Paulo Briguet

Revista Wink Mag #20, agosto de 2013

Tudo começou por volta de 1996, quando caiu em minhas mãos o artigo de um tal Olavo de Carvalho. Li o texto uma, duas, três vezes – e xinguei alto. Como é que alguém ousava dizer aquelas coisas sobre intelectuais tão importantes da esquerda brasileira? Como é que alguém podia questionar os maravilhosos ideais da revolução socialista? Como é que alguém tinha a petulância de chamar o comunismo de “regime assassino”? Como é que esse mesmo reacionário tinha coragem de falar em Aristóteles, Platão, Leibniz, Nietzsche, Marx, literatura universal e cristianismo como se fosse um grande conhecedor de cada um desses autores e assuntos?

E o mais revoltante: o cara escrevia bem. Na época, aos 25 anos, eu era um militante esquerdista convicto. Sem que os meus companheiros de sindicato e partido desconfiassem de nada, viciei-me nos textos do tal Olavo. Lia-os escondido. Encontrei “O Imbecil Coletivo” numa livraria da cidade e, sem coragem de comprar o livro, passei a lê-lo a prestações, algumas páginas por dia, na livraria mesmo. Eu ainda lia e xingava, mas também me encantava com o poder dos argumentos, a fluência do estilo e a inegável erudição do autor.

Jamais poderia imaginar que, 17 anos depois, seria convidado a passar uma semana na casa do filósofo Olavo de Carvalho, em Richmond, Estados Unidos, para falar com ele e outros quatro escritores sobre o esvaziamento espiritual da cultura brasileira. Ao entrar na biblioteca de Olavo, onde a quantidade de livros só é menos espantosa do que o fato de que realmente foram lidos e compreendidos pelo dono, senti que a minha vida, de certa forma, se encaminhara para aquele momento. A partir daqueles seis dias de intenso debate e reflexão, eu nunca mais me permitiria transigir em termos de honestidade intelectual. E honestidade intelectual, segundo o professor Olavo, define-se de maneira simples: “Nunca fingir que você sabe o que não sabe e não sabe o que sabe”.

Sei, por exemplo, o que é o Foro de São Paulo. Em 1990, lideranças da esquerda, comandadas pelo sr. Luiz Inácio Lula da Silva, se reuniram na capital paulista com o objetivo explícito de recuperar na América Latina o poder que os regimes comunistas haviam perdido no Leste Europeu no ano anterior, com a queda do Muro de Berlim. A estratégia da esquerda latino-americana não seguiria mais o modelo bolchevique de tomada do poder e terror policial; o caminho seria o da conquista gradual dos corações e mentes, através de uma cuidadosa dominação da cultura, inspirada por Antonio Gramsci, o Maquiavel moderno. A tal campanha pela “ética na política”, durante o governo Collor, era uma das etapas desse processo de revolução cultural, política e, finalmente, social.

Hoje a maioria dos países da América Latina é governada por líderes esquerdistas profundamente identificados e comprometidos com o Foro de São Paulo. Durante muitos anos, Olavo de Carvalho foi ridicularizado como “louco” e adepto de “teorias da conspiração”, enquanto a cultura brasileira, incluindo seus aspectos políticos, era vampirizada pela esquerda gramsciana e forneceria a base de apoio para o governo cleptopopulista dos últimos dez anos. O conservadorismo e o liberalismo brasileiro foram reduzidos a pó – no sentido de que não possuem a menor força e presença intelectual em nosso país.

Mas a resistência sempre surgirá. Foi assim no Leste Europeu e será assim na América Latina Em Richmond, tive a honra de me encontrar com alguns raros intelectuais que não se deixaram seduzir pela mentalidade revolucionária: Rodrigo Gurgel, o melhor crítico literário em atividade no país, responsável pela reabilitação de escritores esquecidos e o desmascaramento de medalhões superestimados; Ângelo Monteiro, autor do antológico ensaio “A lavação da burra” e nome de destaque na procura pela identidade brasileira por meio da linguagem poética, na tradição de Jorge de Lima, Alberto da Cunha Melo e Bruno Tolentino; o cientista político, jornalista e tradutor Bruno Garschagen, nome de proa na defesa das liberdades individuais e estudioso do conservadorismo político; e o professor e filósofo português Miguel Bruno Duarte, implacável crítico da dominação ideológica esquerdista nas universidades lusitanas.

Como faço questão de dizer sempre, estive em Richmond mais como observador e representante de um gênero literário evidentemente menor, a crônica. Faltaram lá outros nomes que ainda alimentam esperanças de dias melhores na cultura brasileira: o jornalista Reinaldo Azevedo; o padre Paulo Ricardo, os escritores Flavio Morgenstern, Felipe Moura Brasil e Gustavo Nogy; o professor José Carlos Zamboni; e até mesmo o cantor e compositor Lobão. De qualquer modo, foi uma experiência marcante, um divisor de águas na vida de qualquer cronista de província. Aprendi muito. Ouvi muito. Falei pouco – mesmo assim, bastante.

Richmond, na Virgínia, foi a capital dos Estados Confederados durante a Guerra da Secessão. As tropas de Lincoln reduziram a cidade a cinzas no final do conflito. Durante nossas conservações – que ficaram documentadas em vídeo –, Bruno Garschagen comparou o atual estado da cultura brasileira com os versos desesperados de T. S. Eliot em “The Waste Land” (A Terra Desolada). Outra imagem evocada por Garschagen foi a do Titanic gradualmente tomado pelas águas geladas. Pessoalmente, acredito que a Richmond arrasada na Guerra Civil oferece-nos uma precisa metáfora do Brasil da era petista. Diz a lenda que restou apenas uma casa em pé em Richmond na época: justamente a casa onde hoje se encontra o Museu de Edgar Allan Poe, o mais ilustre filho da cidade. Na frente da casa existe um carvalho, como se fosse uma testemunha das dores e tragédias que ali se passaram.

Também há um carvalho na frente da casa do professor Olavo. À sombra da velha árvore, os visitantes se reuniam todos os dias daquela semana inesquecível. “Eu gostaria que todo mundo falasse e escrevesse com o coração nas mãos”, disse o nosso anfitrião numa dessas conversas, ao lado de sua querida família que tão bem nos recebeu. Ali ele contou várias histórias sobre sua vida – narrativas que certamente dariam um belo livro. Ali ele falou com carinho sobre Arno Preis e João Leonardo, os dois melhores amigos de meu pai, mortos após aderirem à luta armada nos anos 70. Ali a minha vida recomeçou mais uma vez – a exemplo do dia em que me casei e do dia em que nasceu meu filho. De agora em diante, só escreverei com meu coração nas mãos. Aos 43 anos, já sei quem sou. Obrigado, Olavo.

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