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Cara de pau e coração de pedra

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 18 de setembro de 2005

Outro dia, um sujeitinho obviamente mal intencionado, cujo nome esqueci e não pretendo lembrar, escreveu neste mesmo jornal que o desarmamento dos judeus na Alemanha nazista veio acompanhado de fortes incentivos oficiais à posse de armas pelos “cidadãos de bem”; que, portanto, Hitler e o regime que criou não eram desarmamentistas e sim ao contrário.

Na mais branda das hipóteses, esse argumento é exploração da boa-fé popular, baseado na confusão proposital entre a expressão “cidadão de bem” tal como usada no atual debate sobre o desarmamento, onde designa a população em geral, e no contexto nazista, onde se referia a uma classe especial de pessoas. Pois a primeira e mais essencial condição para ser um “cidadão de bem” no regime alemão da época era uma carteirinha do Partido Nazista. Sem isso ninguém tinha sequer direito a um emprego, quanto mais à posse de uma arma. Ou seja: tratava-se de armar até os dentes uma determinada organização política e seus colaboradores, desarmando ao mesmo tempo o restante da população. A intenção era idêntica à dos atuais desarmamentistas brasileiros, que jamais pensaram em desarmar os militantes e parceiros de “movimentos sociais”, como o MST ou — mais ainda — o Viva-Rio. Este último, que tem intensa atuação nas favelas do Rio, abrigo principal dos narcotraficantes naquele Estado, nunca tentou recolher ali uma só arma, como recolhe da população em geral. E é notória a proteção que seu presidente, o sr. Rubem César Fernandes, estende sobre criminosos como o sr. William Lima da Silva, cujo livro “Um contra mil” prefaciou e festejou em cerimônia na ABI, ou o sr. William de Oliveira, “líder comunitário” cujas ligações íntimas com o crime organizado ninguém ignora. No entender do sr. Fernandes, são esses os “cidadãos de bem”, tal como no nazismo eram cidadãos de bem os militantes e amigos do Partido Nazista.

Porém ainda mais perverso do que o autor desse artigo é o infalível dr. Emir Sader, que em artigo recém-publicado procura associar a campanha contra o desarmamento a interesses de grupos milionários nacionais e estrangeiros, quando sabe perfeitamente bem que as contribuições desses grupos vão todas para as organizações desarmamentistas, cujos adversários, portanto, ficam com a pior parte numa luta monstruosamente desigual. Como se não bastasse essa mentira explícita, o dr. Sader ainda insinua que ser contra o desarmamentismo é favorecer o contrabando de armas, como se os contrabandistas tivessem algo a perder, e não a ganhar, com a proibição do comércio legal, e como se, aliás, o contrabando em geral não consistisse, por definição, em burlar entraves legalmente impostos ao comércio, tornando-se inviável quando esses entraves desaparecem.

Com freqüência leitores me perguntam, perplexos, se tipos como o dr. Sader e o outro dizem essas coisas por malícia pura ou estupidez genuína. Respondo-lhes que se trata sempre de uma mistura das duas coisas, que não há oposição e sim complementaridade entre elas, já que a malícia não é uma forma de inteligência e sim o seu substitutivo demoníaco, que é o que resta no fundo da alma quando a inteligência, capacidade de apreender e admitir a verdade, foi vendida em troca de vantagens pessoais, de apoio grupal ou do sentimento lisonjeiro de “participação” em movimentos histórico-sociais hipnoticamente atraentes. Para tornar-se um autêntico charlatão intelectual, um ser humano tem de primeiro danar a sua própria inteligência, mediante a ingestão maciça de mentiras e ilusões, chegando à perfeição no momento em que, sabendo que mente, aprende a simular os sentimentos próprios de uma defesa apaixonada da verdade. É nesse momento que o leitor ou ouvinte, sabendo estar diante de uma mentira, fraqueja e se sente em dúvida, imaginando que ninguém teria a cara-de-pau de mentir com tanta afetação de sinceridade. É desse momento de dúvida que se prevalecem os Sáderes e tutti quanti, já que têm algo mais que cara-de-pau: têm coração de pedra, que é como a Bíblia simboliza a repressão voluntária da voz da consciência.

Mas, no fim, como diz a mesma Bíblia, sua loucura será exposta aos olhos de todos.

Tirando a dúvida

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 29 de maio de 2005

Quando um chavão pejorativo reaparece com insistência nas bocas dos vários porta-vozes de uma causa, fixando hipnoticamente a atenção do público num determinado traço odioso da figura adversária, o mínimo de prudência recomenda suspeitar que não se trata de uma polêmica normal, mas de uma campanha de propaganda enganosa.

Suspeita não é, evidentemente, certeza. Pode ser tudo uma infeliz coincidência estilística.

O método para tirar a dúvida é simples. Verifique se o rótulo tem alguma correspondência com a realidade. Se o insultado tem de fato a má qualidade apontada e se ela é tão proeminente que olhando para ele dificilmente se repare em outra coisa, a repetição do insulto talvez traduza apenas a uniformidade de uma impressão geral correta. Milhares de brasileiros repetem que o presidente Lula é campeão internacional de gafes, e não há nisso nenhuma campanha contra ele, apenas a constatação repetida de fatos notórios.

Mas, se o defeito indicado não é saliente a esse ponto, se, ao contrário, ele não é evidente de maneira alguma e, pior ainda, se sua presença no personagem acusado não pode ser comprovada por nenhum meio legítimo, então é claro que a insistência grupal em apontá-lo revela um intuito uniforme e organizado de conquistar o público para uma opinião difamatória, utilizando um cacoete de linguagem para criar um cacoete de pensamento.

A expressão “poderoso lobby da indústria de armas”, que quase infalivelmente reaparece nos discursos dos desarmamentistas para carimbar os adversários da sua campanha como paus-mandados a serviços de interesses milionários, entra nitidamente nessa categoria. Isso pode ser averiguado facilmente pelo método acima apontado.

Desde logo, os usuários desse chavão empregam-no sempre de maneira vaga e genérica, sem jamais esclarecer a quais indústrias de armas se referem nem muito menos qual a ligação delas com as entidades que reagem ao desarmamento.

O motivo é muito simples: não há nenhuma indústria de armas financiando a luta contra o desarmamento. O Brasil tem uma única empresa fabricante de armas, cujo maior e quase único cliente no território nacional é o governo, isto é, o chefe mesmo da campanha desarmamentista.

Quanto a empresas estrangeiras, não existe o mínimo indício de que alguma delas tenha contribuído para as escassas e pobres organizações pró-armas, nem muito menos de que tenha feito algum esforço sério para conquistar o mercado brasileiro.

Em compensação, os financiadores da campanha desarmamentista em todo o mundo são bem conhecidos: ONU, Comunidade Européia, Fundação Ford, Fundação Rockefeller e entidades similares, além do sr. George Soros, é claro.

Quem, então, é o “poderoso lobby”?

Outro dia, no Rio, as colunas sociais noticiaram uma reunião festiva de desarmamentistas chiques. A chamada “nata da sociedade” compareceu ao evento para dar seu apoio à bela causa personificada pelo Dr. Rubem César Fernandes, aquele mesmo que alardeava que o desarmamento iria diminuir a criminalidade e, uma vez obtida a persuasão geral, declarou candidamente que se tratava de um geral auto-engano.

A festa transcorreu sem o menor incidente, mesmo porque o prédio onde se realizava ficou cercado de seguranças armados, zelosos na sua tarefa de proteger as vidas e os bens dos convidados.

Como a lei do desarmamento só proíbe armas pessoais, não seguranças armados, ela terá por efeito imediato e incontornável a divisão dos cidadãos brasileiros em duas classes: a maioria desarmada, que o governo confessa não ter condições de proteger, e a minoria armada até os dentes, que não precisará de proteção oficial porque tem meios de se proteger a si mesma.

É ou não é para o beautiful people comemorar desde já?

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