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Ser e Conhecer – 3

Tema para uma das próximas aulas do Seminário de Filosofia

§ 1. Definição da Filosofia. — Filosofia é busca da unidade do saber na unidade da autconsciência e vice-versa.

§ 2. Composição do saber. — O saber compõe-se de:

  1. informações dos sentidos internos e externos:
  2. estruturas inatas diretamente condicionadas pela forma do corpo humano;
  3. registros organizados na memória;
  4. estruturas simbólicas transmissíveis.

§ 3. Divisões do saber. O conhecimento. – I. O saber divide-se em:

  1. Memória pessoal.
  2. Experiência pessoal, isto é, memória assumida e personalizada.
  3. Estruturas simbólicas assimiladas.
  4. Estruturas simbólicas produzidas.

II. Estas duas últimas constituem o campo do conhecimento propriamente dito. Elas absorvem as anteriores e as subentendem.

§ 4. A experiência da unidade. O corpo. Autodomínio e domínio. — I. A unidade funcional do corpo humano é o primeiro modelo do tipo de unidade cujo análogo mais tarde se buscará na esfera do saber. Ela assume a forma concreta de um sistema vivente de órgãos subordinados à vontade individual. Ferimentos, doenças, dores, mutilações, enfraquecimento assinalam rupturas parciais dessa unidade. Ter um corpo capaz de realizar, dentro dos seus limites próprios, a nossa vontade individual, é a primeira condição do autodomínio. O autodomínio é a primeira condição da ação no mundo. No curso da ação no mundo, o corpo encontra limites externos, que, através de aprendizado e adaptações, busca transcender. O conjunto dos limites transcendidos forma o seu domínio. O domínio pode estreitar-se por efeito de fatores externos sem que por isto se estreite o autodomínio, mas toda limitação do autodomínio produz o estreitamento do domínio.

II. A unidade do saber é um autodomínio estendido às estruturas simbólicas assimiladas e personalizadas.

§ 5. Ego. – Ego é a experiência pessoal condensada na forma de uma identidade corporal constante no tempo. É experiência pessoal sistêmica.

§ 6. Autoconsciência. — É o autodomínio no nível do ego. Você tem consciência de algo quando tem em seu poder não somente (a) uma informação, mas também (b) a informação de que tem essa informação e (c) a informação de que essa informação é sua, isto é, de que ela agora faz parte integrante do sistema do seu ego. A fórmula para a é: Sei. Para b é: Sei que sei. A fórmula para c, isto é, a fórmula da autoconsciência, é Sei que sei que sei.

§ 7. Ego e autoconsciência. Consciência autoral. Ego e poder do Ego. — I. A existência do ego supõe a coincidência espaçotemporal da identidade corporal com o sujeito da experiência pessoal, ou, dito de outro modo, a identificação do sujeito objetivo com o sujeito subjetivo da experiência pessoal. Esta identificação, a que doravante chemarei consciência autoral, não é automática, pois só pode se realizar na autoconsciência, a qual, sendo um autodomínio, um poder, só existe mediante o exercício (embora possa se conservar por algum tempo enquanto mera potência). Observa-se, em certos estados patológicos e hipnóticos, a ruptura da consciência autoral (fragmentação do ego). Esta ruptura permanece como possibilidade mesmo quando não se realiza. Assim, pois, a consciência autoral é contingente e não necessária. Nada, absolutamente nada no mundo natural pode obrigar um indivíduo a ter consciência autoral, e, em contrapartida, nada no mundo natural pode abolir a conexão objetiva que faz de um indivíduo o autor dos seus atos (internos e externos), o sujeito de sua experiência pessoal. É o mesmo que dizer: você é você e não pode deixar de ser você, mas que ninguém pode obrigá-lo a admitir isso, exceto você mesmo. (A possibilidade da coerção sobrenatural será discutida bem mais adiante e pode ser deixada de lado neste ponto.)

II. O conhecimento pressupõe a experiência pessoal, a experiência pessoal pressupõe a consciência autoral, a consciência autoral é livremente assumida por um sujeito que, não obstante, se não a assumir, não deixará de ser objetivamente autor de seus atos. Não se pode portanto dizer que o Ego se constitui a si mesmo, porque ele já recebe seu fundamento da unidade corporal objetiva e do fato bruto da autoria objetiva. Apenas, esse fundamento objetivo não pode terminar de constituí-lo sem a anuência dele. Esta anuência é só subjetiva, pois objetivamente ele continua autor de seus atos mesmo sem ela. Mas, pela anuência, o Ego, já existente, se assume a si mesmo como autoconsciência, e é isto que o constitui como poder. O Ego sem poder do Ego é o Ego vazio e inoperante que se observa naqueles estados que a psiquiatria denomina, hiperbolicamente, “perda da identidade”.

§ 8. Consciência autoral e unidade da experiência pessoal. – A experiência pessoal só pode ter unidade quando tem como centro a consciência autoral, que distingue o fazer e o padecer, isto é, o sujeito como autor de seus atos e como receptor de atos seus e alheios. Por outro lado, é evidente que a unidade da experiência pessoal está subentendida em toda aquisição, conservação e transformação de conhecimentos.

§ 9. O sujeito como objeto. Atos imanentes e transitivos. – Nenhum sujeito, enquanto sujeito autoconsciente, pode ser autor de atos (externos ou internos), sem ser, ipso facto, receptor deles. Todo ato tem um feedback, condição de seu registro memorativo e, portanto, de sua continuidade autoral no tempo. Estar consciente de si enquanto autor de atos é estar consciente de si enquanto receptor deles. A noção aristotélica de atos imanentes e transitivos adquire aqui uma nova nuance: o ato é imanente quando o autor é autor e receptor sob o mesmo aspecto; é transitivo quando o autor é autor sob um aspecto e receptor sob um outro aspecto. Por exemplo, se massageio meus próprios músculos, recebo a ação sob o mesmo aspecto em que a emiti, isto é, aplico e recebo a massagem. Mas, se chuto um gato, não recebo meu próprio chute, e sim apenas a informação de que chutei o gato. Todos os atos transitivos são portanto imanentes (sob outro aspecto), mas nem todos os atos imanentes são transitivos (sob qualquer aspecto).

§ 10. Inseparabilidade de autoconsciência, imanência e transitividade. – Estar autoconsciente ao praticar um ato inclui a distinção exata e instantânea entre o que ele tem de imanente e de transitivo, no sentido acima. Se não sei se agi só sobre mim mesmo, sobre um outro ou sobre ambos, e sob quais aspectos, então não sei se agi de maneira alguma.

§ 11. Transcendência da autoconsciência. — A autoconsciência inclui portanto constitutivamente sujeito, objeto e sua reunião-distinção no ato. Uma autoconsciência solipsística não é autoconsciência de maneira alguma, exceto metonimicamente (tem algumas das propriedades ou partes da consciência sem chegar a ser autoconsciência). No sujeito, a autoconsciência é, já na sua constituição mesma, um transcender-se. A autoconsciência solipsística (cartesiana) só pode ser construída ex post facto como hipótese lógica (por abstração e supressão voluntária de dados da memória), jamais ser objeto de experiência. É mais ou menos como um homem normal imaginar-se autista – coisa que um autista não pode fazer.

§ 12. Transitividade, imanência e retenção. Ego e “mundo”. — Se a autoconsciência é, ipso facto, consciência da dosagem de transitividade e imanência do ato praticado, ela o é igualmente, mutatis mutandis, no ato padecido: estar autoconsciente enquanto receptor de um ato é distinguir, nessa recepção, aquilo que é puramente transitivo (isto é, aquilo que me vem de um não-eu) e aquilo que, nela, é imanência minha, por exemplo sob a forma de retenção, no tempo, de uma informação já completada. Por exemplo, acabo de receber um pontapé. O pontapé já terminou, no tempo, mas continuo sentindo a dor que ele provocou: esta dor, que prolonga em meu corpo o ato alheio já terminado, é parte dele na medida em que vem dele como efeito, mas ela, agora, só existe em mim e não nele. Sem esta retenção, nenhum ser pode ser autoconscientemente receptor de nada. Mas também não o pode se a retenção é mera retenção de sensações ou imagens, se ela não contém em si a exata distinção do que me veio como transitividade pura e do que entra nela como imanência minha. Não há portanto autoconsciência sem a consciência do não eu-como agente. Não apenas não existe autoconsciência solipsística, mas não existe a autoconsciência num mundo de puros objetos, num mundo sem outros sujeitos. A existência de sujeitos agentes fora do eu, assim como o pleno reconhecimento dela pelo eu, são elementos constitutivos da autoconsciência mesma. Por isto o eu, quando nega os outros agentes ou os reduz a meros objetos, não cessa de existir, mas cessa de ser um poder, retorna ao estado de pura potencialidade vazia. O Ego só existe como poder num mundo de agentes, num mundo de sujeitos. O “mundo”, portanto, não vem ao Ego desde fora, como um simples “dado”, mas já se impõe desde dentro, como condição da possibilidade mesma do Ego como poder. E não cabe em gnoseologia discutir o Ego-sem-poder, pois este não é sujeito de conhecimento e aliás só existe como possibilidade teórica e construção lógica hipotética, cuja simples formulação já prova, no ato, sua própria irrealidade, exatamente como no caso do “imaginar-se autista”. Por desgraça, o Ego que foi objeto central de atenção durante todo o período que vai de Descartes á fenomenologia de Husserl foi o ego sem poder, ao qual se atribuiu, como hipótese mágica, o dom de conhecer, daí resultando uma infinidade de problemas insolúveis e, na verdade, perfeitamente insensatos.

Pobreza e grossura

Olavo de Carvalho

Bravo!, julho de 2000

Neste país você não pode pedir emprego e muito menos dinheiro emprestado a um conhecido sem que ele instantaneamente assuma ares paternais e comece a lhe dar conselhos, a ralhar com você chamando-o de irresponsável, leviano e miolo-mole. E dê graças a Deus de que ele o faça em tom bonachão e não transforme a humilhação sutil em massacre ostensivo. Finda a cena, ele sai todo satisfeito com a consciência do dever cumprido e considera-se dispensado de lhe arranjar o emprego ou o dinheiro. E você? Bem, você sai duro, desempregado… e culpado.

Esse mesmo sujeito é capaz de, na mesma noite, oferecer um jantar tomando o máximo cuidado para que a arrumação da mesa e a distribuição dos convidados obedeçam estritamente às regras da mais fina etiqueta.

Um indício seguro de barbarismo num povo é a atenção excessiva concedida aos sinais convencionais de boa educação e o desprezo ou ignorância dos princípios básicos da convivência que constituem a essência mesma da boa educação.

O bárbaro, o selvagem, pode decorar as regras e imitá-las na frente de quem ele acha que liga para elas. Mas não capta o espírito delas, não percebe que são apenas uma cartilha de solicitude, de atenção, de bondade, que pode ser abandonada tão logo a gente aprendeu o verdadeiro sentido do que é ser solícito, atencioso e bom.

Meu pai era um sujeito relaxado, que às vezes ia de pijama receber as visitas. Mas ele chamava de “senhor” cada mendigo que o abordava na rua, e sem que ele me dissesse uma palavra aprendi que o homem em dificuldades necessitava de mais demonstrações de respeito do que as pessoas em situação normal. Quanto mais respeitoso, mais cuidadoso, mais escrupuloso cada um não deveria ser então com um amigo que, vencendo a natural resistência de mostrar inferioridade, vem lhe pedir ajuda! Esta regra elementar é sistematicamente ignorada entre as nossas classes médias e altas, principalmente por aquelas pessoas que se imaginam as mais cultas, as mais civilizadas e – valha-me Deus! – as mais amigas dos pobres.

Fico horrorizado quando vejo alguém enxotar um flanelinha como se fosse um cachorro, e nunca vi alguém fazê-lo com a desenvoltura, o aplomb, a consciência tranqüila de um intelectual de esquerda! Nos anos 60, corria o dito de que ajudar os pobres individualmente era “alienação burguesa”, ópio sentimental, sucedâneo da revolução salvadora. Passaram-se quarenta anos, a revolução salvadora não veio (onde veio, os pobres ficaram mais pobres ainda) e duas gerações de necessitados apertaram ainda mais os cintos em homenagem à prioridade da revolução. Mas não conheço um só militante comunista do meu tempo e do meu meio que não esteja com a vida ganha, que não ostente como um sinal de maturidade triunfante a segurança financeira adquirida graças ao apadrinhamento da máfia política que, até hoje, domina o mercado de empregos na imprensa, na publicidade, no ensino superior e no mundo editorial.

Hoje não precisam mais do pretexto revolucionário para enxotar flanelinhas. Seu discurso tornou-se palavra oficial, as prefeituras e governos estaduais nos advertem, em cartazes piedosos, para não dar esmolas. Sim, a caridade individual está em baixa. Os frutos da bondade humana não devem ir direto para o bolso do necessitado: devem ir para as ONGs e os órgãos públicos, sustentando funcionários e diretores, financiando movimentos políticos, pagando despesas de aluguel, administração, publicidade e transporte, para no fim, bem no fim, se sobrar alguma coisa, virar sopa dos pobres, diante das câmeras, para a glória de São Betinho.

Há quem neste país tenha nojo da corrupção oficial. Pois eu tenho é da caridade oficial.

Ainda há quem diga: “Mas se você dá dinheiro o sujeito vai beber na primeira esquina!” Pois que beba! Tão logo ele o embolsou, o dinheiro é dele. Vocês querem educar o pobre “para a cidadania” e começam por lhe negar o direito de gastar o próprio dinheiro como bem entenda? Querem educá-lo sem primeiro respeitá-lo como um cidadão livre que atormentado pela miséria tem o direito de encher a cara tanto quanto o faria, mutatis mutandis, um banqueiro falido? Querem educá-lo impingindo-lhe a mentira humilhante de que sua pobreza é uma espécie de menoridade, de inferioridade biológica que o incapacita para administrar os três ou quatro reais que lhe deram de esmola? Não! Se querem educá-lo, comecem pelo mais óbvio: sejam educados. Digam “senhor”, “senhora”, perguntem onde mora, se o dinheiro que lhes deram basta para chegar lá, se precisa de um sanduíche, de um remédio, de uma amizade. Façam isso todos os dias e em três meses verão esse homem, essa mulher, erguer-se da condição miserável, endireitar a espinha, lutar por um emprego, vencer.

Na verdade, a barreira que impede o acesso de pobres e mendicantes brasileiros a uma vida melhor é menos econômica que social. Façam um teste. Quanto custa um frango? Assado, com farofa. Cinco reais no máximo, em geral menos. Quer dizer que um mendigo, pedindo esmola em qualquer das grandes capitais do Brasil, pode comer pelo menos um frango por dia, se não dois, e ainda lhe sobra o dinheiro da condução. Para você fazer uma idéia de quanto um país onde isso é possível é um país rico e generoso, tente esta comparação. Quando Franklin D. Roosevelt lançou o New Deal, um dos objetivos principais do ambicioso plano econômico foi assim anunciado pelo rádio: “Assegurar que cada família deste país tenha em sua mesa um frango por semana.” Ouviram bem? Um frango por semana para quatro ou cinco pessoas. Na época pareceu um ideal quase utópico. Pois bem: estamos numa terra onde velhas desamparadas que se arrastam pelas ruas comem um frango por dia, onde os meninos de rua pedem esmola em frente ao McDonald’s para completar o preço de um BigMac com fritas de três em três horas, onde os bebês famintos exibidos pelas mães em prantos usam fraldas descartáveis, onde as casas dos bairros miseráveis têm antenas parabólicas e os catadores de lixo se comunicam com seus sócios por telefones celulares.

Em contrapartida, façam outro teste: peguem um sujeito sujo e esfarrapado, encham-no de dinheiro e façam-no entrar numa loja de roupas – não digo uma loja elegante, mas qualquer uma — para comprar um terno. Será enxotado. E, se gritar: “Eu tenho dinheiro!”, vai terminar na polícia, com holofote na cara, tendo de se explicar muito bem explicadinho, isto se não for obrigado a escorregar “algum” para a mão do sargento.

O mesmo pobre que pode comer um frango por dia tem de comê-lo na calçada, com os cães, porque não tem acesso aos lugares reservados aos seres humanos. Está certo que você, gerente do restaurante, fique constrangido de botar um sujeito estropiado e fedido no meio dos seus clientes distintos. Mas não vê que mandá-lo comer na rua é mais falta de educação ainda? Pelo menos dê-lhe de comer num cantinho discreto, converse com ele sobre as dificuldades da vida, ofereça-lhe uma camisa, uma calça. Seja educado, caramba! Pois se você, que está bem empregado e bem vestido, tem o direito de ser grosso, que primores de polidez pode esperar do pobre? Se um dia, cansado de levar chutes, ele o manda tomar naquele lugar, não se pode dizer que esteja privado do senso das proporções. E não me venha com aquela história de “Se eu tratar bem um só mendigo, no dia seguinte haverá uma fila deles na minha porta”. Isso pode ser verdade em casos isolados, mas não no cômputo final: se todos os restaurantes tratarem bem os mendigos, logo haverá mais restaurantes que mendigos. Conte os mendigos e os restaurantes da Avenida Atlântica e diga se não tenho razão. Isto sem que entrem no cálculo os bares e padarias.

O brasileiro de classe média e alta está virando uma gente estúpida que clama contra a miséria no meio da abundância porque cada um não quer usar seus recursos para aliviar a desgraça de quem está ao seu alcance, e todos ficam esperando a solução mágica que, num relance, mudará o quadro geral. Sofrem de platonismo à outrance: crêem na existência de um geral em si, dotado de substância metafísica própria, independente dos casos particulares que o compõem.

Por isso é que quando a propaganda do Collor inventou aquela coisa de “Não votem em Lula porque ele vai obrigar cada família de classe alta a adotar um menino de rua”, eu me disse a mim mesmo: “Raios, se isso fosse verdade eu ficaria satisfeito de votar no Lula.” Só acredito é em gente ajudar gente, uma por uma, não na mágica platônica das “mudanças estruturais”, pretexto de revoluções e matanças que resultam sempre em mais pobreza ainda.

Na verdade, quem acredita nelas erra até ao dar nome ao problema geral. Quando, revoltados ante a desgraça do povo brasileiro, gritamos: “Fome!”, algo está falhando na nossa percepção da realidade social. No mais das vezes, o que falta não é comida, não é dinheiro: é as pessoas compreenderem que a pobreza não é um estigma, não é uma desonra, é uma coisa que pode acontecer a qualquer um e da qual ninguém se liberta só com dinheiro, sem o reforço psicológico de um ambiente que o ajude a sentir-se novamente normal e, em suma, um membro da espécie humana.

Entre as causas culturais da pobreza, a principal não está nos pobres: está na falta de educação dos outros.

Que é o fascismo?

Olavo de Carvalho

O Globo, 8 de julho de 2000

Benito Mussolini resumiu a doutrina fascista numa regra concisa: “Tudo para o Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado.” No Brasil, se você é contra essa idéia, se você é a favor da iniciativa particular e das liberdades individuais, logo aparece um chimpanzé acadêmico que tira daí a esplêndida conclusão de que você é Benito Mussolini em pessoa. E não caia na imprudência de imaginar que essa conversa é demasiado pueril para enganar o resto da macacada. Quando você menos espera, guinchados de ódio cívico se erguem da platéia, e uma frota de micos, lêmures, babuínos, orangotangos e macacos-pregos se precipita sobre você, às dentadas, piamente convicta de estar destruindo, para o bem da humanidade símia, um perigoso fascista. Cuidado, portanto, com o que diz por aí. Você não faz idéia da autoridade intelectual dos chimpanzés na terra do mico-leão.

Na verdade, a idéia oficial de “fascismo” que se transmite nas nossas escolas não tem nada a ver com o fenômeno que em ciência histórica leva esse nome. É uma repetição fiel, devota e literal das fórmulas de propaganda concebidas por Stálin no fim da década de 30 para apagar às pressas a raiz comum dos dois grandes movimentos revolucionários do século e atirar ao esquecimento a universal má impressão deixada pelo pacto germano-soviético. Nessa versão, o fascismo e o nazismo surgiam como movimentos “de extrema-direita”, criados pelo “grande capital” para salvar “in extremis” o capitalismo agonizante. É lindo imaginar aqueles banqueiros judeus de Berlim, reunidos em comissão médica em torno do leito do regime moribundo, até que a um deles ocorre a solução genial: “É moleza, turma. A gente inventa a extrema-direita, ela nos manda para o campo de concentração, e pronto: está salvo o capitalismo.”

No entanto as origens e a natureza do fascismo não são mistério nenhum, para quem se disponha a rastreá-las em autênticos livros de História.

Todas as ideologias e movimentos de massa dos dois últimos séculos nasceram da Revolução Francesa. Nasceram dela e nenhum contra ela. As correntes revolucionárias foram substancialmente três: a liberal, interessada em consolidar novos direitos civis e políticos, a socialista, ambicionando estender a revolução ao campo econômico-social, a nacionalista, sonhando com um novo tipo de elo social que se substituísse à antiga lealdade dos súditos ao rei e acabando por encontrá-lo na “identidade nacional”, no sentimento quase animista de união solidária fundada na unidade de raça, de língua, de cultura, de território. A síntese das três foi resumida no lema: Liberdade-Igualdade-Fraternidade.

A conjuração igualitarista de Babeuf e seu esmagamento marcaram a ruptura entre os dois primeiros ideais, anunciando duzentos anos de competição entre revolução capitalista e revolução comunista. Que cada uma acuse a outra de reacionária, nada mais natural: na disputa de poder entre os revolucionários, ganha aquele que melhor conseguir limpar sua imagem de toda contaminação com a lembrança do “Ancien Régime”. Mas para limpar-se do passado é preciso sujá-lo, e nisto concorrem, com criatividade transbordante, os propagandistas dos dois lados: as terras da Igreja, garantia de subsistência dos pobres, tornam-se retroativamente hedionda exploração feudal; a prosperidade geral francesa, causa imediata da ascensão social dos burgueses, torna-se o mito da miséria crescente que teria produzido a insurreição dos pobres; a expoliação dos pequenos proprietários pela nova classe de burocratas que se substituíra às administrações locais (e que aderiu em massa à revolução) se torna um crime dos senhores feudais. A imagem popular da Revolução ainda é amplamente baseada nessas mentiras grossas, para cuja credibilidade contribuiu o fato de que fossem apregoadas simultaneamente por dois partidos inimigos.

A terceira facção, nacionalista, passa a encarnar quase monopolisticamente o espírito revolucionário na fase da luta pelas independências nacionais e coloniais (o Brasil nasceu disso). A parceria com as outras duas transforma-se, aos poucos, em concorrência e hostilidade abertas, incentivadas, aqui e ali, pelas alianças ocasionais entre os revolucionários nacionalistas e os monarcas locais destronados pelo império napoleônico.

Pelo fim do século XIX, as revoluções liberais tinham acabado, os regimes liberais entravam na fase de modernização pacífica. O liberalismo triunfante podia agora reabsorver valores religiosos e morais sobreviventes do antigo regime, tornados inofensivos pela supressão de suas bases sociais e econômicas. Ele já não se incomodava de personificar a “direita” aos olhos das duas concorrentes revolucionárias, rebatizadas “comunismo soviético” e “nazifascismo”. Assim começou a luta de morte entre a revolução socialista e a revolução nacionalista, cada uma acusando a outra de cumplicidade com a “reação” liberal.

Essa é a história. O leitor está livre para tentar orientar-se entre os dados, sempre complexos e ambíguos, da realidade histórica, ou para optar pelas simplificações mutiladoras. A primeira opção fará dele um chato, um perverso, um autoritário, sempre a exigir que as opiniões, essas esvoaçantes criaturas da liberdade humana, sejam atadas com correntes de chumbo ao chão cinzento dos fatos. A segunda opção terá a vantagem de torná-lo uma pessoa simpática e comunicativa, bem aceita como igual na comunidade tagarela e saltitante dos símios acadêmicos.

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