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Debilidades

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de junho de 2013

          

Em artigo recente, expliquei que um dos mais velhos truques do movimento revolucionário é limpar-se na sua própria sujeira, cuja existência negava até a véspera.

Desde a queda da URSS, a maneira mais usual de aplicar esse truque consiste em jurar que tudo aquilo que durante setenta anos todos os comunistas do mundo chamaram de comunismo não foi comunismo de maneira alguma: foi capitalismo.

Mediante essa simples troca de palavras a ideia comunista sai limpa e inocente de todo o sangue que se derramou para realizá-la, e gentilmente solicita da plateia um novo crédito de confiança, isto é, mais sangue, jurando que desta vez vai ser um pouquinho só, um tiquinho de nada. Por exemplo, varrer Israel do mapa ou exterminar a raça branca.

O apresentador dessa modesta sugestão não explica nunca como bilhões de pessoas inspiradas na teoria histórica mais científica de todos os tempos – insuperável, no dizer de Jean-Paul Sartre –, puderam se enganar tão profundamente quanto àquilo que elas mesmas estavam fazendo, nem como foi que ele próprio, subindo acima de Lenin, de Stálin, de Mao Dzedong e de tantos luminares do marxismo, foi o primeirão a enxergar  a luz.

Nem muito menos explica como é possível, de uma teoria que ensina a unidade substancial de ideia e prática, se pode obter uma separação tão radical dessas duas coisas que uma delas saia inteiramente limpa e a outra inteiramente suja.

Mas esse pessoal é assim mesmo: quando chega na página seguinte, já esqueceu a anterior.

Dois exemplos recentes vêm-nos da Sra. Lúcia Guimarães, que é talvez o caso mais típico de ignorância elegante no jornalismo brasileiro, e da srta. Yoani Sanchez, uma abnegada que procura salvar a imagem do comunismo cubano isolando-a de um breve erro de percurso de apenas meio século.

O argumento das duas é substancialmente o mesmo: não se pode culpar o comunismo por nada do que aconteceu na URSS, na China, no Camboja ou em Cuba, porque o comunismo é a posse e domínio dos meios de produção pelos proletários, e não pelo Estado como se viu nesses lugares.

Dona Lúcia chega a passar pito no dramaturgo David Mamet porque este diz que a doce promessa de Karl Marx, “De cada um conforme suas possibilidades a cada um conforme suas necessidades” não passa de uma expressão cifrada para justificar a espoliação de todos pelo Estado.

Em todos os regimes comunistas foi isso o que se deu realmente, mas ainda assim Dona Lúcia assegura que Mamet “levaria nota baixa em marxismo, porque o espantalho invocado por Mamet estava pensando numa utopia do proletariado, não do Estado”.

No mesmo sentido pronuncia-se Yoani Sanchez para jurar que em Cuba nunca houve comunismo, apenas capitalismo de Estado.

Não é preciso observar que assim, com um estalar de dedos, a teoria que se apresentava como idêntica à sua encarnação histórica se torna uma ideia pura platônica, um ente metafísico separado, imune a toda contaminação deste baixo mundo.

Eu não seria cruel de esperar dessas duas criaturas a compreensão dessa sutileza, mas elas poderiam ao menos ter lido um dos mais célebres parágrafos de Karl Marx, no Manifesto Comunista:

“A última etapa da revolução proletária é a constituição do proletariado como classe dominante… O proletariado servir-se-á da sua dominação política para arrancar progressivamente todo o capital da burguesia, para centralizar todos os meios de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado…”

Aí não existe, no mais mínimo que seja, o antagonismo que aquelas duas inteligências iluminadas acreditaram enxergar entre o Estado e o proletariado: o Estado é o proletariado organizado, o proletariado organizado é o Estado. E o proletariado organizado não é outra coisa senão o Partido.

A profecia da “autodissolução do Estado” na apoteose dos tempos é somente uma figura de linguagem, um jogo de palavras, uma pegadinha infernal. Marx explica que, como tudo pertencerá ao Estado, este já não existirá como entidade distinta, mas a própria sociedade será o Estado.

 É uma curiosa inversão da regra biológica de que quando o coelho come alface não é o coelho que vira alface, mas a alface que vira coelho. Se o Estado engole a sociedade, não é o Estado que desaparece: é a sociedade. Que a sociedade dominada, esmagada e anulada não sinta mais o peso da dominação não quer dizer que esta não exista, mas que o dominado está exausto e estupidificado demais para tomar consciência dela. É o totalitarismo perfeito em que, nas palavras de Antonio Gramsci, o poder do Partido-Estado já não é percebido como tal, mas se torna “uma autoridade onipresente e invisível como a de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.

Um exame atento dos textos de Karl Marx teria bastado, em plena metade do século 19, para perceber neles o Gulag, o Laogai e centenas de milhões de mortos, todo o terror e misérias dos regimes comunistas como consequências incontornáveis da própria lógica interna da teoria, caso tentasse sair do papel para encarnar-se na História.

Marx, Engels e Lenin em pessoa reconheceram isso inúmeras vezes, enaltecendo o genocídio e a tirania como “parteiros da História”. Que, decorridos cento e sessenta e tantos anos, ainda haja tantas pessoas que insistam em explicar como fruto de desagradáveis coincidências aquilo que a própria teoria exige como condição sine qua non da sua realização é, decerto, uma das provas mais contundentes de uma debilidade intelectual que não deixa de refletir, talvez, alguma debilidade de caráter.

Conforme o esperado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de maio de 2013

          

Se, com os escândalos de Benghazi, do grampo na Associated Press e da instrumentalização partidária do Imposto de Renda, pela primeira vez um pouco do verdadeiro rosto de Barack Hussein Obama está aparecendo na grande mídia, onde por anos a fio só se via a sua imagem embelezada até o limite do culto idolátrico, isso ilustra, uma vez mais, a lição dos estratagemas chineses: para que esperar o fato consumado, em vez de tentar descobrir o mal em germe, para eliminá-lo antes que produza todo um caudal de consequências nefastas?
Em 2008 o homem apresentou-se candidato à presidência sem ter uma só realização em seu currículo, sem mostrar um único documento de identidade válido e trazendo uma história de vida mais que nebulosa, repleta de ligações íntimas com agentes soviéticos, radicais islâmicos, terroristas e gangsters.
Não havia rigorosamente nenhum motivo para que alguém em seu juízo perfeito confiasse nessa criatura. Muito menos para supor que um aluno fiel e devoto de Saul Alinsky e Frank Marshall Davis fosse fazer na presidência algo de muito diferente daquilo que eles lhe haviam ensinado: corromper o Estado democrático para destrui-lo por dentro, substituindo-o pouco a pouco pelo governo tirânico de uma elite descarada, voraz e infinitamente presunçosa.
Naquele mesmo ano a colunista americana Debbie Schussel divulgou o alistamento militar grosseiramente falsificado, prova cabal de que o candidato era um criminoso chinfrim, sem qualificações para obter uma licença de porte de arma ou mesmo um emprego de balconista do Walmart. O tipo ideal, enfim, para tornar-se a gazua com que as forças inimigas planejavam arrombar as portas do sistema.
Também logo se tornou público que ele gastava rios de dinheiro para manter ocultos os seus documentos, exatamente aqueles que, ao mesmo tempo, o Congresso, Obama incluso, exigia do seu concorrente. Em 2008 já era possível perceber claramente que, quando esse indivíduo proclamava “Só quem não quer exibir a verdade é quem tem algo a esconder”, ele falava dele mesmo.
É inteiramente irracional aceitar e confirmar um sujeito desses na presidência da república, aplaudi-lo, paparicá-lo e protegê-lo por cinco anos, brandindo todas as armas da intimidação e da chacota contra os que ousem pretender investigá-lo, e depois, de repente, mostrar uma indignada surpresa ante a revelação de que durante esse tempo ele agiu precisamente de acordo com o que sua personalidade e suas origens ideológicas deixavam antever.
Afolha de serviços ostensivamente prestados por Obama à Rússia, à China, à Arábia Saudita e aos terroristas islâmicos só se compara à lista de seus erros alegadamente acidentais cometidos sempre em favor desses mesmos beneficiários. Juntas, formam uma enciclopédia da mendacidade, da traição e da indiferença psicopática aos valores morais e patrióticos proclamados de boca cheia, na voz empostada de um ator bem ensaiado.
Tudo isso é, de fato, muito impressionante. Mas, para quem quer que em 2008 conhecesse a biografia do tipo, nada disso foi surpresa. Só o foi para os que se deixaram hipnotizar, seja pelo maior blefe propagandístico de todos os tempos, seja pela ilusão da imunidade do sistema a qualquer tentativa de subvertê-lo por dentro – ilusão sem a qual o blefe jamais pegaria.
Tanto pela amplitude hiperbólica das suas promessas quanto pela ambiguidade da retórica entre sedutora e ameaçadora com que as anunciava, Obama, de fato, não deixava ao eleitor nenhuma terceira alternativa entre o fascínio embriagador e a suspeita de um projeto criminoso que soava, ao mesmo tempo, artificioso demais e torpe demais para que alguém ousasse tentar realizá-lo.
Pois bem: está realizado. O “sistema” americano não existe mais. O que hoje ocupa seu lugar é um esquema de poder centralizado que, usando os órgãos de governo como instrumentos de ataque e a mídia cúmplice como escudo defensivo, imuniza o presidente contra qualquer tentativa de obrigá-lo a cumprir as leis e a Constituição.
Nos cinco anos que se passaram desde sua primeira eleição, Obama declarou guerras sem consulta ao Congresso, duplicou a dívida americana, distribuiu dinheiro a rodo entre as empresas falidas de seus amigos, espalhou agentes islâmicos nos altos postos do governo federal, deu armas e dinheiro aos mais violentos inimigos do país, protegeu e adulou o Islã por todos os meios ao mesmo tempo que tentava expurgar os cristãos das Forças Armadas, derrubou dois governos no Oriente Médio para entregá-los ao poder da Al-Qaeda e da  Fraternidade Muçulmana e transformou o Homeland Security numa polícia armada tão assustadora que hoje os americanos, segundo as estatísticas, têm mais medo do governo que dos terroristas.
Em todos esses episódios, a simples insinuação de que ele procedia antes como um agente inimigo do que como um americano era repelida com tal violência pelos bem-pensantes, que acabava por morrer como um sussurro inaudível, abafado no fundo da internet.
Quando o ator Chris Rock exclamou do alto do palco: “Palmas para nosso Senhor e Salvador Barack Obama!”, ele expressou bem a atmosfera de adoração histérica com que uma nação, de joelhos, implorava ao governante que a ludibriasse, maltratasse e oprimisse, e jurava jamais desconfiar dele, fizesse o que fizesse.
O que pode haver de tão inesperado no fato de que, com tão excelsas garantias de impunidade, Obama  se sentisse livre para usar o Imposto de Renda como um porrete, grampear os telefones de meio mundo e jogar com as vidas de soldados e funcionários americanos como se estes  fossem peças descartáveis de um jogo banal?

Lutando contra um fantasma

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 20 de maio de 2013

          

Sempre que um intelectual esquerdista do Terceiro Mundo abre a boca para atacar a “direita”, o mínimo que se pode esperar da sua performance é uma confusão dos diabos. Desde logo, o objeto das suas imprecações não existe substancialmente: é uma sombra projetada pela aglomeração casual de entidades diversas que, por motivos heterogêneos e não raro incompatíveis entre si, atravessaram o caminho do processo revolucionário.
Para não admitir que dispara a esmo contra alvos dispersos, que simplesmente odeia toda sorte de discordâncias venham de onde vierem, ele tem de inventar por trás desse caleidoscópio de diversidades a unidade fictícia de uma impossível “internacional direitista”, fundindo num só corpo de intenções, concepções ideológicas e planos estratégicos o nazismo e o sionismo, o Papa e a Maçonaria, os libertarians e os saudosistas do Ancien Régime, o racismo evolucionista e o fundamentalismo evangélico, e até – no caso brasileiro – as facções da própria esquerda que, por um restinho de escrúpulos democráticos, se oponham a tal ou qual medida governamental do dia.
Mesmo uma inteligência mediana basta para perceber que essas várias correntes são tão estranhas umas às outras que a simples hipótese de se sentarem em torno de uma mesa para discutir suas divergências é utópica no mais alto grau; mas o esquerdista tem de descer abaixo do mediano para poder continuar acreditando que luta contra um inimigo determinado e não, como de fato ocorre, contra todo o restante da espécie humana.
É certo que a esquerda também tem suas contradições e antagonismos internos, mas, de um lado, isso nunca impediu que suas facções diversas mantivessem um intenso diálogo e se unissem, a todo instante, para iniciativas de envergadura mundial que surpreendem pelo sinergismo dos objetivos e pela simultaneidade dos meios.
De outro lado, é fato notório que, entre os “direitistas”, só uns poucos consentem em perceber os sinais dessa unidade estratégica e organizacional que prevalece sobre todas as dissensões ideológicas e táticas; a maioria prefere enfatizar as diferenças e incompatibilidades, na esperança louca de dividir as forças do adversário, sem notar que qualquer concessão feita a uma das facções da esquerda resulta sempre, mais cedo ou mais tarde, em vantagem para todas elas.
 Se o esquerdista insiste em enxergar o que não existe, o direitista em geral recusa-se a enxergar o que existe; fato que, por si mesmo, já reflete a homogeneidade de um lado e a heterogeneidade do outro. Pois, afinal, todas as correntes de esquerda remontam à fonte comum de uma teoria unificada da História, enquanto as raízes da “direita” são diversas e incompatíveis na origem, como o Papado e a Reforma, o evolucionismo e o evangelismo, o individualismo liberal de Adam Smith e o organicismo social de Adam Müller, o nacionalismo extremado dos fascistas e o globalismo da elite bancária.
O fato, porém, de que o monstro direitista seja uma entidade inexistente, de que portanto o discurso ideológico esquerdista seja perfeitamente fictício, não implica nenhuma desvantagem para a política de esquerda. Ao contrário: como todo discurso ideológico, esse não visa a descrever uma realidade, mas a fundar e reforçar a identidade do grupo militante, o que, é claro, se obtém muito mais facilmente brandindo diante dele a imagem odiosa de um fantasma do que forçando-o a um confronto desnorteante com a complexidade dos fatos.
A unidade fictícia do fantasma projeta-se retroativamente sobre a mentalidade do grupo, exercendo sobre ela um influxo não só unificante, mas encorajador: quem não parte para o combate com mais bravura quando carrega num recanto obscuro da alma a suspeita secreta de que o adversário é de brinquedo?
O impulso incoercível de projetar o ódio do grupo contra unidades fictícias cresce às vezes até as dimensões do mais grotesco hiperbolismo, desembocando na total desconexão psicótica com a realidade ambiente, mas sem que por isso seu efeito sobre a plateia se atenue no mais mínimo que seja.
A diatribe recente da professora Marilena Chauí contra a classe média exemplifica-o com a maior nitidez. A imagem da pequena burguesia como classe intrinsecamente reacionária, produtora, na melhor das hipóteses, de intelectuais revolucionários vacilantes e indignos de confiança, é um dos chavões mais antigos da retórica marxista. Aparece, volta e meia, nos escritos de Lênin, Stálin, Mao e tutti quanti.
A Profa. Marilena não fez senão repeti-lo pela milionésima vez, com a diferença de que o fez, sem notar nenhuma incongruência, para uma plateia constituída integralmente de membros da classe condenada e em nome de um partido cujos militantes e eleitores são recrutados eminentemente nessa mesma classe. Isso não impediu que a professora fosse aplaudida por ouvintes que, igualando o nível de alienação da conferencista, nem de longe se sentiram envolvidos na generalização depreciativa em que ela os enquadrava.
Não, não venham me falar de paralaxe cognitiva. Inventei esse termo para descrever o deslocamento entre o eixo da construção teórica e o da experiência direta tal como esse fenômeno aparece em sistemas complexos de filosofia, onde erros dessa natureza podem passar despercebidos até a grandes inteligências.
A alienação grosseira e burra está em outro nível: tem a ver com a histeria militante e não com a vida intelectual, seja saudável, seja doente. Com a ressalva de que, na ordem da militância revolucionária, a histeria não é uma doença, um desvio, mas a essência mesma do fenômeno, como já ensinavam Erik von Kuehnelt-Leddihn e o psiquiatra polonês Andrej Lobaczewski.

 

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