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Puns filosóficos

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 15 de maio de 2008

Nos vários confrontos polêmicos que tive no Brasil – e, à distância, tenho ainda –, jamais encontrei um único opinador com menos de oitenta anos que tivesse o senso da verdade, mesmo em dose mínima. O que tinham, isto sim, era o apego devoto e crédulo, menos a certas opiniões do que a certas frases, às quais conferiam o título prestigioso de “verdades”, sem jamais ter tido sequer a preocupação de averiguar se o que entendiam por esse termo era algo existente na realidade ou apenas um símbolo da afeição que sentiam por si mesmos e pelo seu grupo de referência.

Sei que pareço exagerar, mas digo apenas o que vi. E, descontado um ou outro octogenário, não vi, mesmo entre os melhores e mais sensatos, de todos os partidos e correntes de opinião, um debatedor sequer que tivesse o sentimento, a vivência, a consciência profunda de que a verdade não é um direito natural, sobretudo não é um direito da juventude barulhenta, mas é uma conquista longa, dolorosa, imperfeita e fácil de perder. O amor à verdade, a busca da verdade, simplesmente não fazem parte da cultura brasileira atual. “Chercher en gémissant” é uma idéia que não ocorre aos nossos compatriotas há pelo menos duas gerações.

Três fatos chamaram a minha atenção para isso.

Primeiro: os sujeitos que menos toleravam objeções eram precisamente aqueles que mais proclamavam a relatividade de tudo e a inexistência de verdades absolutas. O mecanismo mental aí subentendido de maneira quase sempre inconsciente era no entanto simples e claro: livre de quaisquer exigências superiores que pudessem travá-lo, cada um desses fulanos tornava-se ele próprio o único absoluto. Discutir com deuses, os senhores compreendem, é cansativo e inútil.

Segundo: quando reconheciam a existência de “verdades”, apelavam no máximo ao testemunho da “ciência”, com a credulidade de autênticos patetas que ignoravam o caráter altamente problemático de qualquer “verdade científica” e, para dizer o português claro, nem tinham jamais pensado nisso. O símbolo “ciência” havia se tornado, para estas criaturas, um amuleto contra a complexidade do real.

Terceiro: invariavelmente, o fato de que eu houvesse mudado de idéia quanto a um ponto ou outro me era atirado na cara como prova de minha inconsistência e desonestidade, como se persistir no erro comprovado fosse o mais elevado mérito intelectual.

Não existe busca da verdade se primeiro você não fez um esforço sério de compreender o que é a verdade em si mesma, o que é essa qualidade geral misteriosa que, anexada a certas afirmações, tem o dom de as tornar dignas de reverência. Não me refiro a nenhuma especulação lógica sobre o conceito da verdade, especulação que também pode ser conduzida por meios meramente formais e sem nenhum senso da verdade. Refiro-me, isto sim, à investigação anamnética – obrigatória para todos que pretendam opinar em público –, sobre as primeiras experiências que lhes trouxeram o conhecimento direto da distinção entre verdade e mentira, entre verdade e erro. Para quase todo ser humano, essa experiência é a de ocultar uma culpa que ele sabe que tem ou a de ser acusado de uma culpa que ele sabe que não tem. A primeira noção da verdade é a da sinceridade de um indivíduo para consigo mesmo, quando toma consciência de seus próprios atos sem poder apelar ao testemunho de ninguém mais. Todas as especulações filosóficas posteriores sobre a verdade têm de partir daí. Só respeitamos a verdade porque alguma vez a possuímos e tivemos nela nossa única garantia, sem nenhum apoio exterior, e porque daí obtivemos a noção da ordem divina, transcendente a toda autoridade humana. Todo uso da palavra “verdade” que não tenha como referência a memória viva dessa experiência primordial é apenas um flatus vocis, um pum filosófico.

A arte de soltar esses puns é a única coisa que há muito tempo os brasileiros vêm aprendendo nas universidades.

Influências discretas

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 8 de maio de 2008

Quando o pintor e poeta suíço Frithjof Schuon (1907-1998) voltou do Oriente nos anos 40, transfigurado em mestre supremo de uma das mais influentes organizações esotéricas muçulmanas e anunciando que iria islamizar a Europa, deu a clara impressão de que estava completamente louco. Hoje convém examinar com humildade as suas palavras e o curso das suas ações, cuja eficiência avassaladora contrasta com a total discrição com que foram empreendidas.

Desde logo, a criação da tariqa (loja iniciática islâmica) de Schuon em Lausanne foi saudada pelo escritor esotérico René Guénon (1886-1951) como o único resultado promissor obtido pelos seus próprios esforços de quatro décadas. Isso mostra claramente o sentido desses esforços e, malgrado a posterior ruptura entre Guénon e Schuon, evidencia a perfeita continuidade da obra desses dois esoteristas, cujos discípulos respectivos hoje em dia preferem odiar-se mutuamente em vez de celebrar a vitória comum sobre uma Europa espiritualmente debilitada.

Na década de 20, Guénon, autor de análises magistrais sobre a decadência do Ocidente europeu, havia concluído que só três caminhos se ofereciam a essa civilização: a queda na barbárie, a restauração da Igreja católica ou a islamização. Quando pronunciou aquelas palavras sobre Frithjof Schuon, ele já havia desistido da segunda alternativa. O fiasco do Concílio Vaticano II, cujas aparências os papas em vão tentam ainda salvar, veio a provar que seu diagnóstico, em linhas gerais, estava certo.

A Europa radicalmente descristianizada é hoje o palco de uma concorrência aberta entre a barbárie e o islamismo. Não há terceira via, aparentemente (“civilização laica” é piada). A possibilidade de um resgate da opção cristã depende inteiramente da influência americana ou da dedicação admirável de padres e pastores orientais e africanos que, num giro paradoxal da História, voltam para tentar recatequizar o povo que os cristianizou.

A ação de personagens como Guénon e Schuon passa despercebida à mídia, aos analistas políticos e aos “intelectuais” em geral, que têm os olhos fixados hipnoticamente na superfície vistosa dos acontecimentos. Mas sem ela a “ocupação por dentro” por meio da imigração teria permanecido inócua, por falta das condições culturais que desarmaram a elite intelectual e política européia. Guénon e Schuon muito contribuíram para criá-las, subjugando as camadas mais altas e circunspectas dessa elite ao culto da superioridade intelectual do Oriente em todas as áreas decisivas, fora as ciências naturais e a tecnologia.

Guénon assinava seus primeiros artigos com o pseudônimo Sphynx (Esfinge), denotando que seus leitores não tinham opção senão aproveitar inteligentemente suas lições ou deixar-se dominar por elas sem entendê-las. Num único país europeu essas lições foram meditadas com seriedade por pensadores independentes: a Romênia. Quando morei em Bucareste, não encontrei ali um só intelectual eminente que não tivesse uma compreensão profunda e crítica da obra de Guénon.

No resto da Europa, o que se viu foi a alternância entre a recusa incompreensiva e a submissão devota, incluindo um número significativo de conversões secretas ao islã e a arregimentação de muitos intelectuais e líderes – entre eles o futuro rei da Inglaterra – no esquema de proteção estatal ao expansionismo islâmico. Não por coincidência, a Romênia é um dos raros países europeus onde a penetração muçulmana é irrisória.

Para fazer uma idéia da força da influência sutil de Guénon e Schuon, basta saber que este último interferiu diretamente na produção da crise entre monsenhor Lefèvre e o Vaticano, em 1976, e até hoje os historiadores católicos – sejam progressistas ou conservadores – nem se deram a mínima conta disso.

Sei que escrevi este artigo para poucos leitores e que, destes, alguns dos que podem mais ou menos compreendê-lo vão seguramente detestá-lo. Mas há coisas que é preciso dizer só para, no futuro, não ser acusado de dar testemunho tardio.

O mundo brasilianiza-se

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 01 de maio de 2008

Outro dia, como um cidadão da República Checa me explicasse que tudo por lá é bagunça, corrupção e sem-vergonhice, mostrei-lhe duas fotos: na primeira o nosso ministro da Cultura beijava na boca o cantor Lulu Santos, na segunda a esposa do mesmo ministro se esfregava no governador da Bahia e respectiva primeira-dama – tudo isso em público, e subsidiado pelo dinheiro do contribuinte.

Meu interlocutor arregalou os olhos e deu-se por vencido:

— Lá em Praga não tem disso não.

Mais uma vez a Europa se curvava ante o Brasil. Não satisfeito com a humilhação do concorrente, expliquei-lhe o Mensalão, o assassinato de Celso Daniel, o financiamento estatal da destruição de fazendas, os quilombolas, as repúblicas indígenas emergentes, os cinqüenta mil homicídios anuais, o analfabetismo universitário, o Dicionário Crítico do Pensamento da Direita , a pedagogia do prof. Carlão, os progressos do narcotráfico, o pacto PT-Farc assinado no Foro de São Paulo, a fortuna do Lulinha e, para completar, os 69 por cento de aprovação de tudo isso.

O homem baixou a cabeça e reconheceu que a República Checa é uma filial da Ordem Franciscana.

— Afinal, a corrupção por lá vem toda de fora, dos russos.

— A nossa, não. É nacional legítima.

Sim, meus amigos, essa é a verdade. Não se deixem enganar por sinonímias ilusórias. Termos como “corrupção”, “decadência”, “esculhambação”, têm equivalentes em todas as línguas. Mas nomes de fatos e qualidades não vêm acompanhados dos respectivos índices quantitativos. O que singulariza a desordem brasileira não se expressa em palavras, mas em números. É a dimensão, o tamanho descomunal, inalcançável à imaginação da platéia estrangeira, cujo cérebro automaticamente rejeita a estranheza insuportável, reduzindo o fenômeno às proporções daquilo que conhece e achando que na sua terra tudo se passa como em Brasília e Catolé do Rocha.

Só a exposição detalhada permite captar a diferença. E aí não há como escapar à conclusão: somos insuperáveis. Embora sob um aspecto ou outro possamos levar desvantagem, no conjunto a depravação nacional é um fenômeno inédito, incatalogável, sem similares na história do mundo. Nenhuma nação jamais consentiu em tolerar o intolerável com aquele misto de indiferença búdica, amoralismo cínico e auto-satisfação masoquista que o Brasil chama de “normalidade institucional”.

Mas algo me diz que nossos dias de glória estão contados. Aqui e ali, aos poucos, vão despontando indícios de que certas condutas, antes julgadas inaceitáveis fora das nossas fronteiras, vão conquistando espaço nas sociedades ditas avançadas, aí encontrando a mesma receptividade cúmplice que tanto as fez prosperar no Brasil.

Na sua breve carreira de pré-candidato, o sr. Barack Obama já contou, comprovadamente, mais de sessenta mentiras só sobre a sua biografia (excluídas as mentiras políticas). Ele mente sobre suas origens, sobre sua família, sobre sua educação, sobre seus amigos, sobre o pastor da sua igreja. Nenhum político faz isso. Todos são verazes nas miudezas para poder falsificar melhor o conjunto. Obama mente no atacado e no varejo, no todo e nos detalhes, até em detalhes óbvios que não levam meia hora para ser desmentidos. Chamá-lo de mentiroso seria eufemismo. Ele é uma farsa total, uma palhaçada completa. É um intrujão desprezível que em situações normais alcançaria sucesso, no máximo, como locutor de rádio interiorana. Sua simples candidatura – para não falar da possibilidade da sua eleição – mostra que a capacidade de julgamento do eleitorado americano desceu abaixo do nível do ridículo: está beirando o tragicômico. Quanto mais se comprova que o sujeito é postiço, mais devotos se tornam os seus seguidores. Cada vez que ele é desmascarado, mais o aplaudem. Já vão para oitenta por cento os democratas que juram votar nele. É um efeito que, até algum tempo atrás, só se observava num único país do mundo. O bom e velho país dos otários que, para não dar o braço a torcer, fingem admirar o malandro que os engana.

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