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Otto Maria Carpeaux, o digno farejador do Universo

20 de junho de 2001

Na vastíssima gama de temas analisados pelo intelectual austríaco em Ensaios Reunidos, recém-lançado, percebe-se a gestação do método que construiria a monumental História da Literatura Ocidental e a permanente preocupação com a única investigação realmente importante: a do Universo.

Por Antonio Fernando Borges

Tente o leitor resumir a magnitude e a claridade dos desertos num simples punhado de areia. O esforço lhe escorrerá literalmente entre os dedos, mas ao menos dará uma idéia aproximada do que seja falar do crítico e historiador de arte Otto Maria Carpeaux (1900-1978) nos limites de uma página de jornal. Por mais que o texto se restrinja a seus recém-lançados Ensaios Reunidos (928 págs., R$ 75,00), não são menores os riscos de omissão e de erro. Pois não se trata, apenas, de mais um lançamento editorial de peso: a reedição das obras de Carpeaux – um esforço conjunto do filósofo Olavo de Carvalho e das editoras Topbooks e UniverCidade – é um verdadeiro acontecimento cultural. Representa, sem nenhum exagero, um sopro fresco da mais pura e legítima inteligência, imprescindível neste marasmo de homens e idéias a que se reduziu a vida intelectual brasileira.

Por pertencerem à ordem do imprevisível, os acontecimentos sempre surpreendem. O relançamento das obras de Carpeaux, por exemplo, obriga-nos à incômoda constatação de que, 21 anos após sua morte, a memória de um dos grandes expoentes de nossa cultura continua a receber, de nós, a mais estranha das modalidades de homenagem: o silêncio. Sobre o silêncio, San Juan de la Cruz disse um dia, numa definição comovente, que ele é um dos nomes de Deus. Mas no ruidoso panorama brasileiro, onde a cultura cada vez mais se confunde com o show business, a ausência de uma fortuna crítica, de uma bibliografia ou mesmo de seguidores de Carpeaux chega a sugerir que exista, em torno de seu nome, uma espécie de conspiração diabólica. Sobretudo se levarmos em conta que, uma década antes de morrer, sua figura serviu de escudo e lança no combate ao regime militar, sendo apontada como exemplo de “espírito de luta”, “coragem indômita” e outros clichês. Hoje, em lugar da memória do homem, restam fragmentos suspeitos de um mito.

Certamente, a biografia atribulada de Carpeaux convida à mitificação e à lenda. Nascido Otto Karpfen, de pai judeu e mãe católica, Carpeaux cresceu e se educou na cosmopolita e ilustradíssima Viena do início do século. Além dos cursos de Direito e Filosofia, concluídos por sugestão familiar, o jovem Otto estudou ciências matemáticas (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada (em Nápoles) e política (em Berlim). Depois de militar no jornalismo político, converter-se à religião católica e de se tornar o homem de confiança de dois primeiros-ministros (Dolfuss e Schusschnigg), viu-se obrigado a trocar um futuro aparentemente promissor em sua terra pela incerteza do exílio. Em 1938, com a ascensão do nazismo, fugiu com a mulher Helene para a cidade belga de Antuérpia, onde ainda atuou como jornalista. No ano seguinte, sentindo-se ainda pouco seguro frente à escalada hitlerista, viajou para uma terra distante, chamada Brasil.

Se a Áustria talvez tenha perdido um bom quadro político, o Brasil com toda a certeza ganhou um de seus maiores analistas culturais. Em menos de um ano, esse ilustre imigrante – que já conhecia alemão, flamengo, inglês, francês, italiano, espanhol, latim, catalão, galego, provençal e servo-croata – aprendeu a dominar o português, adotando-o definitivamente como seu habitat intelectual, a ponto de se naturalizar brasileiro em 1944. Apto a disputar, por sua inteligência e erudição, prestigiadas cátedras acadêmicas e ambicionados cargos públicos, foi porém no jornalismo que Carpeaux encontrou seu ganha-pão regular, e onde angariou admiradores e amigos, de Aurélio Buarque de Holanda a Graciliano Ramos, de Franklin de Oliveira a Alvaro Lins, de Antonio Callado a Alceu de Amoroso Lima, de Aloysio Gentil a Carlos Drummond de Andrade. Foi também na imprensa que se envolveu em algumas polêmicas, e publicou boa parte de seus artigos e ensaios.

Mas se engana quem imaginar (e essa é outra face do mito) que o resultado dessa vida errante seja uma obra fragmentária e dispersa na fugacidade do jornalismo diário. Pelo contrário: já neste primeiro volume de ensaios, o leitor tem a chance de desfrutar da incomparável sensação de unidade e organicidade que perpassa o essencial dos escritos de Carpeaux, onde se destacam muitas pérolas de inteligência e estilo. Ensaios Reunidos põe novamente em circulação os principais livros de textos curtos publicados pelo mestre austríaco – A Cinza do Purgatório (1942), Origens e Fins (1943), Respostas e Perguntas (1953), Retratos e Leituras (1953), Presenças (1958) e Livros na Mesa (1960) – e neles já se podem encontrar os temas e recursos fundamentais de Carpeaux, mais tarde aplicados na elaboração de sua monumental História da Literatura Ocidental, escrita em 1944-45, mas só publicada no final da década de 50.

Seria um absurdo pretender destacar todos os pontos altos destes Ensaios, num universo de mais de 160 textos, entre artigos breves e ensaios alentados. Mas mais absurdo ainda seria não mencionar alguns deles – como “Jacob Buckhardt, Profeta da Nossa Época”, análise de um dos autores favoritos de Carpeaux; ou o contundente “A Idéia da Universidade e as Idéias das Classes Médias”, que tantos pontos de contato tem com a tese da “rebelião das massas” de Ortega y Gasset; ou, ainda, “A Revolução Européia”, reflexão sobre a etimologia da palavra revolução. Literatura, política, Shakespeare, música, filosofia, Kafka, artes plásticas: quase todas as facetas do espírito humano estão aqui presentes, submetidas à lucidez analítica de Carpeaux. Mas ninguém o acuse de dispersão. A rigor, seu objetivo sempre foi abordar os diferentes aspectos do único tema digno de ser conhecido: o Universo. E, mais do que apenas um estilo, o olhar totalizante de Carpeaux teve sempre, acima de tudo, método.

Não sendo propriamente um teórico, mas sem se limitar à erudição estéril de uma “enciclopédia ambulante”, Carpeaux era na verdade um rigoroso crítico e historiador de arte, filiado a uma determinada tradição teórica em que se cruzam os nomes dos alemães Wilhelm Dilthey e Max Weber e do italiano Benedetto Croce. Trocando em miúdos, poderíamos dizer que seu principal instrumental era o método compreensivo de Dilthey, base de sua “ciência do espírito” (Geisteswissenschaft), corrente bem diferente das ciências humanas e sociais da escola francesa. Para Dilthey, o importante era compreender (mais do que explicar) os fenômenos humanos e sociais, buscando-se para isso não as causas, mas a intenção e o sentido subjacentes a eles.

Em sua aplicação do método compreensivo de Dilthey, Carpeaux procurou levar também em conta as restrições feitas por Weber: o estudo das sociedades e da História não pode se restringir a compreender, mas deve procurar investigar conjuntamente a causa e o sentido oculto. Tanto na História da Literatura quanto nos ensaios e artigos, encontramos então em Carpeaux uma preocupação com referências sociológicas – a nações, classes sociais ou grupos de opinião. Sua análise tende a considerar cada obra como expressão de determinada corrente de opinião e sentimento, mas sem deixar de incorporar um elemento essencial da filosofia croceana: a irredutibilidade de toda obra de arte. Para Carpeaux (via Croce), nenhuma arte se esgota ou se limita à corrente ou classe social que a produziu. Como se vê, mesmo numa descrição apressada, não há como negar complexidade e sofisticação ao pensamento de Carpeaux, responsável por uma injeção de brilho e lucidez em nossa crítica literária, que durante algum tempo transformou o jornalismo cultural brasileiro em coisa séria.

Um homem com tão curiosa biografia e, sobretudo, de tamanha envergadura intelectual constitui matéria-prima suficiente para a construção de um mito. De fato, há quem prefira em Carpeaux os aspectos folclóricos, amparados na simbologia fácil do “judeu errante” e do “cavaleiro solitário”. Mas como toda mitificação é também, em geral, a ante-sala do embuste, o autor do estudo introdutório, Olavo de Carvalho (responsável também pela organização do volume), prefere nos oferecer um generoso retrato de corpo inteiro do grande crítico e historiador, na plenitude de seus erros e acertos – quer dizer, em toda a sua grandeza. Entre as virtudes essenciais dos grandes homens de espírito, destacavam-se em Carpeaux, por exemplo, sua enorme capacidade de concentração intelectual, sua severa disciplina interior e um incorruptível desprezo pelas diversões mundanas. Dentre os pontos fracos, Olavo aponta sua carência afetiva incorrigível (embora compreensível em alguém tão perseguido e difamado como Carpeaux), além, é claro, do idealismo político, veneno que devorou o gênio nos seus últimos anos de vida, mergulhando-o em mediocridade e amargura.

Corria o final da década de 60. Decidido a abandonar a crítica literária (“o círculo dos amigos da literatura”), para se dedicar à luta política (“meu coração está agora em outra parte”, escreveu na época), Carpeaux mergulhou em cheio no turbilhão do imediatismo ideológico. Sem maiores explicações, trocou o diálogo com o espírito, ao qual dedicara toda uma vida, pelo combate político fugaz. Acabou pagando caro por isso, na medida em que trocou a inteligência prolífica pela esterilidade e o silêncio. As dezenas de artigos que escreveu, no calor da hora, para boletins semiclandestinos e publicações da chamada imprensa nanica, dão uma triste mostra da indigência intelectual e da decomposição emocional a que estava reduzido.

Àquela altura, Carpeaux era já um homem alquebrado e irremediavelmente carente, a ponto de sucumbir às pressões, convites e lisonjas de líderes estudantis e intelectuais gauchistas que, décadas antes, ele teria reduzido a pó, com sua pena ferina e afiada. Na raiz dessa decadência estava, por certo, sua profunda crise religiosa: de católico convicto, parecia agora transformado num ateu desfibrado, protegido pela capa misteriosa de um agnosticismo amedrontado e sem muita convicção. Foi esse último Carpeaux – e justamente o mais fraco – que a intelectualidade brasileira de esquerda adotou como ícone. E talvez seja ainda este o Carpeaux que exista como referência para as gerações mais novas. Que este mesmo ambiente político-intelectual não se mostre interessado em recuperar a figura completa de Carpeaux, preferindo deixar no ar fragmentos equívocos dessa faceta episódica de um intelectual de tamanho quilate: eis o que admira e consterna.

Tudo isso só faz aumentar a importância desse relançamento, um esforço louvável para impedir que o silêncio ocupe o lugar da verdade na memória dos homens. Parece, no entanto, que o silêncio ainda insiste em levar a melhor, haja vista a estranha receptividade que estes Ensaios Reunidos vêm recebendo em nossa imprensa. Talvez imobilizados pela grandiosidade do projeto, quem sabe incapazes de reconhecer nestes textos o “Carpeaux político”, e certamente intimidados pela alta temperatura erudita do material apresentado, o fato é que, até o momento, nossos críticos e jornalistas não têm arriscado muito além do anedótico e do legendário de praxe. Em geral, as resenhas sobre o livro se limitam a acumular adjetivos elogiosos ao autor e a enumerar alguns aspectos, em geral secundários, da personalidade de Carpeaux. É como se sentissem incomodados pela grandeza daquilo que é inegavelmente grande e tivessem pressa em reduzi-lo à sua própria e miserável dimensão. Só que Carpeaux merece muito mais do que elogios: seu trabalho (para não dizer sua memória) exige compreensão e respeito.

O pecado maior, no entanto, vem sendo sistematicamente cometido contra Olavo de Carvalho, responsável pela compilação e fixação dos textos, mas sobretudo pelo substancioso estudo que abre o volume. A maioria esmagadora das resenhas e artigos dedicados ao lançamento do livro age como se se tratasse de uma edição anônima, ou fruto de alguma imponderável “geração espontânea”. Uma omissão imperdoável, com elevado teor de injustiça: afinal, mais do que simples prefácio, o ensaio de Olavo constitui um capítulo fundamental para o entendimento de todo o livro – além de representar a primeira análise extensa e de conjunto da obra de Carpeaux promovida em língua portuguesa.

Como um crítico e intérprete digno deste nome, Olavo de Carvalho enriquece a obra que estuda. E, sem recorrer a uma adjetivação encomiástica vazia, preocupa-se em restituir ao ensaísta e historiador sua verdadeira importância. Carpeaux ressurge assim, não como simples divulgador de autores estrangeiros, mas como um consistente homem de idéias. Por conta disso, a História da Literatura Ocidental é muito mais do que uma contribuição de Dilthey & Cia. à cultura brasileira: representa, conclui Olavo, “uma portentosa contribuição brasileira à Geiteswisseschaft”. Ironicamente, parece que tentam erguer em torno de Olavo de Carvalho a mesma cortina de silêncio dedicada até então ao intelectual austríaco. Se com isso querem dar a entender, de maneira tortuosa e excêntrica (e sem jamais o admitirem, é claro), que finalmente Carpeaux encontrou alguém à sua altura, digno do mesmo extravagante tributo, essa atitude não deixa de ser uma repetição da velha “homenagem” – a hipocrisia – que o vício presta à virtude…

Impossível fazer caber o mar num copo de água salgada. Mesmo assim, não custa imaginar que esta resenha seja um esboço digno de Otto Maria Carpeaux, capaz de funcionar como um convite à leitura de sua obra. A esperança, afinal, além de ser uma das três grandes virtudes, é sempre um delicioso consolo.

Argemiro Ferreira, o estilo e o homem – II

Olavo de Carvalho

18 de junho de 2001

         Continuo aqui publicando, sem preocupação de ordem, as notas que me ocorre tomar de vez em quando a propósito da contestação que Argemiro Ferreira ofereceu ao meu artigo sobre “as duas listas negras”. Se essas notas acabarem se prolongando além da dose de atenção que esse miúdo palpiteiro parece merecer, isto será devido somente àquele paradoxo tão precisamente assinalado por Rivarol: “Il ne faut souvent qu’un trait pour peindre les grands hommes, il en faut une infinité pour peindre les petits.”

§ 1. O modus arguendi de um charlatão

            Passando do estilo ao conteúdo, noto que a técnica argumentativa de Argemiro é perfeitamente coerente com o seu uso da linguagem, ambos servindo ao mesmo propósito de ludibriar o leitor.

         Contestar uma argumentação é, simplesmente, transformar suas asserções em perguntas e mostar que as respostas negativas funcionam melhor que as afirmativas. Convertidas em perguntas, as afirmativas que fiz no meu artigo sobre a lista negra ficariam assim:

1.     É ou não verdade que, enquanto em Washington algumas centenas de pessoas eram interrogadas na Comissão McCarthy e liberadas, na Rússia eram fuzilados três milhões de dissidentes?

2.     É ou não verdade que, nessas condições, nivelar essa Comissão aos tribunais soviéticos ou falar igualmente de “atmosfera de terror” num caso e no outro é, na melhor da hipóteses, uma hipérbole de mau gosto?

3.     É ou não verdade que, nessas condições, qualquer abuso que McCarthy possa ter cometido contra os que colaboravam com o regime soviético foi moralmente menos grave do que essa colaboração mesma?

4.     É ou não verdade que os únicos comunistas condenados à morte nos EUA, Julius e Ethel Rosenberg, jamais passaram pela Comissão McCarthy?

5.     É ou não verdade que, na época, informações sobre os massacres soviéticos eram abundantes na imprensa norte-americana e que, desta forma, Ring Lardner Jr. não podia tê-los ignorado?

6.     É ou não verdade que o Partido Comunista Americano, como aliás qualquer outro partido comunista no mundo, colaborava ativamente com a espionagem soviética?

7.     É ou não verdade que, para esse fim, a KGB usava (além de seus agentes profissionais, é claro) tanto os militantes do Partido quanto meros “companheiros de viagem”? É ou não verdade que a ambigüidade mesma da condição de “companheiro de viagem” foi sempre usada pelos partidos comunistas como um instrumento de ação subterrânea nos países não-comunistas?

8.     É ou não verdade que, nessas condições, muitos suspeitos interrogados pelo Comitê McCarthy se prevaleceram de uma ambigüidade de linguagem, alegando “não ser comunistas” (no sentido de membros do Partido) sem deixar de ser por isso autênticos comunistas (no sentido de colaboradores informais da espionagem soviética)?

9.     É ou não verdade que ninguém da “lista negra de Hollywood” foi interrogado pela Comissão McCarthy?

10. É ou não verdade que a discriminação dos não-comunistas em Hollywood antecedeu a repressão aos comunistas?

         Para contestar efetivamente meus argumentos, se quizesse fazê-lo com honestidade, bastaria a Argemiro Ferreira responder “Não” a cada uma dessas perguntas e provar que esta resposta é melhor do que aquelas que ofereci.

         Não podendo fazer isso de maneira alguma, ele desliza para longe do assunto e, para dar à sua escapada um ar de resistência heróica, recorre aos seguintes expedientes.

1.     Alterar grotescamente o que eu disse, recorrendo para isso ao hiperbolismo bufo que é o equivalente comunista do senso de humor. Uma vez assim maquiadas as minhas afirmações, negá-las a priori ou desmoralizá-las, evidentemente com a maior facilidade, já que foram preparadas para esse fim.

2.     Revestir a farsa com um verniz de seriedade, dando uma profusão de detalhes sobre fatos marginais, irrelevantes para a essência da discussão.

3.     Mentir pura e simplesmente, falseando datas, nomes e situações.

        

§ 2. Dois exemplos

         Como o uso do expediente número 1 já foi bastante denunciado no Capítulo I, e como o 2 requer explicações mais demoradas, que deixarei para depois, dou logo de cara três exemplos do expediente número 3: mentir.

         1. Afirmei que o Comitê McCarthy só interrogava funcionários do Estado. Argemiro responde: “Era assim que devia ocorrer, pelas regras internas da casa [o Senado]. Mas, na prática, ninguém conseguia impor limites ao senador.” Para prová-lo, cita o caso do escritor James Wechsler, que, não sendo funcionário público, teria sido intimado “por vingança… pelas críticas feitas a McCarthy no New York Post. Argemiro mente. Wechsler era funcionário público, sim. Era assessor do governador de Illinois, Adlai Stevenson, e foi nessa condição que foi intimado; pois o governador, jamais acusado de ser ele próprio comunista (ao contrário do que diz Argemiro), era declaradamente um protetor de comunistas e por isto McCarthy o considerava — com toda a razão, segundo o que hoje se sabe — suspeito de negligência em matéria de segurança. Argemiro – ou quem acredite nele – pode averiguar : a notícia, sem a mínima ambigüidade, está no New York Times de 28 de outubro de 1952. [1]

         2. Para provar que “vítimas inocentes foram arruinadas” pelo Comitê McCarthy, Argemiro apela à velha lenda da mulher humilde (e ademais negra) que “perdera o emprego ao ser intimada a depor” e que McCarthy continuou a perseguir embora soubesse da sua inocência. É um dos cartões-postais clássicos que ilustram a lenda tenebrosa criada em torno de Joe McCarthy pelas ações conjugadas de milhões de Argemiros. Novamente, é tudo falso. A personagem dessa historieta comovente chamava-se Annie Le Moss. Era uma funcionária do Departamento de Sinalização do Exército, uma área de risco onde o regulamento militar proibia dar emprego a pessoas suspeitas de ligação com o Partido Comunista, em razão da óbvia colaboração deste com a espionagem chinesa e soviética. Na época, a imprensa anti-McCarthy fez de Annie o protótipo da vítima inocente, alegando que ela fora confundida com outra Annie Le Moss, branca, esta sim militante do Partido Comunista mas não funcionária do Exército. McCarthy, mesmo sem ter provas cabais, e confiado tão somente no testemunho de Mary Mackward, uma agente do FBI infiltrada no Partido, insistiu até o fim que Annie era comunista, o que foi explorado pela imprensa como prova de sua maldade, sublinhada por insinuações de racismo. Argemiro subscreve a acusação e a nuance. Só há um problema: Annie era comunista mesmo. A prova, porém, só veio tarde demais, quando McCarthy já estava morto e a lenda da sua perseguição a uma pobre mulher negra já havia se consolidado como artigo de fé na seita multitudinária dos Argemiros. Em 1958, o Departamento de Justiça divulgou os documentos do Partido Comunista, jamais contestados pelo Partido mesmo, onde constava, acima de qualquer possibilidade de dúvida, o registro da militante: Annie Le Moss, 72 R Street SW, Washington DC. Duas Annie Le Moss, uma negra e a outra branca, podiam coexistir no Partido. Mas não no mesmo endereço, caramba. [2]

[Continua]

Notas          


[1] V. Richard J. H. Johnston, “Senator Accuses Governor of Sympathy With and Aid to Communist Cause”, N. Y. Times, Oct. 28th 1958.

[2] V. Reports of the Subversive Activists Control Board, Vol. 1, Washington DC, Government Printing Office, 1966, pp. 93-94.

 

Prepare-se para o confisco

Editorial do ARMARIA

Por L.A.

18 de junho de 2001

Caro Leitor do ARMARIA:

Provavelmente V. Sa. está achando o título desse artigo um tanto quanto alarmista e exagerado. Deixe-me, portanto, recordar um velho ditado: – O otimista é, antes de tudo, um tolo. Se alguém acha que a campanha anti-armas vai parar após a aprovação dessa lei que criminaliza o porte não autorizado e a posse de arma sem registro, está redondamente enganado.

Para entender o porque dessa afirmação tão categórica é necessário conhecer algumas premissas políticas. Primeiro é preciso entender que o controle de armas é, antes de tudo, um controle social. Isto é assim não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo. Nos EUA, por exemplo, as primeiras leis restritivas à posse de armas surgiram após a libertação dos escravos (mas foram logo revogadas pela Suprema Corte) e representavam o medo da população branca em ver os pretos armados.

Da mesma forma, no Brasil, a nova lei tem destino certo e não é o banditismo. Olhemos o cenário político/econômico do país para entender a origem do movimento anti-armas. A política neo-liberal adotada pelo governo está levando à falência inúmeras empresas, aumentando a níveis nunca vistos o índice de desemprego da nação (entre outros malefícios). Por outro lado, no campo, um movimento de desempregados cresceu e conseguiu representatividade entre os pobres e respeitabilidade entre a classe média urbana: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O MST tem, hoje, uma penetração na zona rural nunca alcançada por nenhum outro movimento reivindicatório no Brasil. As velhas Ligas Camponesas, de Julião, que tanto amedrontaram as elites no passado pré 64, não passavam de meros exercícios intelectuais de alguns sonhadores. O MST é real, tem força política e congrega gente que não têm nada a perder – o componente básico de qualquer revolução.

Para a situação ficar realmente explosiva, basta agora que os desempregados das cidades façam o seu “Movimento dos Desempregados Urbanos”, aliem-se ao Movimento dos Sem-Teto e comecem a adotar as mesmas táticas de intimidação e invasões que tanto sucesso têm obtido no campo. Daí para uma revolução de fato é um pulo.

A essa altura o Caro Leitor deve estar pensando: “Ah, mas isso não vai acontecer no Brasil. Nós não temos tradição de luta armada”. Cá entre nós, concordo inteiramente com essa opinião. Entretanto, não é este o panorama visto de Washington. Quando Tio Sam olha ao sul do Rio Grande, o que ele vê é o Exército Popular Revolucionário do México, o Exército de Libertação Nacional e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, o Sendero Luminoso no Perú e outros grupos guerrilheiros menos expressivos. Para Tio Sam, o surgimento de um grupo desses no Brasil é apenas uma questão de armas. Isso explica porque de repente, não mais que de repente, toda imprensa servil brasileira, assim como todos os políticos amestrados, começaram em uníssono a toar a ladainha anti-armas, ou será que o leitor achava que tudo isso era indignação pela morte de dois rapazes da classe média-alta de São Paulo? Explica o interesse do FBI em treinar policiais brasileiros nas técnicas do contrabando de armas (?!?!) e na identificação dos compradores sul-americanos de armas nos EUA. Explica, também, porque o governo brasileiro está pressionando os EUA para não exportarem mais armas para nossos vizinhos do MERCOSUL, países onde não há restrições de calibres e as armas que aqui são proibidas, lá são vendidas normalmente para a população.

Ao governo brasileiro é conveniente essa colaboração com os EUA e é importantíssimo que os investidores estrangeiros não se assustem com nosso país. É bom lembrar que o plano Real está fundamentado no capital externo que para cá veio em busca de bons rendimentos. Ao primeiro tiro disparado com conotação política esse capital vai embora da noite para o dia. É o chamado capital volátil. Se isso acontecer a moeda terá de ser desvalorizada. Se isso acontecer o plano Real acaba. Se isso acontecer o país quebra. Se o Brasil quebrar, a Argentina quebra também, e assim boa parte da América Latina pelo efeito dominó.

Observe que se o Caro Leitor, ou seu vizinho, forem assassinados por marginais nada acontecerá com o país. A choradeira de seus parentes e amigos não tem expressão política. Mas, se algum político em cargo de mando for baleado, o país entrará em crise instantaneamente.

Para complicar a situação, nosso presidente, em sua tática de ofuscar as esquerdas enquanto promove a destruição do Estado, deu uma grande “mancada” com o caso Lamarca. Como convencer, agora, os militares de que eles têm de ir combater a guerrilha para depois serem execrados como bandidos, enquanto os guerrilheiros são louvados como heróis e suas famílias indenizadas? Façamos um exercício de futurologia: Que aconteceria se as Forças Armadas recusassem a combater a guerrilha brasileira? Será que o Presidente pediria auxílio a uma nação amiga?

O projeto de lei relatado pelo Deputado Roberto Jefferson é a consolidação de 22 outros projetos apresentados na Câmara e no Senado. Devemos reconhecer o esforço e o mérito do Deputado em depurar todo lixo preconceituoso existente nos demais projetos e apresentar um texto limpo e enxuto. Se alguém tem alguma dúvida que todos esses projetos de lei têm a política como motivação, basta observar que 90% deles falam abertamente na questão das armas de uso proibido e atribuem penalidades mais rigorosas às pessoas apanhadas com esse tipo de armas. Ora, armas de calibre proibido são considerações de ordem militar. Para o cidadão que é assaltado na rua, pouco importa se ele vai morrer com um tiro de .38 Special ou de 9mm Parabellum. Ninguém morre duas vezes ou fica mais morto com este ou aquele calibre. Os calibres são proibidos em função de seu alcance e poder de perfurar blindagens, considerações estas totalmente irrelevantes quando o assunto é criminalidade ou violência urbana.

O Caro Leitor deve estar se perguntando: Quer dizer que em função dessa paranóia vou ficar sem minha arma para me proteger? Sim! Vai porque o Caro Leitor não tem nenhum peso político. Ou melhor, V. Sa. é apenas um voto entre os oitenta milhões de eleitores brasileiros. Quase nada. Enquanto os “Sem Terra” são personagens de novela e ocupam amplo espaço na mídia, suas cartas aos jornais nem são publicadas, não é mesmo? Alguma instituição de pesquisa, do tipo IBOPE, já o procurou para ouvir sua opinião? Claro que não! Sua opinião é irrelevante.

Por outro lado, militarmente falando, você é um perigo. É uma espada de Damocles sob a cabeça de nossos políticos. Seu perfil é de um cidadão do sexo masculino, provavelmente com educação superior, ocupando alguma função de responsabilidade em seu emprego, fazendo parte de um sindicato, de um clube ou associação, razoavelmente bem informado, com capacidade de discernimento e comando e, ainda por cima, tem uma arma. Percebeu? Já pensou no que aconteceria se você, e outros iguais a você, decidirem se juntar a um desses movimentos reivindicatórios? Não são os bandidos os elementos perigosos. Você é que é o perigo. É você que tem de ser desarmado!

Daí a certeza que o confisco das armas é iminente. Afinal, a nova lei ainda permite a posse de armas por cidadãos. O Projeto de Lei do Dep. Matheus Schmidt, por exemplo (PL 935/95), proíbe a fabricação de armas de uso proibido em território nacional, o que inviabilizaria economicamente as fábricas brasileiras. O projeto do Dep. Ushitaro Kamia (PL 189/95) simplesmente proíbe a venda de armas de fogo à particulares. O projeto dos Deputados Aldo Rebelo e Ricardo Gomyde (PL 741/95), exige exames psicotécnicos anuais para quem tem arma em casa. Perceberam? Quando acabar o prazo dado para que os cidadãos efetuem o registro das armas no SINARM começará a campanha pelo confisco.

O que fazer para estancar esse movimento? Evidentemente que ficarmos parados nos lamuriando não levará a nada. Estimam-se em dez milhões de pessoas os proprietários de armas de fogo no Brasil. É um número considerável. Bastaria um mínimo de organização para transformar essa multidão alienada e desorientada numa considerável força política. Imaginemos que um por cento desses proprietários concordassem em contribuir com apenas R$10,00 por ano para uma organização similar à NRA americana. Teríamos um milhão de reais por ano para fazer campanhas pró-armas na mídia, fazer pesquisas, divulgar o esporte do tiro e, até mesmo, eleger políticos. Aí sim, Caro Leitor, sua opinião seria ouvida. V. Sa. passaria a ser consultado e até mesmo “bajulado” pela imprensa. Suas cartas seriam publicadas e você seria chamado de “formador de opinião”. Não é preciso inventar nada, basta copiar o que os americanos fizeram com tanto sucesso.

Será que não somos capazes disso? Bem, se não formos capazes de nos organizar agora podemos dar adeus às nossas armas.

L.A.

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