Yearly archive for 2001

Entrevistando meu vizinho

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 17 de junho de 2001

NB – Aviso à parte não gaúcha do universo: o sr. Luiz Inácio Lula da Silva é, tanto quanto eu, articulista da Zero Hora de Porto Alegre. Por uma ironia involuntária da diagramação, seu artigo é sempre publicado nas costas do meu. – O. de C.

         Meu vizinho aí da página de trás, que nela desfruta as delícias da liberdade de imprensa como eu as desfruto aqui, é, como ninguém ignora, candidato crônico à presidência da República e corre o sério risco de ser eleito – um mal que, se aconteceu até a um professor da USP, pode acontecer a qualquer um de nós.

         Em vista dessa eventualidade, pensei se não seria o caso de tirar um sórdido proveito da proximidade quase indecorosa que nos une na mesma folha de papel e lançar-lhe de chofre, através desta tênue barreira de celulose, umas quantas perguntas que, se ele não me responder agora, muito menos responderá depois de eleito.

         A primeira é formulada no meu interesse próprio. Prezado sr. Ignácio: uma vez presidente, o senhor vai deixar que eu continue escrevendo que o senhor é um comunista, bajulador de regimes genocidas, friamente insensível à sorte de cem milhões de vítimas imoladas no altar de uma ideologia bem parecida com a sua, ou vou ter de mudar de assunto?

         A segunda, faço-a no interesse geral. O senhor, que é socialista, já disse que nada tem contra o capital estrangeiro. Lênin, que não o era menos, também não tinha. Muito menos têm os atuais governantes da China, que provaram por a + b a compatibilidade de uma sangrenta ditadura comunista com os interesses dos grandes investidores ocidentais e vice-versa. Quando o senhor diz que o regime da China é um exemplo para o Brasil, é disso que o senhor está falando? Se não é, então a que raio de China está se referindo? Existe outra?

         Terceira. Quando uns militantes da CUT quiseram atravessar a fronteira para fazer manifestações políticas ilegais em solo argentino e foram barrados na fronteira, choveram protestos da esquerda nacional. Agora, quando foram barrados os dez jornalistas que o acompanhavam à China para o simples desempenho de suas legalíssimas funções profissionais, tudo o que o senhor fez foi lamentar a falta de cobertura da sua viagem, sem emitir um pio, um gemido, uma “ai” sequer contra o ostensivo cerceamento da liberdade de imprensa. O senhor já pensou no que aconteceria se os repórteres fossem impedidos de entrar, não na China comunista, mas no Chile de Pinochet? Já imaginou os editoriais coléricos, as lágrimas de indignação, as vigílias cívicas na ABI? Já imaginou, sobretudo, o que o senhor próprio diria, mesmo levando em conta que a proporção entre os crimes de Pinochet e os do regime chinês é de um para vinte mil? O senhor não acha mesmo que sua duplicidade de pesos e medidas já está dando na vista?

         Quarta. Vamos falar um pouco do seu virtual antecessor. O senhor sabe que o papel dos governantes na história não é assinalado por seus erros ou acertos passageiros, mas pelas mudanças duradouras que imprimem no rumo das coisas. O senhor sabe que o controle da inflação, que o governo alardeia como sua grande obra, é coisa efêmera como bolha de sabão. Sabe que as privatizações mal feitas ou uma política econômica errada de alto a baixo também são males transitórios, podendo ser corrigidos pelo próximo governo. De tudo o que FHC fez, só uma coisa é irreversível: a distribuição de terras e dinheiro ao MST, que esse movimento não vai devolver nunca mais. O senhor sabe perfeitamente que, se o MST não plantar aí um único pé de feijão, mas decidir usar as terras para fins estratégicos totalmente alheios à agricultura, o governo não terá a mínima condição de tomar tudo de volta, pois ele próprio transformou essa entidade, que não tem nem registro legal, num poder territorial, político e econômico incontrolável. O senhor sabe que, pela sua própria estrutura – nem sindical, nem partidária, nem paramilitar, nem empresarial, nem burocrática, mas sim um pouco de tudo isso ao mesmo tempo –, esse movimento é rigorosamente indiscernível dos sovietes da Rússia pré-revolucionária. Dar poder a essa coisa, com as terras dos outros e o dinheiro do governo, foi no fim das contas a realização máxima e essencial do presidente FHC. Dito isto, vem a pergunta: o senhor acha que poderá fazer mais do que ele fez em prol da revolução socialista? Olhe lá o que vai responder! Veja bem que nem Lênin teve na sua folha de realizações um feito de tal envergadura, pois afinal já encontrou os sovietes prontos. O senhor tem certeza de que uma gestão socialista “de transição pacífica” depois de FHC não será um redundante video-tape?

         São essas as perguntas. Peço que o senhor não as interprete como provocações de um adversário. Não sou seu adversário. Até votei no senhor – é verdade que após tomar três engoves – para não ter de votar no Collor. Talvez até vote de novo, nas próximas eleições, dado que seu concorrente principal, José Serra, é um antitabagista fanático que ameaça proibir o fumo até ao ar livre, e eu conto com a sólida aliança de interesses entre o petismo nacional e a indústria cubana de tabacos para me garantir o direito de fumar na cadeia.

         Dito isso, encerro esta nossa amável conversa e dirijo-me aos demais leitores, para tranqüilizá-los. Não, amigos, não temam pela minha segurança. No Brasil socialista, a cadeia será provavelmente o lugar mais seguro, pois todos os membros do PCC terão sido retirados de lá para ocupar cargos na “nomenklatura”, e a população carcerária do país será constituída de apenas duas pessoas: eu e o embaixador Meira Penna. E o embaixador, coitado, nem sequer fuma.

The transfiguring of the disaster

OLAVO DE CARVALHO

O Globo, June 16, 2001

Translated by Assunção Medeiros

Every time the leftist want to impose a new item of their program, they say it is the only way to cure certain maladies. Invariably, when the proposition comes out victorious, the maladies it proposed to eliminate become worse. The normal thing to do would be, in such circumstances, to lay the responsibility of the disaster on the left. But this never happens, for at once the original legitimizing argument disappears of the repertoire, and is substituted by a new system of allegations, which celebrates failure as success or as a historical necessity which could not be avoided.

No one will understand a thing of the history of the 20th century – nor of this beginning of the 21st – if they do not know this retroactive justification mechanism through which they make the people work for non-declared goals, which would scandalize them if they knew them and that can only be reached through the indirect way of the carrot hanging in front of the ass’ nose.

Some examples will make this clearer.

1) When the Communist Party released its program for the destruction of the “bourgeois” family institutions, comsubstantiating what would latter be the “sexual liberation”, its main allegation, elaborated by dr. Wilhelm Reich, was that homosexuality, sado-masochism, fetishism etc. were fruit of the repressive patriarchal education. Eliminated the cause, this deviant conducts would tend to disappear of the social scene. Well, the last residues of patriarchal values were suppressed from western education between the seventies and the eighties, and what did we see right afterwards? The dissemination, on an apocalyptical scale, of the same conducts they promised to eliminate.  Obtained the result, these conducts started to be celebrated as healthy, honorable and meritorious, and all criticism to them is now frowned upon – sometimes even under penalty of law – as an intolerable abuse and attack against human rights.

2) When the international left started to fight for the legalization of abortion, one of their main arguments was that the great number of abortions was caused by the prohibition, which facilitated the action of charlatans, crooks and all kinds of non-trained individuals. The legalization, it was promised, would force the abortion to be performed in medically acceptable conditions, therefore lowering the number of cases. What was the result? In the first year, the number of abortions in the USA went from 100 thousand to 1 million, and it never stopped going up to this day. At least 30 million babies were already sacrificed, at the same time that the apologists of legalization, instead of admitting the fallacy of their initial argument, celebrate the fact, working to put aside and incriminate any criticism to the new state of things.

3) When the North-American left invented the policy of quotas and indemnification known as “affirmative action”, they alleged it would diminish crime in the black community. After the new policy was made official, the number of crimes committed by black men against white men arose significantly, according to statistics from the FBI. What did the apostles of this “affirmative action” do then? Did they recognize that to reinforce the feeling of  racial identity was to stimulate prejudices and racial conflicts? Nah. They celebrated the raise in hostilities as a progress of democracy.

4) When – wishing to destroy the North-American tradition that considered education rather a duty of the community, of the churches and of the families than  of the State – the North-American left demanded the  bureaucratization of teaching, one of its prime arguments was that juvenile delinquency could only be controlled with an educational action from the State. With Jimmy Carter, in 1980, the USA had for the first time a Ministry of  Education and uniform teaching programs. Two decades later, the delinquency among children and adolescents is not only growing much more than before, but also adopted as headquarters the public schools, turned today into danger zones, to the point where, in the beginning of the year, the Mayor’s office in New York was privatizing its schools because of the impossibility of controlling the violence inside them. In answer to that, what did the left do? Did it admit failure? No. It fights for the statal  uniformity of teaching in a world level.

5) In Brazil, the only way of lowering violence in the rural areas, said the leftists, was to give land and money to MST (The Landless Movement). Very well, the land was given – it was the greatest distribution of land in all human history, with lots of money behind it. Violence has not lessened: it increased a lot. Does the left confess its mistake? No. It organizes violence and celebrates it as the conquering of a new historical stage in the fight for  socialism.

The examples could be multiplied e “ad infinitum” – and notice I deliberately avoided mentioning extreme cases, which happened inside the socialist countries themselves, such as the collectivization of agriculture in URSS, the Great Step Ahead and the Cultural Revolution in China, the Cuban Revolution, etc. keeping to facts that happened in the capitalist world.

The saving promise transfigures into disaster and followed by the change in legitimizing discourse was, in sum, the constant and essential “modus agendi” of the international left along a century, and we do not see any sign that any leftist mentor has any conscience problems with that. Au contraire, all of them continue to promise the solution of the maladies , at the same time they have ready, in their drawers, the future legitimization of the enlarged maladies. They promise to lower drug consumption through liberalization, to control corruption through  “participative budgeting”, to repress delinquency through the unarming of the civilians or through the Leninist “alternative law”, which incriminates rather the social standing of the defendant than his criminal act. They know perfectly well where this all takes us – but they also know that no one would support them if they announced out loud what they really desire.

Crescendo em silêncio

Olavo de Carvalho


Época, 16 de junho de 2001

Quanto mais forte o comunismo se torna no Brasil, menos se pode falar dele

Nunca no mundo se publicaram tantos e tão bons livros sobre o comunismo quanto nestes anos que se seguiram ao desmantelamento da URSS. O motivo é óbvio: a abertura, ainda que parcial, dos Arquivos do Comitê Central do PCUS, um tesouro inesgotável para os estudiosos. Não é de espantar que, rompida a barreira do segredo estatal, tantos investigadores se precipitem sobre os registros de um passado macabro para decifrar o que foi certamente um dos maiores mistérios da História humana: a genuflexão voluntária de milhões de homens cultos ante o altar de uma doutrina grotesca, assassina e intrinsecamente absurda.

Todos os paradoxos, todas as contradições da alma humana se espremem e se fundem na composição desse mistério de iniqüidade: compreendê-lo para não reencená-lo é o dever número 1 de quem tenha assimilado a lição de Sócrates segundo a qual “uma vida não examinada não é digna de ser vivida”.

Mas o que espanta não é a onda mundial de curiosidade que fez de Moscou a meca dos historiadores. É o absoluto desinteresse que, no Brasil, se opõe à divulgação de suas descobertas.

Mais que depressa, no começo dos anos 90, no Brasil o comunismo foi decretado coisa do passado, e quem se interessasse em relembrar-lhe os crimes e atrocidades se tornava suspeito de fanatismo macarthista, se não de obsessão monomaníaca merecedora de cuidados psiquiátricos. Esquecer, silenciar – ou na melhor das hipóteses despedir-se do assunto com meia dúzia de lugares-comuns aceitos como explicação definitiva – tornou-se uma lei natural a que somente os anormais poderiam furtar-se.

Mas anormal, digo eu, é um cérebro capaz de julgar mera coincidência que essa década de esquecimento do comunismo fosse também a de maior expansão da influência comunista sobre os destinos do país.

Não me refiro só ao crescimento eleitoral da esquerda. Refiro-me à conquista do monopólio da pregação política nas escolas (onde a hipótese de um discurso anticomunista é hoje inconcebível) e à consolidação de certos direitos morais adquiridos que são ostensivamente negados ao restante da população.

Um movimento comunista abertamente violento é hoje aceito como parceiro do Estado sem precisar sequer de registro legal. Políticos comunistas podem associar-se a quadrilhas de traficantes sem ser jamais investigados. Grupos comunistas podem bloquear à vontade as vias de comunicação, sem que ninguém veja nisso um óbvio exercício de treinamento insurrecional.

Com o apoio ostensivo do governo, os comunistas colocaram-se acima da lei e ainda detêm em suas mãos o monopólio quase completo dos meios de investigar, denunciar, julgar e condenar. Antes mesmo de ocupar nominalmente o poder, eles já se tornaram uma classe especial, uma nomenklatura onipotente, arrogante e intolerante. Em conseqüência, o simples ato de escrever uns artigos contra eles tornou-se um insulto, uma ameaça, um abuso insuportável.

Eis aí a razão do desinteresse a que me referi. Há uma direta conexão de causa e efeito entre a proibição tácita de olhar o passado e a rapidez fulminante com que ele se repete diante de milhões de olhares sonsos que, não o conhecendo, não o podem reconhecer. O comunismo “saiu da moda” como as roupas que saem das passarelas para entrar no uso geral e cotidiano. Simplesmente foi preciso mantê-lo fora do horizonte de consciência nacional para que, sem ser incomodado por olhares inquisitivos, ele pudesse crescer à sombra da indiferença geral de suas vítimas.

Por isso mesmo interpreto em sentido inverso os conselhos inibidores que me recomendam falar menos do comunismo para não parecer maluco ou fanático. Diante da grande tragédia que se prepara, só um observador morbidamente intimidado se absteria de tocar no assunto para não dar a impressão de estar vendo coisas. E, sinceramente, não vale a pena se deixar enlouquecer por mera obsessão de parecer normal.

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