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Sobre o ensino da filosofia

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 25 de abril de 2002

Se você examinar algum manual de introdução a Platão, a Aristóteles ou a qualquer outro filósofo verá que as preocupações essenciais de seus autores são três. Primeira, reconstituir o quanto possível a unidade sistemática do pensamento do filósofo, expondo-a numa ordem lógica mais direta do que aquela que se encontra nos seus escritos. Segunda, assinalar as mudanças de rumo eventualmente observadas na evolução intelectual do filósofo em direção a essa unidade. Terceira, relacionar de algum modo o pensamento dele à cultura e à sociedade do “seu tempo”. O sistema filosófico é assim enfocado sob três aspectos: sua estrutura lógica, a história da sua formação e suas raízes no ambiente humano em torno.

Essas três coisas são importantes, mas há um porém: você pode estudá-las pelo resto dos seus dias e não chegar a compreender grande coisa da filosofia do filósofo, ao menos tal como ele próprio a compreendia.

O problema é que essas modalidades de estudo tomam a filosofia de fulano ou beltrano como objeto de sua investigação, ao passo que nenhuma filosofia surgiu como objeto de investigação de si própria e sim como canal para a investigação de alguma outra coisa.

Aristóteles jamais estudou “filosofia de Aristóteles”. Estudou os meteoros, a fisiologia animal, o funcionamento da psique, a estrutura do discurso, os princípios da validade do saber, a organização das sociedades políticas, as metas da vida humana, a constituição do universo e a natureza de Deus.

Se você não olhar diretamente para essas coisas, tirando suas próprias conclusões e comparando-as com as de Aristóteles, pouco entenderá destas últimas. Sua visão de Aristóteles será tão falseada quanto a de alguém que quisesse julgar a narração de uma partida de futebol sem levar em conta se ela corresponde ou não ao que efetivamente se passou no campo.

Toda filosofia, afinal, não é mais que a exposição de um conjunto de atos intelectivos realizados por um indivíduo que queria saber alguma coisa sobre algo que, decididamente, não era a sua própria obra filosófica. Só a revivescência pessoal desses atos, com foco nos mesmos alvos a que se dirigiam originariamente, permite apreender a filosofia in statu nascendi, isto é, não como produto cultural acabado, estratificado, congelado, mas como atividade real e vivente da inteligência humana no confronto com os dados da realidade.

Fora disso, você pode aprender algo sobre filosofia, mas não aprender filosofia.

É claro que, de vez em quando, será preciso retornar dos objetos da filosofia à própria filosofia tomada como objeto, para averiguar se as conclusões do filósofo conferem com outras conclusões enunciadas por ele em outras partes do seu sistema, ou se estão em acordo ou desacordo com as teorias de outros filósofos. Mas é evidente que esta é uma atividade apenas de controle, de importância derivada e secundária. Esse controle é como olhar no espelho retrovisor: é uma coisa útil para você dirigir um automóvel, mas ninguém pode dirigir um automóvel mantendo a atenção fixa no espelho retrovisor o tempo todo, sem nunca olhar para a frente.

Ou a filosofia é um saber, ou é apenas uma atividade lúdica sem propósito.

Se ela é um saber, é um saber a propósito de algum objeto que, evidentemente, não pode ser somente ela mesma.

Os antigos estavam mais conscientes disso do que os modernos estudiosos de filosofia. Por isso preocupavam-se pouco com os sistemas filosóficos enquanto tais – seja considerados do ponto de vista estrutural, seja evolutivo, seja cultural e sociológico -, mas buscavam sobretudo testar, no confronto com os objetos, a veracidade ou a falsidade do que esses sistemas diziam a respeito. Esse método pode parecer ingênuo e primitivo desde o ponto de vista das técnicas eruditas altamente sofisticadas que hoje se empregam para estudar filosofia. Mas nenhum acúmulo de técnicas e de sofisticação pode substituir uma atitude cognitiva apropriada ao objeto.

Essa arte, esse talento de ajustar o foco é exatamente o que vem se perdendo na sofisticação crescente das técnicas, e que os antigos possuíam em abundância. Por isso é que, no meio de tantos estudos que a cada ano se produzem sobre Aristóteles nas universidades do mundo, pouquíssimos são de leitura tão proveitosa quanto os velhos comentários de Sto. Tomás, de Duns Scot ou de Avicena.

Não deixa de ser curioso que uma das críticas convencionais ao universo intelectual da Idade Média consista em chamá-lo de “livresco”. Não há nada mais livresco do que tomar uma obra filosófica como objeto em vez de olhar para as realidades de que ela fala – e essa inversão de foco é a definição mesma de muitos dos métodos aprimoradíssimos que os modernos substituíram aos medievais.

Ciência e linguagem

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 11 de abril de 2002

Que idéia poderia fazer das obras de Shakespeare aquele que as concebesse como mero fato lingüístico, fazendo total abstração das qualidades que as tornam dignas de atenção? Que conhecimento teria da realidade de S. Francisco e de Hitler aquele que os apreendesse somente como dados históricos, deixando totalmente de lado as qualidades que a nossos olhos tornam o primeiro amável e o segundo temível?

Tal é a idéia que faz da espécie humana o pensador que acredita poder concebê-la somente como fato da natureza, omitindo por completo o valor que, a seus próprios olhos, tem a sua condição pessoal de homem e não de bicho. A idéia do homem como puro animal é apenas uma analogia, uma figura de linguagem para uso em determinados grêmios profissionais, e não um conceito rigoroso obtido da experiência. Nenhum ser humano pode, com efeito, gabar-se de ter tido jamais a experiência concreta de um seu semelhante como animal puro e simples, abstraído das qualidades que tornam a sua vida mais digna de ser preservada do que, por exemplo, a de um sapo. Esse homem-animal é mera suposição imaginativa, obtida por exclusão mental de traços que, na experiência, vêm sempre inclusos e jamais faltantes. Ele é, admito, o homem da biologia, mas a biologia não tem a mínima autoridade para decretar que esse é o homem real, já que ela começa, precisamente, por excluir dele, considerado enquanto seu objeto de estudo, tudo o que não possa reduzir-se de algum modo à animalidade, e nenhuma ciência tem meios legítimos para se pronunciar sobre aquilo que a priori, e na sua definição mesma, está excluído do seu domínio de observação estrita. Mesmo quando, atendo-se rigorosamente aos limites do seu campo, ela aí encontre ou pretenda encontrar algum princípio de “explicação” para aquilo que está para além dele – como por exemplo a etologia “explica” certas condutas humanas a partir de condutas animais -, essa explicação jamais terá, logicamente falando, validade cognitiva superior à de uma simples analogia, de uma similitude às vezes bem longínqua e forçada.

Um exemplo característico são as teorias que pretendem explicar as guerras humanas pela agressividade animal, sem ter em conta o fato bem conhecido de que a emoção dominante do soldado em batalha não é a raiva e sim o medo – um medo que, no animal, o faria fugir em desabalada carreira em vez de avançar como o soldado humano, impelido pelo medo maior da corte marcial, da desonra, do castigo infernal ou de qualquer outro malefício abstrato completamente estranho às motivações do mais sutil dos leopardos ou do mais genial dos orangotangos.

Sim, a dura verdade é que muitos homens de ciência, ou pensadores que tomam da palavra em nome da ciência – e, entre eles, justamente aqueles que hoje em dia mais freqüentemente representam a autoridade do consenso científico nos debates públicos – estão num nível de pensamento deploravelmente primitivo, fetichista, não são sequer capazes de distinguir o concreto do abstrato, e, tirando conclusões de recortes abstrativos projetados pela sua própria mente sobre as coisas, acreditam piamente estar raciocinando sobre as coisas mesmas.

A brutal imperfeição epistemológica, a quase irracionalidade dos fundamentos cognitivos da maior parte das ciências hoje em dia contrasta miseravelmente com o volume de dados que manipulam e com a finura dos procedimentos operacionais de formalização – uma racionalidade menor e secundária – com que os articulam.

Nenhuma acumulação de dados, nenhum aperfeiçoamento lógico-formal da teoria aumentará de um átomo de validade epistemológica um edifício teórico erguido sobre conceitos imaginários, hipotéticos ou puramente convencionais.

Qualquer homem de ciência sério conhece os limites estritos do campo de validade a que podem se estender suas conclusões, mas a mosca azul dos debates públicos faz com que poucos resistam à tentação de extrair cosmovisões inteiras – se não teologias inteiras – de uns quantos dados zoológicos, genéticos ou astrofísicos.

Nenhuma ciência pode estar segura de apreender algo da “realidade” como tal quando não tem plena consciência do encaixe entre o seu domínio estrito e o mundo circundante da experiência humana direta, e esse encaixe, em cada uma das ciências conhecidas, é perfeitamente problemático, se não totalmente desconhecido.

E, se esses homens têm dificuldade até em compreender as limitações dos conceitos de base das próprias ciências que praticam, com quanto maior inabilidade não hão de manejar os conceitos muito mais abrangentes e abstratos da ontologia, da metafísica ou da teologia?

Efeitos do medo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde
, 28 de fevereiro de 2002

Nas décadas de 60 e 70, o governo de Cuba envolveu-se em sucessivos esforços de intervenção militar no Brasil, treinando guerrilheiros, fornecendo armas, dinheiro e apoio logístico, primeiro para as Ligas Camponesas, depois para as várias organizações terroristas que se formaram a partir de 1964. Isto é um ponto definitivamente comprovado da nossa História. Confirma-o o depoimento dos próprios guerrilheiros, registrado em livros de autores simpáticos ao esquerdismo, como Luís Mir e Denise Rollemberg.

O fato igualmente bem estabelecido de que a agressão haja começado em 1961 basta para impugnar, “in limine”, qualquer tentativa de legitimar a explosão da violência esquerdista pós-1964 como reação justa de facções excluídas do processo político. Bem ao contrário, o golpe militar é que foi uma resposta à ascensão de um dos movimentos revolucionários mais articulados e mais vastos já observados na história da América Latina.

Simplesmente não tem sentido classificar como vítimas de injusta perseguição política os homens que, trabalhando para um país estrangeiro, nele buscaram refúgio quando seus empreendimentos armados em território nacional fracassaram. Muitos desses atacantes integraram-se à nação cubana, tornaram-se oficiais de seus serviços de inteligência e em seguida voltaram ao Brasil como agentes camuflados de um governo estrangeiro hostil.

Tal foi o caso, precisamente, do deputado José Dirceu de Oliveira e Silva, que, graças à proteção pessoal de Raúl Castro, fez uma bela carreira no serviço secreto militar de Cuba e, ao contrário do que vem saindo na imprensa, não voltou ao Brasil só depois da anistia, mas sim muito antes disso, para reorganizar a guerrilha em crise. Esses dados, jamais desmentidos, constam do livro de Luís Mir, A Revolução Impossível.

Nada tenho, pessoalmente, contra o deputado José Dirceu, que foi meu companheiro de Partidão nos anos 60 e com quem tive durante bom tempo relações cordiais.

Odeio ter de dizer isso, mas ninguém merece indenização de um país por ter servido a seus agressores. O deputado e seus correligionários é que deveriam pagar indenização às famílias de soldados brasileiros que morreram em combate contra os agentes de Cuba. Apenas, essas famílias, diante do escândalo repetido dos prêmios dados ao inimigo, têm medo de recorrer à Justiça para fazer valer seus direitos. E quem, hoje em dia, não tem medo?

Quando o sr. José Alencar finge tranqüila superioridade, alardeando que “não devemos ter medo do comunismo” (apelo que chega ao cúmulo do “non-sense” no momento em que a guerrilha colombiana tira de vez a máscara das intenções pacíficas), só o que ele prova é que ele próprio está possuído desse medo, como um seqüestrado com “síndrome de Estocolmo”, ao ponto de se derreter em trejeitos de afeição na esperança vã de aplacar a fúria de quem o aterroriza.

É o medo, o medo geral e avassalador, que está imbecilizando este país e levando-o a aceitar como normas de boa conduta as mais cínicas exigências do sectarismo esquerdista.

É evidente que, desde o ponto de vista sectário, qualquer crime praticado a serviço da esquerda é um mérito, e qualquer boa ação que favoreça o lado contrário é um crime.

Já conhecemos essa dualidade de pesos e medidas, que dá respaldo moral à ocupação chinesa no Tibete, com seu milhão de vítimas civis até agora, enquanto se finge de escandalizada ante o revide americano aos atentados de 11 de setembro.

Já sabemos que, para um esquerdista, a simples hipótese de julgar-se a si próprio pelos mesmos padrões morais com que condena o adversário é repugnante e inadmissível “a priori”.

Já conhecemos o dogma da própria impecância essencial da esquerda, que redime antecipadamente todos os seus crimes por conta dos méritos de um futuro hipotético que ela diz representar no presente. E sabemos que essa mesma crença permite hoje aos apologistas, cúmplices e herdeiros dos regimes mais genocidas de todos os tempos apresentarem-se em público como almas limpas e puras, habilitadas por uma imensa superioridade moral a verberar com santa eloqüência os males do mundo.

Apenas, temos o direito de estranhar que mentira tão velha, tão conhecida, tão abundantemente descrita e desmascarada seja de repente imposta como critério moral oficial a todo um país, e que o seja pelas mãos de um governo que, de todos os que já tivemos, é provavelmente o que foi mais odiado e achincalhado pela esquerda.

Só o medo, o medo soberano e paralisante, pode levar um governo a descer tão baixo, abdicando de todo respeito por si mesmo.

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