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Doméstica apaixonada

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 05 de junho de 2008

Totalmente derrotado no seu esforço de ocultar por dezessete anos as atividades do Foro de São Paulo, o grande jornal do sr. Otávio Frias dedica-se agora ao gerenciamento de danos, mas, movido por uma espécie de altruísmo mórbido, cuida menos das suas próprias feridas que das do partido governante — aquele mesmo que diariamente o xinga de burguês e vendido.

“PT barrou as Farc em foro de esquerda em São Paulo”, proclama o volumoso diário, no tom de quem trouxesse a prova cabal de que as ligações entre Lula e a narcoguerrilha colombiana são uma sórdida invencionice da direita, isto é, deste humilde comentarista.

Mas, como geralmente ocorre nessas ocasiões, o texto da matéria desmente o título, mostrando que se trata apenas de mais uma aposta puerilmente maquiavélica na desatenção do leitor.

A prova que ali se anuncia consiste no depoimento de um advogado colombiano e professor da PUC-SP, Pietro Lora Alarcón. Este conta que foi procurado pelo representante das Farc, Olivério Medina, o qual, desejando participar do grupo de trabalho do Foro de São Paulo em julho de 2005, pedia que o advogado apresentasse uma solicitação formal, em seu nome, à secretaria executiva da entidade. Mas a secretaria – prossegue o depoente – recusou a autorização. O homem das Farc ficou de fora. A mensagem é clara: o PT, partido legalista e avesso à violência, abomina o terrorismo e não quer saber de conversa com narcotraficantes.

Infelizmente, o sentido dos fatos é o inverso disso. Logo antes da conversa entre Medina e Lora Alarcón, a revista Veja havia publicado as declarações do mesmo Medina, de que trouxera cinco milhões de dólares das Farc para a campanha eleitoral de Lula. O escândalo foi tamanho que, por uns instantes, o impeachment do presidente pareceu inevitável. Numa hora dessas, o PT precisaria ser totalmente louco para permitir que seus líderes aparecessem de braços dados com o alegado portador da propina, numa reunião que, para piorar as coisas, não se realizava em Havana nem em Manágua, mas na capital paulista, bem diante dos olhos da intrometida Veja.

Para que, ademais, as Farc iriam pedir autorização especial ao PT para entrar numa reunião do Foro, se já participavam desses encontros fazia mais de uma década sem autorização de ninguém? Quem precisava de autorização não eram as Farc, bem-vindas por natureza e por hábito, mas a pessoa do sr. Olivério Medina. Chamar esse indivíduo de batata quente, àquela altura, seria eufemismo: o homem era uma granada de mão sem pino. O PT, ao vetar o ingresso de semelhante explosivo no recinto, não o fez, obviamente, movido pela repulsa às atividades criminosas das Farc – às quais prometera solidariedade integral na assembléia geral do Foro em 2001 –, mas pela urgência manifesta de recolocar o pino no lugar, o mais discretamente possível.

As provas de que as relações PT-Farc continuaram íntimas e afetuosas são abundantes. Eis três, só a título de amostra:

1. Em março de 2006, o governo concedeu asilo político ao sr. Medina, antes mesmo que qualquer investigação séria se realizasse sobre o caso dos 5 milhões.

2. Conforme denunciou o colunista Diogo Mainardi, em 29 de dezembro de 2006 a esposa do sr. Medina foi premiada com um cargo de oficial de gabinete num dos ministérios de Lula.

3. Em dezembro de 2007, as Farc enviam à assembléia geral do Foro um documento em que se derramam em elogios ao PT, reconhecendo que, como fundador dessa entidade, o partido do sr. Lula salvou da extinção o movimento comunista na América Latina.

Produzir do nada uma aparência de hostilidade entre PT e Farc é gentileza inútil que só serve para desmoralizar mais um pouco o jornal do sr. Frias, sem lhe dar em troca nem mesmo a gratidão dos esquerdistas. Mas o amor da Folha a essas criaturas é sem fim. Quanto mais a odeiam e desprezam, mais ela insiste em lhes prestar humildes serviços de faxina, como doméstica apaixonada pelo patrão que a maltrata.

1968, o embuste que não terminou

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 29 de maio de 2008

Se a celebração das seis décadas de existência do Estado de Israel vem consistindo essencialmente em culpá-lo por todo o mal que lhe fazem e em desejar com fervor a sua morte próxima, a dos 40 anos das rebeliões estudantis de 1968 não tem feito outra coisa senão tomar como realidade, a priori e sem o mínimo exame crítico, a auto-interpretação lisonjeira que seus líderes fizeram desse movimento na época da sua eclosão.

Uma das poucas vozes dissonantes foi Nicolas Sarkozy, que em discurso recente afirmou:

O Maio de 68 impôs o relativismo moral e intelectual a todos nós. Impôs a idéia de que não existia mais qualquer diferença entre bom e mau, verdade e falsidade, beleza e feiúra. Sua herança introduziu o cinismo na sociedade e na política, ajudando a enfraquecer a moralidade do capitalismo, a preparar o terreno para o inescrupuloso capitalismo das regalias e das proteções para executivos velhacos.”

Reagindo com indignação a essas palavras, o ativista-historiador Tariq Ali – ele mesmo um dos agitadores de 1968 – exclama: “Não me venha com essa, Sarkozy!”. E, imaginando brandir contra o presidente francês argumentos irrespondíveis, pergunta: “Então, nós é que somos responsáveis pela crise dosubprime , pelos políticos corruptos, pela desregulamentação, pela ditadura do livre mercado, pela cultura infestada por um oportunismo descarado, pela Enron, pela Conrad Black, entre outras coisas?”

Mas a resposta a essa pergunta é, incontornavelmente, “sim”. O movimento de 1968, que na verdade começou em Harvard em 1967, marcou a conversão mundial da esquerda aos cânones da “revolução cultural” preconizada por Georg Lukács, Antonio Gramsci e os frankfurtianos. A ambição da militância, daí por diante, já não era tomar o poder, nem muito menos implantar o socialismo. Estas metas eram adiadas para depois de conquistado o objetivo primordial: destruir a civilização do Ocidente, corroer até à extinção completa as bases culturais e morais sobre as quais tinha se erigido o capitalismo. Ora, o que é o mais bem sucedido sistema econômico, quando amputado de seus fundamentos civilizacionais e reduzido à pura mecânica das leis de mercado? É um mundo de riqueza sem alma, um inferno dourado. Os revolucionários de 1968 produziram esse efeito por três vias e em três fronts:

(1) Espalhados na mídia e nas instituições de cultura, empreenderam a agressão direta, pertinaz e brutal a todos os valores e símbolos mais veneráveis da civilização e a demolição deliberada do sistema de ensino, onde as aulas de grego e latim foram substituídas por seminários de sexo anal.

(2) Infiltrados no meio empresarial como técnicos e consultores, persuadiram os capitalistas a “modernizar-se”, mandando às favas as exigências da moral tradicional e passando a agir segundo o modelo deformado do argentário sem escrúpulos. A caricatura marxista do empresariado tornou-se realidade, não raro encarnada pelos próprios homens de 1968, cuja posadíssima conversão à livre-empresa vinha acompanhada de uma ênfase cínica na eficiência amoral do sistema, propaganda irônica que só fazia ressaltar, de maneira implícita mas por isto mesmo ainda mais contundente, a superioridade moral do socialismo injustamente derrotado pelo mundo mau.

(3) Atuando como líderes e porta-vozes de movimentos sociais, condenavam os efeitos de suas próprias ações como se elas não fossem obra deles e sim de uma abstração hedionda, “o capitalismo”, e simultaneamente exploravam a nostalgia do universo cultural destruído, cooptando de volta os velhos valores e símbolos civilizacionais, até mesmo os religiosos, esvaziando-os de seu sentido originário e reduzindo-os a slogans da propaganda anticapitalista.

Com essa tripla operação, adquiriram o simulacro terrivelmente convincente de autoridade que até hoje aufere lucros morais de seus próprios crimes, debitando-os na conta da burguesia sonsa que se deixa intoxicar pelo seu discurso.

Ad aeternum

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 22 de maio de 2008

Ao longo dos tempos, a militância socialista usou de dois meios preferenciais de luta, juntos ou alternados: o assassinato e o roubo, ou, mais genericamente, a crueldade e o embuste. A primeira fez as glórias da esquerda cubana, o segundo as da brasileira.

Nenhum governo da América Latina pôde jamais competir com o de Fidel Castro em brutalidade, nem com o de Lula em safadeza. O primeiro ficou no poder por quarenta anos enviando cem mil cubanos ao outro mundo e mais cem mil para a cadeia. O segundo mantém-se no alto das pesquisas conservando fora da cadeia todos os que deveriam estar nela — uma longa lista que começa nos ministros que falsificam documentos para legitimar a fragmentação do território nacional, passa pelos familiares do presidente transfigurados em milionários da noite para o dia e culmina nos terroristas estrangeiros aos quais o partido do sr. presidente prometeu e jamais negou solidariedade.

Em qualquer democracia normal, um só dos crimes desse governo – o laudo falso em prol da doação de Roraima, por exemplo – bastaria para levar o presidente ao impeachment e seus assessores ao cárcere. Aqui, centenas desses episódios acumulados provocam, no máximo, uns resmungos preguiçosos, umas gesticulações de vago descontentamento, umas simulações pusilânimes de protesto cívico e, coroando tudo, a firme decisão de não fazer nada.

Nada? Estou sendo injusto. As elites falantes “dêfte paíf” fazem alguma coisa, e até uma coisa revolucionária, inédita: chamam de “normalidade institucional” o direito concedido a uma agremiação partidária de roubar o quanto queira, de distribuir a seus cúmplices estrangeiros o patrimônio nacional, de tratar como parceiros e amigos os terroristas que armam e adestram os quadrilheiros locais para que espalhem o terror nas ruas, de destruir a cultura nacional no altar da propaganda comunista e do mais vulgar show business politicamente conveniente, de abafar investigações e censurar notícias, de usar a burocracia estatal como secretaria do partido, de ofender toda semana os sentimentos morais e religiosos da população, de gastar dinheiro público numa orgia carnavalesca onde a esposa de um ministro se esfrega despudoradamente num governador e respectiva digníssima, etc. etc. etc.

Cada um desses episódios daria um livro, como o Mensalão deu “O Chefe”, de Ivo Patarra ( http://www.escandalodomensalao.com.br/ ). Todos juntos formariam uma enciclopédia da patifaria como jamais se viu no mundo. Mas, como se convencionou que a soma desses descalabros constitui a “normalidade institucional”, toda alternativa ao presente estado de coisas parece medonha ameaça de golpe, hipótese que inspira um sacrossanto horror e conduz inevitavelmente à conclusão de que o lulismo é uma fatalidade cósmica inelutável: ruim com ele, pior sem ele. E assim vão se passando os dias, o Chefe cada vez mais poderoso, os políticos “de oposição” cada vez mais colaboracionistas, a elite cada vez mais acanalhada e subserviente, a “sociedade civil” cada vez mais atrelada às ONGs esquerdistas bilionárias, a vontade popular cada vez mais débil, mais fácil de desviar contra alvos fictícios e bodes expiatórios, entre os quais ela própria.

O sr. Lula diz que ele e José Serra inauguraram um novo modo de fazer política. É verdade, com a ressalva de que ele não falava de duas pessoas, mas de dois partidos, gêmeos nascidos do ventre da USP. E esse novo modo consiste no seguinte acordo: Nós dois vamos à ONU, pegamos cada um uma cópia do receituário globalista para a destruição das soberanias nacionais e da civilização judaico-cristã e o aplicamos no Brasil à risca, mas fazendo de conta que seguimos duas políticas diferentes e trocando uns tapinhas de vez em quando. Como prêmio, a mídia internacional dirá que somos maravilhosos e exibirá ao mundo nossa alternância no governo como prova de maturidade democrática. Os brasileiros, idiotas, dirão que é “normalidade institucional” e, temendo rompê-la, nos manterão no poder ad aeternum .

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