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O passado no presente

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de julho de 2010

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Uma coisa que não tem o menor cabimento é chamar Dona Dilma Roussef de “ex” terrorista. Mesmo num exército regular, o número dos militares que entram em combate é mínimo em comparação com a maioria espalhada em serviços de administração, intendência, comunicações, inteligência, comando, estado-maior etc. Numa organização terrorista ou guerrilheira, esse círculo de retaguarda é ainda maior, dado que as atividades propriamente militares são aí reduzidas ao mínimo necessário para produzir os efeitos políticos ou publicitários desejados. Por isso Lênin chamava aos atentados terroristas “propaganda armada”, subentendendo uma articulação eficiente com a “propaganda desarmada”, a qual, por sua própria natureza, exige recursos humanos muito mais vastos, estendendo-se por toda a sociedade e ramificando-se numa diversidade impressionante de organizações auxiliares e formas de atuação que podem ser bem indiretas e sutis, mas nem por isso menos decisivas.

Uma organização terrorista compõe-se de todos esses serviços, e não só dos seus agentes destacados para funções de combate. Hoje em dia, a maior organização terrorista do continente não são as Farc, nem o ELN, nem o MIR chileno: é o Foro de São Paulo, que os coordena e lhes dá o suporte político sem o qual suas ações armadas não teriam a menor eficiência. Dona Dilma Roussef, como líder de um partido que foi o fundador e mentor do Foro de São Paulo, é com toda a evidência membro de uma organização terrorista e deve prestar contas não só do seu “passado”, mas das suas ações presentes que dão respaldo, às vezes nada indireto, aos crimes dessa organização. Neste preciso momento, centenas de prisioneiros políticos sofrem opressão e torturas em Cuba; milhares de seqüestrados apodrecem nas prisões da Farc, enquanto o dinheiro do narcotráfico continua fluindo para essa e outras organizações sobre as quais o Foro de São Paulo estende a sua ignominiosa proteção. As ações armadas das quais Dona Dilma possa ter participado três décadas atrás, por vergonhosas que sejam, são nada, rigorosamente nada, em comparação com a infinidade de crimes dos quais seu partido é acobertador e cúmplice hoje em dia. Mas muitos políticos na chamada “oposição” – palavra que não se pode grafar sem enfáticas aspas – recusam-se até mesmo a dizer que essa mulher “foi” terrorista. Remetem seus crimes ao tempo pretérito e ainda os atenuam sob o manto do esquecimento forçado. O que é preciso dizer alto e bom som é que todo líder ou colaborador do Foro de São Paulo é membro de uma organização terrorista, e o é não só no mais dramático dos tempos presentes como também no sentido eminente de aí exercer função de liderança em vez de de ser apenas um tarefeiro armado, um esbirro sob ordens de outrém, um brutamontes encarregado de fazer o que lhe mandam.

Toda e qualquer hesitação em lembrar o “passado” de Dona Dilma é mais que covardia: é colaboração ativa com a continuação ampliada desse passado, que hoje toma o nome de Foro de São Paulo. Os que se sujam nessas afetações de uma polidez abjeta não estão branqueando um passado, estão acobertando os crimes do presente. Tanto que a expressão “Foro de São Paulo” raramente ou nunca se ouve das suas bocas. Podem ter a certeza: os líderes da organização contam com essa ajuda prestimosa, que nunca lhes faltou. No conjunto, a política brasileira – da governista à menos governista — segue fielmente, servilmente a estratégia do Foro de São Paulo.

São os mentores dessa estratégia, e não seus executores físicos, os maiores terroristas do continente. Entre as ações brutais do tarefeiro armado e as sutilezas da liderança intelectual e política, vai toda a diferença que medeia entre a mão e o cérebro, entre o corpo e a mente. Hoje em dia, os bandoleiros das Farc não são senão a epiderme, a casca da subversão latino-americana. O miolo, o cerne, está nos altos escalões do Foro de São Paulo, sem cuja visão estratégica de conjunto e sem cujo respaldo político as atrocidades da narcoguerrilha se diluiriam numa pasta de inocuidades sangrentas, não mais eficazes, politicamente, do que uma estatística de crimes passionais.

Longe de terem se afastado das atividades criminosas, os políticos de esquerda que hoje brilham no Foro de São Paulo foram da periferia delas para o centro, da base para o topo. Antes de inocentá-los, perguntem: quantos judeus Adolf Hitler matou pessoalmente? Nenhum. Quantas ordens de execução ele assinou com sua própria mão? Nenhuma. Aparentemente, ele não “matou” judeu nenhum. Só criou a política que os matou. Mas é isso, precisamente, o que se chama genocídio. Por definição, ninguém pratica genocídio no varejo, matando pessoalmente um por um. Genocídio é crime de gabinete. Por que então modificar capciosamente a definição de terrorismo, designando com essa palavra somente as ações físicas dos paus-mandados e não o conjunto do plano que as tornou possíveis? Por esse critério, Hitler seria inocente da morte dos judeus, e só cabos e sargentos dos campos de concentração levariam a culpa. Hitler é tão inocente do extermínio dos judeus alemães quanto os líderes do Foro de São Paulo são inocentes dos crimes das Farc.

A direita permitida

Olavo de Carvalho

Zero Hora (Porto Alegre), 1 de julho de 2000

Quando você ouvir dizer que “Direita e esquerda são noções ultrapassadas”, repare bem e notará que em geral a frase vem da boca de algum senhor satisfeito e de unhas polidas, que corresponde esquematicamente àquilo que no imaginário comunista constitui um “burguês”. Ela é, com efeito, um lugar-comum da “direita”. Pelo menos um esquerdista contumaz diria que o é — e eu não hesitaria em lhe dar razão, com a ressalva de que aí não se trata da direita em geral, da direita essencial que se encarnou historicamente em Edmund Burke, em Disraeli, em Aléxis de Tocqueville, em T. S. Eliot ou em João Camilo de Oliveira Torres, mas de uma direita muito específica, localizada e até peculiar: a direita brasileira de hoje, constituída inteiramente de senhores satisfeitos e de unhas polidas, cuja única preocupação na vida, além de absorver rios de dinheiro para engordar e dispender rios de dinheiro para emagrecer, é precisamente não se preocupar com nada.

Além de poder ser facilmente identificado pela mencionada palavra-de-passe, o membro dessa facção ideológica assinala-se também por autodenominar-se “centro”, um termo cuja exatidão se pode aferir matematicamente pela equidistância do seu umbigo a qualquer ponto da majestosa circunferência abdominal que delimita, por assim dizer, a sua substância espiritual.

Se, munido desses dois indícios, o leitor ainda tiver alguma dificuldade para distinguir o tipo, há um terceiro critério, que não falha: o componente desse partido notabiliza-se pela absoluta inexistência, no seu ser consciente, de qualquer conflito entre a tranquilidade soberana com que ele nos assegura que o comunismo morreu e a solicitude temerosa com que busca aplacar as exigências do falecido mediante polpudos cheques para projetos educacionais de doutrinação esquerdista, para a campanha do PT, para prêmios culturais dados aos ídolos da esquerda.

Visto da esquerda, esse é o direitista ideal, o direitista que os comunistas pediram – ou pediriam, se fossem crentes — a Deus. Além de alimentar com sua conta bancária os empreendimentos da revolução em marcha e protegê-los sob o manto de invisibilidade das almas do outro mundo, ele ainda consente em oferecer sua própria pessoa como máximo exemplo comprobatório do argumento comunista, desempenhando de bom grado o papel do gorducho fominha, a imagem didática do burguês enfatuado, egoísta e interesseiro, que o doutrinador marxista pode, com a certeza do fácil sucesso oratório, exibir a boquiabertos militantes como protótipo do inimigo odioso e desprezível a ser varrido da face da terra pela revolução salvadora.

Outra vantagem indiscutível que a rotunda presença desse personagem na ala direita do palco oferece aos ocupantes da ala contrária é que, uma vez identificado o seu perfil com o da direita enquanto tal, qualquer direitista um pouco diferente dele que se apresente, por exemplo, um direitista honrado, cheio de idéias, que prefira antes defender valores morais do que representar alegremente o papel do palhaço da história, acabará parecendo um tipo estranho, não terá como ser catalogado e facilmente será expelido para o domínio do anormal, do inaceitável, do absurdo. Não havendo nome específico para isso no vocabulário corrente, o jeito será apelar à ampliação quantitativa e carimbá-lo: “Extrema-direita”. Hoje em dia, com efeito, basta você dizer qualquer coisa que saia dos lugares-comuns da direita gorda sonsa, basta você fazer qualquer crítica mais séria ao discurso dominante – basta você dizer, por exemplo, que ser “gay” não é tão valioso quanto ser santo –, e pronto: todos respondem que você é o Le Pen em pessoa, se não Benito Mussolini ou Adolf Hitler. Não estou caricaturando: estou descrevendo coisas que se passam todos os dias nos jornais e nas universidades.

Eis então a direita reduzida à opção entre fazer o papel de bode expiatório ou ser chamada de fascista, de nazista, de virtual assassina de negros, índios e judeus (embora ela esteja repleta de judeus, negros e descendentes de índios). Como ninguém quer fazer esse papel vexaminoso, todos se apressam em vestir seu uniforme de gorduchos fominhas e a sair repetindo pelas ruas: “Sou de centro! Sou de centro!”

Aí a esquerda deixa você existir: o gorducho, afinal, está aí apenas para ser roubado, cuspido e ainda acusado de corrupção. Qualquer direita que não caiba nesse modelo é nazismo.

O próprio termo “direita” foi tão criminalizado, que hoje um brasileiro, viajando pela Europa, se surpreende ante a tranqüilidade com que um Paul Johnson, um Roger Scruton se apresentam como direitistas e na platéia ninguém tem chilique, nem os confunde com Le Pen. Sim, na Europa a direita se mostra e não é considerada pornográfica. No Brasil, quando ela aparece, as mães cobrem os olhos de seus filhos.

O controle sobre o uso do vocabulário público é um dos instrumentos mais eficientes e mais perversos do arsenal criado pela estratégia de Antonio Gramsci para o estabelecimento da hegemonia – o domínio hipnótico das consciências – e a subseqüente tomada do poder pela esquerda revolucionária.

Uma direita inerme e caricatural que não ousa dizer seu nome, uma direita incapaz de escolher seu próprio destino, uma direita condenada a desempenhar os papéis ora ridículos ora odiosos que seus inimigos lhe designaram, é o produto mais típico da hegemonia esquerdista triunfante.

Um lindo pretexto para ignorar a verdade

Olavo de Carvalho

O Globo, 27 de maio de 2000

“O pensador ideológico cria uma linguagem
para expressar não a realidade,
mas a sua alienação dela.” (Eric Voegelin)

O mais lindo pretexto dos céticos, relativistas e pragmatistas para advogar uma noção puramente funcional ou operacional da verdade é que a verdade certa e provada faz mal à saúde política da democracia. Se um sujeito está persuadido de que conhece a verdade, ele não tem a menor tolerância para com a opinião adversa. É o que eles alegam. Daí partem para provar a impossibilidade de provar o que quer que seja, proclamando que o mundo só será feliz quando todas as teorias se neutralizarem umas às outras e a humanidade reconhecer que não existem verda­des, apenas ficções úteis e provisórias. Suprimido o critério de veracidade, todas as idéias terão direitos iguais. Será a democracia perfeita.

A mente habituada a julgar as afirmações pelo valor nominal aceita mais que depressa essa esperançosa conclusão, lisonjeada ademais pela perspectiva de que suas próprias opiniões, sendo tão úteis e provisórias quanto quaisquer outras, vale­rão o mesmo que as de Aristóteles ou Leibniz.

Mas, contra esse persuasivo arranjo de aparências, resta o fato brutal de que, dos dois grandes totalitarismos do século, comunismo e nazismo, nenhum acredi­tou na existência da verdade objetiva ou na possibilidade de conhecê-la. Bem ao contrário, estavam ambos convictos de que as idéias não são instrumentos para co­nhecer a realidade e sim para transformá-la. Karl Marx diz explicitamente isso nas famosas “Teses sobre Feuerbach”. Uma das mais excêntricas peculiaridades inte­lectuais do marxismo é justamente que sua visão da história declara não poder ser compreendida desde fora e pelo puro exame teorético: para captar suas insondáveis profundidades o sujeito tem de primeiro aderir à causa do proletariado e, partici­pando das lutas proletárias, apreender o processo revolucionário no próprio curso dialético da ação que o produz. Ao proclamar que a luta de classes é inseparavel­mente uma teoria científica e a regra prática da ação revolucionária, Marx perverte a noção mesma de “teoria científica”, que, de instrumento de síntese intelectual dos dados objetivos, se torna o meio de produzir ou modificar esses dados para que retroativamente coincidam com a teoria. Ninguém compreendeu isso melhor do que Lênin, quando descobriu que podia fazer uma revolução proletária num país sem proletariado: bastava que uma elite se autonomeasse representante dos proletá­rios futuros, tomasse o poder e em seguida criasse um proletariado.

Ainda mais descaradamente instrumental e pragmatista era a noção de ver­dade de Adolf Hitler. Ele disse a Hermann Rauschning (Conversações com Hitler, 1940): “Sei perfeitamente que, num sentido científico, não existem raças… Mas, como político, preciso de um conceito que me permita dissolver a ordem es­tabele­cida e impor em seu lugar uma ordem totalmente nova.” É o espírito de Karl Marx que baixou no terreiro: não se trata de descrever o mundo, mas de transformá-lo.

Quem acredita em verdade objetiva busca encontrar uma e prová-la. Aquele que reduz a verdade a um instrumento para transformar o mundo não tem de provar nada: tem apenas de dar cabo de quem fique atravessado no caminho da transformação.

24/01/00

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