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Notícias atrasadas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de maio de 2013

          

Meses atrás citei aqui o livro chinês dos Trinta e Seis Estratagemas, que me permito repetir: “Todo fenômeno é no começo um germe, depois termina por se tornar uma realidade que todo mundo pode constatar. O sábio pensa no longo prazo. Eis por que ele presta muita atenção aos germes. A maioria dos homens tem a visão curta. Espera que o problema se torne evidente, para só então atacá-lo.”

        Sim, a visão da maioria é naturalmente curta, mas hoje em dia existem instrumentos aprimorados e eficientíssimos para encurtá-la mais ainda. O principal deles é, sem a menor dúvida, a autoridade da grande mídia. Se você espera que os fatos estourem nas manchetes ou sejam alardeados no noticiário das oito, fique ciente de que isso só acontecerá quando tiverem crescido até dimensões catastróficas e já nada se puder fazer para escapar às suas conseqüências. Por desgraça, deixar sob suspeita qualquer informação até que apareça no New York Times ou na CNN é considerado, nos círculos bem-pensantes, uma prova de realismo e de maturidade, quase uma obrigação moral. O resultado é invariavelmente patético: faz apenas uns dias que aquelas respeitabilíssimas instituições noticiaram pela primeira vez o escândalo de Benghazi, do qual os observadores atentos já sabiam desde vários meses: a secretária de Estado Hillary Clinton bloqueou qualquer ação militar em defesa dos funcionários americanos da Embaixada na Líbia atacados por terroristas em 11 de setembro de 2012, depois maquiou os relatórios do serviço secreto para negar que tivesse havido alguma operação terrorista e lançar a culpa de tudo num ridículo filminho do youtube.

Os grandes jornais e canais de TV da América também noticiaram esta semana a condenação do médico Kermit Gosnell à prisão perpétua, por matar bebês que haviam escapado vivos de operações de aborto. Pintaram o doutor com cores repugnantes que bem o retratam, mas enfatizaram de tal modo a feiúra do personagem que acabaram por deixar no leitor a impressão de que se tratava de um caso excepcional, de uma anomalia isolada. No entanto, quem raspe a superfície do noticiário descobrirá não só que crimes do mesmo tipo são prática comum em muitas clínicas de aborto, mas que a Planned Parenthood, o mais poderoso lobbyabortista dos EUA, os defende e ensina, discretamente mas não em total segredo, como procedimentos normais e até éticos (v. aqui). Quantos Kermits Gosnells beneficiaram-se assim da circunstância feliz de que um só pagou por todos, encobrindo os demais sob a proteção do noticiário deformado?

Mutatis mutandis, até hoje a grande mídia americana não pensou em investigar por que raios o governo Obama autorizou, sem razão plausível e contra as mais óbvias precauções de segurança, que fossem divulgados os nomes dos soldados que participaram do cerco a Bin Laden, propiciando assim que fossem localizados e assassinados, e depois ainda montou um simulacro cínico de homenagem póstuma, proibindo que o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo fosse mencionado na oração fúnebre e encarregando de pronunciá-la um religioso muçulmano – sim, logo um muçulmano – que se incumbiu singelamente de cuspir na memória dos heróis, chamando-os, alto e bom som, de “infiéis a Allah”.  Significativamente, na mesma semana o Pentágono anunciou, com ares de quem não dissesse nada de mais, que qualquer soldado que abra o bico para falar da religião cristã numa instalação militar poderá ser submetido a côrte marcial.

É verdade que, quase ao mesmo tempo, todos os órgãos da mídia elegante informaram honestamente ao público que, durante a campanha eleitoral de 2012, o governo usou da Receita Federal (Internal Revenue) para investigar, pressionar e atemorizar organizações conservadoras, especialmente ligadas ao Tea Party. Depoimentos de pessoas que sofreram esse tipo de pressão já circulavam na internet fazia tempo, sem que ninguém nos altos círculos jornalísticos se lembrasse de mandar um repórter entrevistá-las para tirar o caso a limpo. Por que então de repente, e só agora, o episódio se tornou digno de figurar nas manchetes? Foi só porque o próprio governo, temendo investigações e um escândalo maior ainda, se encarregou de confessar o delito, na esperança de que as vítimas se contentassem com um pedido de desculpas e deixassem o assunto morrer (o que não aconteceu). O cérebro da massa leitora e telespectadora pode ser, o quanto se queira, letárgico de nascença, mas decerto ele se tornaria um pouco mais esperto se o aparato inteiro da mídia moderna não se encarregasse de mantê-lo sob anestesia até o momento em que despertá-lo já não pareça implicar maiores riscos para os queridinhos da elite jornalística.

 Em princípio, e por sua mais alta vocação, o jornalismo é o irmão menor da ciência histórica. Seus métodos são os mesmos – coleta de documentos e testemunhos, avaliação, interpretação, confronto de hipóteses e redação das conclusões –, apenas praticados em diferentes escalas de tempo e de exigência crítica.

Mas, além do dever nominal de informar, a mídia tem também outras funções. Um dos princípios mais básicos da ciência histórica é que a divulgação dos fatos produz novos fatos. Quem tem nas mãos o poder de divulgar não resistirá por muito tempo à tentação de controlar o teor dos fatos divulgados para dirigir, por esse meio, a produção dos fatos subseqüentes. A transformação geral da grande mídia em instrumento de controle e de engenharia social é, ela própria, um desses fatos geradores, e decerto o mais decisivo das últimas décadas.

Devotos de um vigarista

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de maio de 2013

          

Folha de S. Paulo perguntou a quatro dos seus mais típicos mentores por que é ainda importante ler Karl Marx. Nenhum deles deu a resposta certa: porque ninguém pode ignorar, sem grave risco, as idéias que mataram mais seres humanos do que todos os terremotos, furacões, epidemias e desastres aéreos do último século, mais duas guerras mundiais. Infringindo a regra elementar do próprio Karl Marx, de que a verdadeira substância de uma idéia é a sua prática e não a sua mera formulação conceitual, três deles mostraram enxergar o marxismo como pura teoria, separada da ação que exerceu no mundo, e incorreram assim no delito de “formalismo burguês”, o mais abominável para um cérebro marxista. Eu não tomaria aulas de marxismo com esses sujeitos nem se eles me pagassem.
         O quarto, prof. Delfim Neto, na ânsia de redimir-se ante a intelectualidade esquerdista do pecado de ter servido à ditadura militar, caprichou no hiperbolismo e atribuiu a Karl Marx o dom da eternidade, que numa perspectiva marxista não faz o menor sentido.
         O prof. José Arthur Gianotti recomendou reler Karl Marx cuidadosamente, porque “sua concepção da história foi adulterada, por ter sido colada, sem os cuidados necessários, a um darwinismo respingado de religiosidade.” Adulterada? Colada? Nenhum dos continuadores de Karl Marx revelou tanta dívida intelectual para com Charles Darwin quanto o próprio Karl Marx, que declarou sua filosofia nada mais que a interpretação darwinista da História e só não dedicou O Capital ao autor de A Origem das Espécies porque este não permitiu. Quanto à tonalidade religiosa, ou pseudo-religiosa, ela é mais do que notável nos Manuscritos de 1944 e ressoa em cada linha das verberações proféticas anticapitalistas espalhadas ao longo de toda a obra de Marx. O prof. Gianotti é que quer separar artificialmente aquilo que nasceu junto. “Reler cuidadosamente”? Não é preciso. Bastaria ter lido.
         Mas o mais cômico dos quatro foi o sr. Leandro Konder, que intelectualmente já saiu do mundo dos vivos há três décadas e não precisaria ter abandonado seu estado de animação suspensa para confirmar, na Folha, aquilo que ele já provou centenas de vezes: sua prodigiosa incultura, seu total desconhecimento dos assuntos em que opina.
         Disse ele: “Os grandes pensadores são grandes porque abordam problemas vastíssimos e o fazem com muita originalidade. A perspectiva burguesa, conservadora, evita discuti-los. E é isso o que caracteriza seu conservadorismo.”
         Os conhecimentos que não só ele pessoalmente, mas toda a corriola de mentecaptos marxistas deste país tem daquilo que ele chama “perspectiva burguesa” podem ser avaliados pelo Dicionário Crítico do Pensamento da Direita, em que 104 dessas criaturas ridículas se encheram de dinheiro público para dar um show de ignorância como nunca se viu no mundo. Leia em http://www.olavodecarvalho.org/textos/naosabendo.htm e depois volte aqui.
         Essa gente simplesmente não estuda os pensadores que parecem antipáticos ao seu partido. Adivinha ou cria suas idéias à distância, partindo de fofocas, piadas, fantasias preconcebidas e lendas urbanas que constituem, no seu ambiente mental sufocantemente provinciano, a única bibliografia requerida para quem deseje pontificar a respeito. Fazem isso até comigo, que tenho uma obra publicada relativamente escassa, por que não o fariam com os autores de muitas dezenas de volumes, como Leibniz, Husserl, Voegelin ou o nosso Mário Ferreira dos Santos?
         A um boboca que desconhece tudo aquilo que despreza, é forçoso que o horizonte de problemas pensado por Karl Marx pareça, em comparação com o nada, “vastíssimo”. Mas Karl Marx, em verdade, pensou num único problema: a luta de classes. Todos os outros conceitos da sua filosofia foram recebidos prontos, como os de dialética, de alienação ou de comunismo, ou são apenas afirmados sem nenhuma discussão crítica, como o próprio “materialismo dialético”, ou derivam da luta de classes por mero automatismo, como os de ideologia, superestrutura etc. Longe de ampliar o horizonte dos problemas filosóficos, o que Karl Marx fez foi restringi-lo com um dogmatismo acachapante, instituindo aquilo que Eric Voegelin caracterizou como “proibição de perguntar”. Já nem falo dos grandes problemas clássicos como o fundamento do ser, o sentido da existência, o bem e o mal, etc. Nem o próprio conceito de “valor”, essencial na sua economia, ele discute. Postula-o no começo de O Capital e segue adiante, sem notar que disse uma tremenda asneira.
         Comparado ao de Leibniz, de Aristóteles ou de Platão (ou mesmo ao de um Eric Voegelin, de um Max Weber, de um Christopher Dawson ou de um Pitirim Sorokin), o horizonte de problemas de Karl Marx é deploravelmente pobre. Sua cultura literária é a de um professor de ginásio, seus conhecimentos de história da pintura, da arquitetura e da música praticamente nulos, suas noções de teologia não fazem inveja a nenhum seminarista. Pergunto-me, por exemplo, qual a relevância do pensamento de Karl Marx para as ciências biológicas, para a física, para as matemáticas. Zero. A breve incursão do seu amigo Engels nesses domínios foi um vexame espetacular.
         Em matéria de ética, então, o tratamento que Marx dá ao problema da felicidade humana é decerto o mais besta, o mais grosseiro de todos os tempos: tomemos o dinheiro da burguesia e todos serão felizes. Enfeitado o quanto seja, o argumento é esse. Só por esse detalhe o homem já mereceria o adjetivo com que o resumiu Eric Voegelin: “Vigarista”.

Bichinhos assustados

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de maio de 2013

          

De fosse preciso alguma prova suplementar daquilo que escrevi no artigo “A animalização da linguagem”, os srs. Nirlando Beirão, Luís Antonio Giron, Paulo Ghiraldelli e mais meia dúzia se apressaram gentilmente a fornecê-la antes mesmo de que o artigo fosse publicado.

Não li ainda o livro do Lobão, O Manifesto do Nada na Terra do Nunca. Mas, por si mesmas, as reações que essas criaturas lhe ofereceram ilustram de maneira exemplar a animalização da linguagem.

A desenvoltura ingênua com que imaginam que basta carimbar um autor como “direitista” para sepultá-lo sob dez toneladas de irrelevância mostra que não usam a linguagem como seres humanos, para representar e analisar o mundo, mas como cães que cheiram os órgãos genitais uns dos outros e, ali reconhecendo instantaneamente o membro do grupo ou o estranho, dão o assunto por encerrado.
Isso é a mais alta atividade cerebral de que são capazes.
Não se trata, sequer, de catalogação ideológica no sentido em que a praticavam os velhos marxistas, a qual exigia ir além das meras aparências partidárias e investigar se a intenção profunda de uma obra ia na direção do realismo – “humanismo”, no sentido de Lukács – ou da negação idealista do processo histórico.
Nessa operação, o direitismo ou o esquerdismo imediatos já não contavam como provas suficientes de uma identidade ideológica, de maneira  que reacionários de marca como Aristóteles, Shakespeare, Dostoiévski e Balzac podiam até ser absorvidos no corpus da doutrina marxista como  seus antecessores e parceiros.
Uma vez o poeta Bruno Tolentino sugeriu que os “intelectuais de esquerda” – na época ainda existiam alguns – deveriam ler meus livros com esse espírito. Se o fizessem, teriam algumas surpresas e algum ganho. Mas eles todos já morreram. O que sobrou foram os farejadores de genitais, que ao primeiro sinal de uma presença hostil já saem correndo para dar o alarma ao resto da matilha e, feito isso, julgam que cumpriram o mais sublime dos deveres intelectuais.
As categorias interpretativas em que baseiam seus diagnósticos não têm nada a ver com teoria marxista ou com qualquer tipo de pensamento filosófico reconhecível. São estereótipos de histórias em quadrinhos, filmes de aventuras e conversas de botequim.
O sr. Giron, por exemplo, cataloga-me “à direita de Átila, o Huno” e sai todo pimpão, congratulando-se do símile originalíssimo. Nada mais significativo da mentalidade de um falante do que a fonte de onde extrai suas figuras de linguagem. Átila, historicamente, foi o líder das massas bárbaras que, por onde passavam, desmantelavam a ordem social imperial. Um revolucionário em toda a linha. No imaginário infantil, porém, ele simboliza apenas o malvadão, donde o sr. Giron, sentindo o cheiro de coisa ruim e espremendo suas cadeias sinápticas até à potência máxima, conclui que deve ter sido um direitista. Dizem que o estilo é o homem. Mas às vezes não chega a ser um homem: é apenas um cãozinho amedrontado.
Quanto aos demais, nada tenho a acrescentar à nota que coloquei no Facebook: “Estou impressionado com o número de pessoas que atacam o Lobão por ter lido Olavo de Carvalho – um pecado que elas jamais cometeram e cuja mera possibilidade lhes inspira um horror sacrossanto. No mundo inteiro, quem critica um autor gaba-se de conhecer seus escritos melhor que ninguém. No Brasil, a autoridade de julgá-lo e condená-lo nasce da perfeita e intransigente recusa de ler o que ele escreve. Tento explicar esse fenômeno aos americanos, mas eles acham que estou com gozação.”
A aliança de uma deprimente inferioridade mental com o instinto exacerbado de autodefesa grupal produziu esse resultado: a absoluta impossibilidade de um debate, de um confronto polêmico, mesmo feroz, entre essas pessoas e um intelecto cujo conteúdo lhes escapa e do qual só podem ter notícia, quando muito, pelos insultos com que o grupo o designa de longe, entre zunzuns cavernosos, risos forçados e juramentos de morte que jamais serão cumpridos.
A condição de todo debate, com efeito, é alguma intimidade com a mente do adversário, alguma compreensão das percepções que o levaram à sua visão do mundo. Isso pressupõe a disposição e a coragem de deixar-se permear pela sua influência, confiando na própria força de superá-la depois.
Mas quem sobrou vivo entre os “intelectuais públicos” deste país para absorver e, se possível, superar ou contestar o que ensinei em O Jardim das Aflições, em Aristóteles em Nova Perspectiva, em O Futuro do Pensamento Brasileiro, em A Filosofia e seu Inverso e em nada menos de quarenta mil páginas de aulas e conferências transcritas, sem contar uns quinhentos artigos publicados na mídia desde 1998 e os trezentos e tantos  programas de rádio em que traduzi (ou talvez deformei) um pouco do meu pensamento na linguagem do mais acessível esculacho popular?
Pode até parecer inacreditável, mas a hipótese de estudar a obra inteira de um autor, mesmo na esperança de demoli-la impiedosamente, já está fora do alcance e da capacidade não só de cada um desses indivíduos, mas até deles todos em conjunto.
No Brasil a vida intelectual superior, mesmo na sua expressão mais tosca, que é o debate ideológico, acabou. Se nos testes internacionais os nossos estudantes tiram sempre os últimos lugares, não é sem razão: o exemplo vem de cima.
Portanto, o conteúdo da minha obra, ou de qualquer outra que pareça detestável, não interessa mais. Basta a rotulagem superficial, passada de pata em pata entre bichinhos assustados para mantê-los a uma profilática distância de uma influência ameaçadora.

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