o leite dos bicheiros é, afinal, o mesmo que, com os bons préstimos de uma rede de informantes espalhados em todos os escalões da administração pública e privada e o apoio de variadas organizações co-irmãs, adquiriu há tempos um verdadeiro poder de polícia, investido dos meios de subjugar e destruir os adversários que bem entenda e, no mesmo ato, pelo próprio terror que inspira a sua retórica moralizante, bloquear qualquer investigação séria dos crimes em que se envolva. E o sr. José Dirceu que apadrinhou Waldomiro é o mesmo que, na CPI dos “anões do orçamento”, brilhava com revelações espetaculares, citando até mesmo os números das cédulas recebidas como propina por fulano ou beltrano — informação só acessível a quem tivesse olheiros escondidos por toda parte.

Essas duas faces não se excluem, mas se exigem mutuamente. O juiz temível e o gatuno sorrateiro são o mesmo personagem. Já ensinava Lênin: “Fomentar a corrupção e denunciá-la”. Não há um PT bom e um PT mau: o que há é estratégia, organização, informação, planejamento, convergência de todos os meios lícitos e ilícitos para o objetivo final: a conquista do poder, a fusão de Partido e Estado, o domínio sobre a “sociedade civil organizada” (“o Partido ampliado”, como a chamava Gramsci), a demolição total das instituições e sua substituição por um “novo modelo de democracia” que já era velho no tempo em que Fidel Castro usava fraldas.

As habilidades requeridas para conduzir uma operação tão complexa estão fora do alcance dos políticos “normais”, cuja ciência não vai além das espertezas eleitoreiras, mercadológicas e parlamentares necessárias para o exercício corriqueiro da política provinciana.

Quase todos os líderes do PT têm uma longa prática da ação clandestina, e, não por coincidência, precisamente aquele a quem o episódio recente deu a mais triste notoriedade é um agente treinado pelo serviço cubano de inteligência militar, o mais poderoso e eficaz do continente. Suas aptidões nesse campo incluem a organização de redes subterrâneas de espionagem e propaganda, infiltração, terrorismo, bem como todas as artes da desinformação e camuflagem das quais a média da classe política nacional só tem uma idéia longínqua e fantasiosa, adquirida, na mais erudita das hipóteses, em filmes de James Bond.

Entre o PT e seus acusadores, a única luta possível é a da astúcia organizada contra uma pululação anárquica de indignações cegas. Sem a consciência do que está verdadeiramente em jogo, essas indignações correm o risco de se esfarelar numa poeira de protestos vãos.

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