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Saindo do exílio

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 11 de maio de 2006

Por duas ou três décadas, a opinião esquerdista teve a hegemonia completa do espaço público brasileiro, ocupando as ruas, as cátedras, as colunas de jornal e o horário nobre da TV com uma empáfia fora do comum, sem encontrar a mínima resistência.

Tão incontestado foi seu monopólio, que suas miúdas divergências internas acabaram sendo consagradas como sinônimos de “oposição”, suprimindo a possibilidade mesma de uma oposição genuína. Expulsa, caricaturada, aviltada, achincalhada sem chance de defesa, a “direita” tornou-se tão estranha e impensável no ambiente nacional, que, quando o tucanato foi posto oficialmente no lugar dela, não havia mais ninguém capaz de notar a diferença.

Os próceres esquerdistas embriagaram-se de hegemonia ao ponto de acreditar mesmo que a livre discussão entre suas próprias facções era o suprassumo da diversidade e que qualquer opinião frontalmente oposta ao conjunto era uma ameaça às instituições democráticas, uma trama diabólica do Pentágono.      

Nas universidades, duas gerações de estudantes foram adestradas, como matilhas de cães, para zelar pela segurança de seus treinadores, arreganhando pavlovianamente os dentes à mera suspeita da presença de liberais e conservadores (“fascistas”, no seu vocabulário de reflexos condicionados).

Com subserviência abjeta, banqueiros, empresários, potentados da mídia e até políticos tidos como “conservadores” (no sentido brasileiro do termo, isto é, oportunistas sem convicção alguma) bajularam a presunção insana da liderança esquerdista e a alimentaram com dinheiro e cargos, na esperança estúpida de apaziguá-la, tremendo de medo por dentro mas fazendo cara de espertos e fingindo orgulho de ciscar as migalhas de poder caídas da mesa da nomenklatura (hoje estão todos na lista da Receita Federal, aguardando sua vez de ser transmutados em Paulo Salim Maluf, Luiz Estevão ou Eliana Tranchesi).

Nesse panorama, não é de espantar que os poucos remanescentes liberais e conservadores sinceros se isolassem até geograficamente, fazendo do Rio Grande do Sul o único Estado brasileiro no qual era permitido estar um pouco à direita do PSDB e no qual, por isso mesmo, a soberba petista acabou por ser derrubada para não se levantar, talvez, nunca mais.

Ano após ano, um valente grupo de empresários promoveu ali manifestações públicas de pró-capitalismo explícito inconcebíveis no resto do país: as memoráveis sessões do “Fórum da Liberdade” – uma arena democrática onde as estrelas esquerdistas abandonavam por momentos as delícias do monólogo triunfante e, expostas ao confronto aberto, saíam sempre de rabo entre as pernas.

Um ignóbil acordo espontâneo da mídia nacional, porém, ocultou sob total silêncio esses acontecimentos político-culturais de primeira grandeza, limitando ao território gaúcho o exercício obsceno da liberdade de divergir.

Daí a importância imensurável do seminário que a Associação Comercial de São Paulo vai realizar no Hotel Caesar Business, na capital paulista, nos dias 15 e 16 de maio, sob o título “Democracia, Liberdade e o Império das Leis”. Pela primeira vez em décadas, as idéias pró-capitalistas saem do heróico exílio gaúcho e ousam se exibir em público na própria terra natal do capitalismo brasileiro, de onde a covardia e a omissão de tantos beneficiários da liberdade de mercado as haviam banido em prol do oficialismo de ocasião e do puxa-saquismo masoquista.

Sendo eu mesmo um dos conferencistas (por vídeo), não posso expressar aqui toda a alegria libertadora que o acontecimento me infunde. Só posso dizer que, com a presença de estudiosos de primeiro escalão como Guy Sorman, Alejandro Chafuen, Tim Goeglein, Clifford May e Ives Gandra da Silva Martins, entre outros, o seminário promete mostrar um pouco da superioridade intelectual do pensamento pró-capitalista, fenômeno reconhecido mundialmente, que só continua a ser segredo num país que tem por presidente um semi-analfabeto de terno Armani e por ministro da Cultura um folião boboca.

Aguardem o pior

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 6 de maio de 2006

Não faz sentido querer que o Estado, o governo, a classe política tenham um nível de moralidade mais elevado que o de seus fiscais e críticos – os intelectuais e a mídia.

Ninguém jamais refutou a tese de Reinhold Niebuhr, exposta em Moral Man and Immoral Society, de que a sociedade e sua representação estatal se permitem necessariamente condutas que, no indivíduo, seriam condenadas como imorais.

O crítico que se ergue contra a corrupção estatal tem portanto a obrigação de ser mais exigente para consigo próprio do que para com o objeto da sua crítica.

No Brasil, a maior prova da imoralidade geral não é o sucesso da máquina de corrupção petista: é a presunção de impecabilidade angélica com que aqueles que ajudaram a construi-la falam contra ela no tom de vítimas inocentes e não no de cúmplices arrependidos.

O primeiro passo para a institucionalização do gangsterismo estatal neste país foi a destruição da moral tradicional e sua substituição pelo aglomerado turvo de slogans e casuísmos politicamente corretos que, por vazios e amoldáveis às conveniências táticas do momento, só servem mesmo é para concentrar o poder nas mãos dos mais cínicos e despudorados.

Quando as noções simples de veracidade, honestidade e sinceridade são neutralizadas como meras construções ideológicas e em lugar delas se consagram fetiches verbais hipnóticos como “justiça social”, “inclusão”, “diversidade”, que mais se pode esperar senão a confusão geral das consciências e a ascensão irrefreável da vigarice?

E como evitar o embotamento moral, quando duas gerações de estudantes são vampirizados por professores insanos, que, após ter proclamado a total inexistência da verdade, saem no instante seguinte arrogando-se a credibilidade absoluta do discurso veraz e reprimindo como “autoritária” qualquer veleidade de enxergar nisso uma contradição?

Quem, entre os jornalistas e intelectuais, pode honestamente dizer que não contribuiu para essa imbecilização em massa, celebrada ao longo dos anos como um avanço meritório da “consciência crítica”?

Quem, entre eles, reconhece agora no descalabro petista o fruto das suas próprias ações, em vez de ocultar seu passado sob feiúras alheias que já não se pode mesmo camuflar?

Quando no começo dos anos 90 se lançou entre fanfarras triunfais a “Campanha pela Ética na Política”, que fui o único a denunciar como ardil maquiavélico inventado para prostituir a ética no leito da política, o destino do Brasil estava selado: beatificar os piores, erigi-los em modelos de boa conduta, projetar neles todas as esperanças de uma transfiguração redentora da nacionalidade e por fim entregar-lhes uma dose de poder maior que a de qualquer grupo político ao longo de toda a nossa História.

Quem, na época em que os Dirceus e Mercadantes brilhavam como apóstolos da virtude no picadeiro das CPIs, parou para examinar a moralidade intrínseca das suas acusações, não raro alimentadas pelo aparato de espionagem petista cuja mera existência já era então a ilegalidade estabelecida, a usurpação das prerrogativas do Estado pelo Partido-Príncipe auto-incumbido de exercer, nas palavras de seu guru Antonio Gramsci, “a autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”?

Quem, sabendo das ligações entre esse partido e as Farc, não julgou legítimo e moralmente defensável ocultá-las para não dar força aos Malufs e Magalhães, aos objetos de ódio pré-selecionados para servir de vítimas sacrificiais no grande espetáculo do rito purificador, oficiado entre discretos risisinhos e piscadelas de olho por um clero de espertalhões?

Muitos, hoje, apontam o dedo contra a corrupção governamental. Poucos, entre eles, são menos culpados dela do que o próprio Lula. Mais raros ainda os que têm a hombridade de limpar-se antes de mostrar a sujeira dos outros.

O teor geral da polêmica antipetista hoje em dia não prenuncia nenhuma restauração da moralidade, apenas mais um remake da farsa costumeira. Aguardem o pior, e não serão decepcionados.

Chuteiras imortais

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 20 de abril de 2006

Acusado pelo sr. Diogo Mainardi de dar uma força aos parentes para a conquista de altos cargos na burocracia federal, o jornalista Franklin Martins, seqüestrador aposentado, protegido de Fidel Castro e queridinho do establishment petista, saiu-se com uma aposta: “Se qualquer um dos 81 senadores ou senadoras vier a público afirmar que o procurei pedindo apoio para o meu irmão, pendurarei as chuteiras e irei fazer outra coisa na vida.” Caso contrário, exige o indignado desafiante, o perdedor Mainardi é que deverá abdicar de sua coluna em “Veja” e reduzir-se a um silêncio contrito.

É uma maravilha, não é mesmo? Senadores inocentes não hão de confessar o que não fizeram; e os culpados, se existem, não vão querer jogar fora a própria reputação só pelo prazer de arruinar junto a de um jornalista e exaltar a de outro. Pior: quem ama o sr. Martins ao ponto de arriscar-se a lhe prestar um favor ilícito não pode estar também apaixonado pelo seu inimigo Mainardi ao ponto de cometer suicídio político por ele. A probabilidade de que alguma confissão apareça, quer venha de culpados ou inocentes, é portanto de exatamente zero por cento. O sr. Martins não é bobo o suficiente para não perceber isso. Não sei se ele assediou senadores com pedidos de empregos para o irmão, a esposa, a sogra ou o tetravô. Mas sei que, no esforço de fugir a essa acusação, ele se revelou é uma boa bisca. Apostando as chuteiras num teste premeditadamente inócuo, ele está seguro de poder calçá-las no dia seguinte e ainda gabar-se de ter feito o adversário de trouxa. O desafio que ele lançou ao sr. Marnardi não é um desafio, não é sequer um blefe: é uma simulação de blefe, concebida para enganar pessoas afetadas de déficit crônico de atenção. O cálculo psicológico por trás desse golpe de teatro é tão malicioso, tão perverso, que ele depõe contra a idoneidade do sr. Martins mais do que poderiam fazê-lo mil colunas de mil Diogos Mainardis.

No entanto, não é impossível que ele tenha concebido o engodo sem intuito conscientemente maligno. Talvez ache até que foi honesto. Cabeça de esquerdista é assim: uma vez que você aboliu todos os princípios morais consagrados pela civilização, substituindo a clareza implacável das suas deduções por uma maçaroca obscura de slogans politicamente corretos, todos os arranjos casuísticos são possíveis: você está pronto para se tornar um príncipe da embromação e ainda acreditar que desonestos são os outros. Quando um sujeito está intelectualmente persuadido de que o bem e o mal são apenas construções ideológicas mas ao mesmo tempo insiste em cultivar o sentimento reconfortante de que está do lado do bem absoluto, não há mais limites para o exercício do auto-engano, que culmina quando o mentiroso passa a acreditar nas próprias mentiras ao ponto de emocionar-se com elas. A essência da moral esquerdista é a auto-persuasão histérica.

O caso do sr. Martins, em si mesmo, não significa nada, e sua desavença com o sr. Mainardi é tão decisiva para o futuro da humanidade quanto uma trombada de velocípedes num playground. O que torna o sr. Martins interessante é a tipicidade da sua forma mentis, cujos similares, hoje, superlotam as universidades, as redações, a burocracia filantrópica e a rede internacional de ONGs ativistas. Por enquanto, a lógica moral antiga, negada em palavras, permanece vigente no fundo, como um referencial semiconsciente a que até seus detratores mais ferozes voltam a apelar quando precisam. Em uma ou duas gerações, ela terá desaparecido por completo da memória geral: o casuísmo politicamente correto usurpará o prestígio do Decálogo, da ética aristotélica, do Direito Romano e do Código de Hamurabi. A mentira indignada, apoiada na vociferação da militância organizada, será a única autoridade moral restante. Então será preciso escolher entre ela e o caos integral. Nesse dia, as chuteiras de Franklin Martins se tornarão monumentos à honestidade.

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