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Museu de iniqüidades

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 18 de julho de 2005

Já quase acostumado aos bate-bocas medonhos entre conservadores e “liberals” na mídia americana, fico cada vez mais deprimido ao observar a pastosa uniformidade dos jornais brasileiros. É uma assembléia de cães amestrados, cada qual mais ansioso de mostrar obediência aos cânones admitidos. O que um declara, o outro repete. O que um suprime, os outros omitem. O que um aprova, os outros aplaudem. O que um condena, os outros vaiam. Felizes tempos aqueles em que pelo menos as moscas mudavam. Hoje, rodando em círculos uniformes sobre a imperturbável massa excrementícia, até elas se tornaram indiscerníveis umas das outras.

A conversação pública nesses locais tornou-se um sistema de automatismos desesperadoramente previsíveis, imunizados contra qualquer intromissão da inteligência e da verdade. Tamanha é a força entorpecente da repetição, que mesmo os fatos mais inegáveis recuam ante a homogeneidade do falatório, recolhendo-se ao buraco negro do esquecimento e da negação como se jamais tivessem acontecido.

Como é possível que tanta gente, em uníssono, jure ver na maré montante da roubalheira petista um súbito desvio de conduta, o repentino descaminho de uma congregação de almas santas infectadas, tardiamente e a contragosto, pelo contágio do poder? Pois não foi esse mesmo partido que, desde 1997, veio sendo denunciado por um de seus próprios fundadores e líderes, Paulo de Tarso Venceslau, como organização criminosa empenhada no saque obstinado e geral aos cofres públicos? Venceslau publicou suas acusações no Jornal da Tarde de 26 de maio daquele ano. A resposta do partido foi expulsá-lo e sufocar as investigações. No Rio Grande do Sul, durante o longo império petista, a safadeza alastrou-se ao ponto de gerar um processo de impeachment , do qual o governador Olívio Dutra foi literalmente salvo pelo gongo, pois tantas eram as denúncias que a Assembléia Legislativa não conseguiu terminar de apurá-las antes de encerrar-se o mandato do acusado. E todo mundo parece ter esquecido que, de todos os partidos brasileiros, o PT tem a honra macabra de ser o único que teve o seu nome envolvido num processo de homicídio, no qual, para cúmulo de horror, ao assassinato da vítima seguiram-se os de seis testemunhas. E que pode haver nisso de estranho, tendo sido essa agremiação fundada por homens de ferro, adestrados na disciplina marxista para sacrificar sua consciência moral no altar das ambições partidárias?

Qualquer jornalista capaz de varrer esses fatos para baixo do tapete, inventando um passado honroso para atenuar a feiúra presente do desempenho petista, é um criminoso, um sociopata cínico tal como aqueles a quem, por meio desse expediente, ele tenta proteger das conseqüências de suas ações. A uniformidade mesma da opinião jornalística brasileira é um fenômeno tão estranho, tão antinatural, que não poderia se produzir sem a deliberação fria de grupos organizados que se apossaram dos meios de comunicação para fazer deles, sob uma fachada de jornalismo normal, o instrumento dócil de uma prodigiosa manipulação das consciências.

Não, não digo que sejam, todos os envolvidos nessa operação, agentes petistas. Pretender isso seria ignorar na raiz o caráter informal e plástico das novas modalidades de ação esquerdista que, desde a década de 80 pelo menos, se substituíram à antiga rigidez monolítica dos partidos comunistas. Não se trata, hoje em dia, de favorecer um determinado partido, mas de assegurar, na concorrência entre várias denominações partidárias só diversas em aparência, o resultado geral sempre honroso para o esquerdismo de fundo, que deve sair não só intacto mas engrandecido da revelação de seus crimes.

Daí a diferença de tratamento nas denúncias de corrupção. Se o suspeito é direitista — ou, sem ideologia própria, pode assim ser catalogado para fins de enaltecimento da esquerda –, o ataque é geral, impiedoso e sem meias palavras, sendo os atos criminosos associados ao direitismo real ou aparente do acusado, como produtos naturais do predomínio dos seus interesses de classe sobre o belo idealismo social de seus adversários.

Se, ao contrário, o acusado é de esquerda, seus crimes, quando já não podem mais ser pura e simplesmente negados, devem ser apresentados como uma ruptura com o seu passado, uma traição a seus ideais de juventude, algo, enfim, que não deponha em nada contra o seu esquerdismo mas antes o exalte, mesmo por contraste, como a única encarnação possível do bem e da justiça.

Também não digo que todos os envolvidos nessa cachorrada tenham plena consciência do que fazem. Não é possível ter ao mesmo tempo plena consciência e falsa consciência. Antes de mentir para os outros, um homem tem de mentir muito para si mesmo até transformar a mentira na única verdade concebível – e é esse, precisamente, o mais típico e inconfundível mecanismo de funcionamento da mente esquerdista, já tão abundantemente retratado na literatura que nenhum ser humano adulto e alfabetizado tem o direito de se deixar enganar por ele sem tornar-se pessoalmente cúmplice do engodo.

Kingsley Amis, o escritor inglês que consentiu em encobrir durante décadas as piores atrocidades comunistas, veio a descrever com exemplar realismo a natureza desse mecanismo, neste parágrafo citado por seu filho Martin Amis em Koba the Dread (New York, Hyperion, 2002):

“Estamos lidando com um conflito entre sentimento e inteligência, uma forma de auto-engano voluntário na qual uma parte da mente sabe perfeitamente bem que sua crença de conjunto é falsa ou maliciosa, mas a necessidade emocional de crer é tão forte que o conhecimento permanece, por assim dizer, enquistado, isolado, impotente para influenciar as palavras ou as ações.”

Qualquer ser humano afetado por essa patologia do espírito torna-se incapaz de julgar sua própria conduta, quanto mais as dos outros. E a classe dos “formadores de opinião” no Brasil compõe-se quase que inteiramente desses indivíduos. Já é tempo de admitir que, tanto quanto deputados corruptos e senadores ladrões, eles são um perigo público.

Mas também não espanta que essa horrível deformidade tenha se espalhado como epidemia entre os jornalistas brasileiros. O domínio incontestado do esquerdismo cultural nas universidades que os formaram basta para explicar isso. A mente estudantil engendra-se na devoção a ídolos culturais que a marcam para sempre com sua influência. Para conhecer o espírito de uma geração é preciso estudar a psicologia dos líderes intelectuais cuja conduta lhe serviu de modelo. Ora, quando investigamos com certo detalhe as figuras dos mentores da esquerda mundial, principalmente das últimas décadas, encontramos entre eles um número de farsantes e vigaristas muito maior do que jamais houve em qualquer escola ou corrente de opinião ao longo de toda a história humana. E, quando falo em farsa e vigarice, não me refiro a meras idéias falsas, argumentos capciosos ou opiniões erradas. Refiro-me a fraudes no estrito sentido material e jurídico do termo: adulteração de documentos e citações, falsificação de testemunhos, invenção deliberada de episódios jamais ocorridos.

O que estou dizendo não é novidade nenhuma, a rigor. O assunto já foi muito estudado. Desde as memórias de Arthur Koestler até Intellectuals de Paul Johnson, Double Lives de Stephen Koch, e The Politics of Bad Faith de David Horowitz, a bibliografia a respeito é tão grande e de tão vasto impacto que ninguém pode ignorá-la e pretender continuar opinando responsavelmente sobre a política contemporânea. Mas o atraso brasileiro na aquisição dessas informações é enorme. Por isso um resumo geral torna-se aí de muita utilidade. Em Hoodwinked. How Intellectual Hucksters Have Hijacked American Culture (“Ludibriados. Como os camelôs intelectuais seqüestraram a cultura americana”, Nashville, TN, Nelson Current, 2005), o jornalista Jack Cashill fornece um mostruário dos episódios mais célebres de vigarice explícita entre os pop stars da esquerda. Embora o foco seja o cenário americano, as fontes européias e latino-americanas são abordadas com extensão suficiente para dar ao diagnóstico um alcance mundial.

Os casos são tantos, e tão grosseira a patifaria em cada um deles, que nenhum leitor isento pode deixar de concluir que, definitivamente, há algo de errado na mentalidade esquerdista. Não é possível que multidões tão vastas cultuem personagens tão desonestos, mesquinhos e desprezíveis sem que haja nisso o sintoma de um embotamento moral alarmante.

O mais lindo é que, em quase todos os exemplos citados, a revelação cabal dos crimes não empanou em nada a reputação de seus autores, que continuaram a ser incensados, às vezes até mais intensamente, como modelos de superioridade excelsa habilitados a passar pitos no restante da espécie humana.

A guatemalteca Rigoberta Menchú, por exemplo, ganhou o Prêmio Nobel e a Légion d’Honneur com uma autobiografia celebrada pela revista Chronicle of Higher Education como “um pilar fundamental do cânone multicultural”. O núcleo da narrativa era a infância sofrida de uma índia filha de camponeses expulsos de suas terras por grandes proprietários. Mais tarde comprovou-se que o pai de Rigoberta nunca tinha sido vítima desses proprietários, pela simples razão de que ele próprio era um deles. A tempestade de desculpas esfarrapadas que se seguiu foi tão grande quanto a onda de aplausos que a antecedeu.

O historiador Alex Hailey ganhou milhões com a reconstituição de suas origens familiares africanas no livro Raízes , que virou uma série de TV de enorme sucesso e foi adotado como leitura multicultural obrigatória em todas as escolas públicas americanas. Um processo na justiça mostrou que essa obra de “não ficção” não passava de plágio… de um romance! O autor do romance recebeu uma polpuda indenização mas concordou em não divulgar o escândalo, que só veio a ser noticiado, com a discrição exigida pelo código de decência politicamente correto, anos depois da sua morte.

Muita gente no Brasil deve ter visto o filme Julia , de Fred Zinemann, com Jane Fonda e Vanessa Redgrave, baseado nas memórias de Lilian Helmann, talvez a mais badalada escritora de esquerda nos EUA umas décadas atrás. O ponto culminante era a viagem heróica de Lilian pelo território alemão, em arriscada missão para as forças da resistência. Bem, na ocasião mencionada a escritora estava em plena segurança nos EUA. Ela simplesmente sugou os feitos de uma heroína anônima, colocando-se a si própria no papel principal. Investigações meticulosas sobre o restante do livro mostraram que Mary McCarthy não tinha exagerado muito ao dizer que tudo o que sua concorrente escrevia era mentira, “incluindo as palavras e e o ”.

Walter Cronkite, o célebre comentarista de TV, provocou a ira do mundo contra a maldade das forças armadas americanas ao exibir o filme de uma garotinha vietnamita, nua e com queimaduras pelo corpo, correndo desesperada sob um bombardeio de napalm. Era quase impossível Crokite ignorar que nenhum americano havia participado direta ou indiretamente da operação, mesmo porque na época quase todas as tropas dos EUA já haviam saído do Vietnã. Ele jamais pediu desculpas. Nem jamais noticiou que a garotinha, Kim Phuc, cansada de ser usada como instrumento de propaganda comunista enganosa, fugiu para o Ocidente e hoje mora no Canadá.

E assim por diante. É um museu da degradação humana. A conclusão é que a admiração geral dos esquerdistas tem sido devotada aos tipos humanos mais baixos e desprezíveis criados pela indústria da falsa consciência. E é bem compreensível que criaturas formadas nessa atmosfera acabem tentando transmutar os crimes e iniqüidades de seus correligionários em símbolos de uma superioridade moral quase angélica.

Não que na direita não haja farsantes e vigaristas. É claro que há. Mas ninguém ali os considera modelos de virtudes, nem lhes dá preferência na escala de admirações. Nenhum conservador jamais confundiu Adolf Hitler com Winston Churchill, os terroristas da OAS com Charles de Gaulle, David Duke com Ronald Reagan ou o delegado Fleury com Gustavo Corção. Jamais a direita como um todo se enganou a si própria com o estusiasmo e a unanimidade da esquerda. O requisito básico do conservadorismo é o senso das proporções.

A CIA que ninguém conhece

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de julho de 2005

WASHINGTON, DC – Todo mundo no Brasil imagina que a CIA é uma espécie de KGB de direita, um governo invisível dominando com mão de ferro uma multidão inerme. No plano internacional, uma vasta organização subterrânea empenhada em fomentar golpes de Estado, assassinar intelectuais esquerdistas e implantar por toda parte o império do capitalismo ianque.

Se essas fantasias imitam tão simetricamente o modelo da espionagem soviética, é porque foi ela mesma que as criou à sua própria imagem e semelhança, invertendo apenas o signo ideológico da sua realidade macabra para formar o desenho de um tipo de organização que, num país com eleições e imprensa livre, jamais teria condições de existir. Esse desenho foi espalhado pelo Ocidente através de toda uma imensa subcultura editorial e cinematográfica produzida, sobretudo, entre os anos 60-80.

Após a abertura dos Arquivos de Moscou, ninguém mais tem o direito de ignorar, por exemplo, que o enredo conspiratório do filme de Oliver Stone, “JFK”, saiu direto dos escritórios da KGB, nem que o ex-agente Philip Agee, badaladíssimo pela mídia popular pelas denúncias escabrosas que fez contra a CIA no seu livro Inside the Company: CIA Diary (1975), esteve sempre na folha de pagamentos do serviço secreto soviético e hoje é um agente full time do governo cubano. Mas não há país do mundo em que esses fatos tenham sido suprimidos mais sistematicamente da mídia do que o Brasil. Resultado: as balelas mais sonsas postas em circulação por aquela subcultura tornaram-se, aí, verdades de evangelho cuja contestação ainda soa, no mínimo, “polêmica”, isto quando não lança sobre o contestador a fama de psicótico… ou de agente da CIA.

Para avaliar a distância entre o imaginário brasileiro e os fatos, basta notar que aqui nos EUA também circula uma multidão de livros contra a CIA , mas que a maioria deles a acusa de fazer exatamente o contrário do que os brasileiros imaginam que ela faz. Nenhum americano razoavelmente culto ignora que esse serviço de inteligência, há bastante tempo, trabalha mais para grupos políticos – de esquerda em geral – do que para o governo do seu país. Isso começou na era Reagan. Ronald Reagan foi um grande presidente, mas nas últimas semanas de mandato fez uma burrada monumental: privatizou uma parcela importante dos serviços secretos. Quem podia comprar comprou um pedaço e o pôs a serviço de si próprio. A família Clinton, por exemplo, tem lá seu feudo particular. Sem saber dessas coisas, o público brasileiro entende às avessas acontecimentos importantes como a falsa informação sobre as armas de destruição em massa de Saddam Hussein. O que aos olhos brasileiros pareceu uma desculpa maquiavélica inventada por George W. Bush para legitimar a invasão do Iraque (até hoje isso é repetido na mídia nacional como obviedade de senso comum) foi na verdade uma cama-de-gato armada para o presidente por gente desleal dentro da CIA. Daí a limpeza geral que o governo está fazendo nesse serviço de inteligência, trocando tipos suspeitos por funcionários concursados.

Uma das melhores fontes para estudar o assunto são os artigos de Jack Wheeler, filósofo que abdicou da carreira acadêmica para levar uma vida de aventureiro, caçador de tigres e estudioso de culturas primitivas, acabando por ser conhecido como “o Indiana Jones da direita”.

Wheeler trabalhou na CIA por algum tempo e não modera as palavras ao dizer o que viu lá dentro: um panorama que vai da indolência anárquica ao antipatriotismo militante de altos funcionários empenhados em amarrar as mãos dos agentes por meio de exigências “politicamente corretas” impossíveis de cumprir, quando não em sonegar ao governo informações vitais para a segurança do país. Wheeler me disse que o empreendimento mais importante do governo Bush era justamente a reforma dos serviços de inteligência, mas que seus resultados seriam muito lentos, tamanhas as resistências que encontrava entre os marajás remanescentes da era Clinton.

Mesmo depois da conversa com Wheeler, porém, eu não imaginava que essas resistências podiam chegar ao ponto do boicote sistemático e da rebelião ostensiva. O que me abriu os olhos foi o livro de Curt Weldon, Countdown to Terror (“Contagem Regressiva para o Terror”), publicado há uns meses pela Regnery e a mais importante dentre as obras sobre a CIA que entraram na lista de bestsellers do New York Times .

O autor é um deputado pela Pensilvânia, reeleito consecutivamente por vinte anos. Durante sua experiência como vice-presidente de duas comissões parlamentares encarregadas de assuntos de segurança, Weldon obteve informações confiáveis de um dissidente iraniano sobre esquemas terroristas diretamente concebidos pelo governo de Teerã. O principal era o plano de atirar aviões com pilotos suicidas não sobre um simples prédio comercial como no 11 de setembro, mas sobre o reator nuclear de Seabrook, Massachusetts, ocasionando uma catástrofe do tipo e das dimensões de Chernobyl. O informante dava também detalhes sobre a fabricação da bomba atômica iraniana em íntima associação com a Coréia do Norte – um projeto em estágio muito mais avançado do que se imaginava no Ocidente –, descrevia a rede de agentes iranianos infiltrados no Iraque para espalhar o terror e esmagar no berço a democracia iraquiana, e resumia atas e mais atas do “Comitê dos Nove”, a entidade criada pelo governo do Irã para coordenar a atividade terrorista em escala internacional. Dizia ainda que Osama bin Laden se encontrava refugiado no Irã como hóspede de honra e que entre os projetos terroristas em andamento estava o assassinato do ex-presidente George H. W. Bush.

Mas a surpresa maior estava por vir. Quando tentou passar essas informações para a CIA , Weldon se defrontou não só com uma barreira de má-vontade e indolência, mas com uma hostilidade ativa que tentava por todos os meios – inclusive a ameaça de coerção física – bloquear o acesso ao informante e impedir que os dados fornecidos por ele chegassem ao primeiro escalão do governo.

Isso continuou mesmo depois que a mais espetacular das revelações, a do ataque a Seabrook, foi integralmente confirmada pela prisão, pelo governo canadense, de um grupo de terroristas preparados para realizar a operação – o que, segundo Weldon, não significa que o plano tenha sido abandonado e não esteja sendo levado adiante neste preciso momento, em algum outro lugar do mundo.

Weldon tentou por todos os meios articular os vários serviços de inteligência para que fizessem a análise cruzada dos dados, mas todos os seus esforços foram boicotados de maneira tão ostensiva que ele desistiu de buscar a atenção do governo e resolveu apelar diretamente ao povo americano, publicando os relatórios do seu informante clandestino na esperança de que a opinião pública pressione o governo para levar a fundo a reforma do sistema de segurança.

“Este livro – escreve ele no prefácio – é um ato de desespero. Trago-o à presença do leitor porque não consegui que a comunidade de informações fizesse nada a respeito, embora minha fonte tenha provado sua credibilidade e embora a informação que ela fornece anuncie um ataque terrorista maior aos Estados Unidos.”

Não é possível ler essas coisas e continuar não enxergando o abismo de diferença entre a realidade da CIA e o que se escreve a respeito dela na nossa mídia.

***

O Brasil sempre viveu mais ou menos à margem do mundo, descompassado com o tempo histórico, incapaz de absorver as idéias vivas mas pronto a recolher e cultuar com devoção necrófila os resíduos da sua decomposição tão logo o restante da humanidade as tivesse esquecido por completo.

Não digo isso, é claro, com base no preconceito historicista de que as idéias são apenas expressões do “seu tempo”, sem valor permanente. Não é disso que estou falando. O que quero dizer é que idéias não são senão reações da mente humana a determinadas situações vividas. Quando as situações mudam, as idéias criadas em resposta a elas mudam também de significação e têm de ser reinterpretadas à luz do tempo histórico transcorrido. Quando elas chegam com atraso, desacompanhadas do respectivo upgrade cronológico, o risco que isso implica não é o de estar fora da moda – coisa que, em si, pode ser até saudável. É que essas idéias então adquirem uma espécie de força autônoma, deixando de funcionar como interpretações da realidade e sendo tomadas como se fossem elas próprias a realidade. Pior: como os seres humanos que as absorvem acabam agindo em função delas, elas criam mesmo uma espécie de realidade substitutiva, feita só de palavras e símbolos, que para quem vive dentro dela é a realidade tout court . Vidas inteiras podem transcorrer dentro desse cenário de ficção sem jamais dar-se conta de que não viveram realmente, apenas pensaram e falaram.

A história da cultura brasileira – e da política brasileira – não passa, nesse sentido, da história de uma prodigiosa alienação, de um divórcio completo entre experiência vivida e pensamento. A vacuidade, o sem-sentido, a impotência de lidar com a realidade condenam o país a uma sucessão de fracassos aparentemente sem explicação, que, de quando em quando, num paroxismo de revolta contra o destino incompreensível, ele tenta superar por meio de sobre-esforços de transformação ainda mais deslocados e inúteis.

A última dessas cíclicas convulsões pseudo-libertadoras foi a onda de entusiasmo nacional pela “ética”. Sob a inspiração desse fetiche verbal, a nação inteira se mobilizou para destituir um presidente supostamente corrupto, que depois de derrubado acabou sendo totalmente inocentado na justiça, bem como para elevar ao poder um “partido ético” que veio a se revelar uma máquina de corrupção incomparavelmente mais vasta e daninha do que todos os Anões do Orçamento, PCs Farias, Cacciolas e Juízes Lalaus somados.

Esse resultado era previsível, mas para prevê-lo era preciso saber que a expressão mesma “partido ético” se originara na Itália, nos anos 30, com o ideólogo Antonio Gramsci, como expressão técnica do vocabulário comunista destinada a designar a habilidade que o partido revolucionário deveria ter de amoldar a moral social às exigências da sua própria luta pelo poder. Como ninguém sabia disso, a palavra “ética” foi comprada pelo seu valor nominal, deslocado do contexto originário e preenchido de conotações morais sublimes, de tal modo que a nação inteira colaborou alegremente na acumulação de lixo petista no instante mesmo em que imaginava “passar o Brasil a limpo”. Transformadas em cúmplices de seu próprio ludíbrio, co-autoras do seu próprio escárnio, não é de estranhar que agora as classes falantes deste país se sintam inibidas de dar à situação presente as suas dimensões reais e não aceitem denunciá-la senão com toda sorte de ressalvas eufemísticas destinadas a salvar pelo menos um pouquinho da reputação dos acusados – preocupação que ninguém teve diante de casos de gravidade incomparavelmente menor, onde os suspeitos, não raro objetivamente inocentes, foram entregues às feras sem dó nem piedade, entre urros de sadismo “ético”.

Na época, o PT usava e abusava de uma oratória hiperbolicamente alarmista, na qual qualquer grupelho de suspeitos era imediatamente ampliado às dimensões de um “sistema paralelo” e qualquer indício de safadeza vulgar se tornava um iminente golpe de Estado, um risco apocalíptico para a segurança nacional. O observador atento notaria de imediato, no descompasso mesmo entre a retórica e os fatos, a presença do intuito de camuflagem. Hoje tornou-se evidente que o único “sistema paralelo” em formação na época era o próprio PT, que, seguindo o velho conselho de Lênin, acusava os outros de fazer o que ele próprio, assim, podia fazer com toda a tranqüilidade, a salvo de qualquer suspeita.

Robin Hoods ao contrário

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 4 de julho de 2005

Continua dando encrenca a decisão da Suprema Corte americana que na semana passada permitiu desapriopriar residências em favor de grandes projetos de desenvolvimento encabeçados por empresas privadas. Os juízes que a aprovaram estão sendo chamados de “Robin Hoods ao contrário”, porque tiraram os bens dos pobres para dá-los à aliança do Estado voraz com empresas oportunistas, e por toda parte ganha apoio a campanha “Tire as Mãos da Minha Casa”, lançada pela ONG Institute for Justice. Uma advogada do grupo, Dana Berliner, disse; “O povo americano está furioso com essa sentença, mas ainda tem meios de fazer alguma coisa contra ela.”

Coincidência ou não, a juíza Sandra Day O’Connor, que votou contra a decisão, pediu aposentadoria justamente quinta-feira passada. A essa altura, pode parecer estranho, mas os conservadores estão festejando. Numa entrevista coletiva sexta-feira à noite,Tony Perkins, presidente do Family Research Council, um influente think-tank empenhado na defesa dos valores americanos tradicionais, explicou que a saída da dra. O’Connor dá ao presidente Bush a oportunidade de começar a cumprir sua promessa de nomear juízes mais afinados com os conservadores. Foi com intenção idêntica que Ronald Reagan nomeou a dra. O’Connor em 1981, mas ela acabou namorando com os “liberals” e só se redimiu na semana passada, quando tomou posição firme a favor da propriedade privada.

Não é possível entender nada da política americana sem tirar da cabeça os estereótipos consagrados da mídia brasileira que identificam os conservadores com o grande capital e os “progressistas” do Partido Democrata com as causas populares. Para saber a quem um partido serve, é preciso descobrir quem o sustenta. No Partido Democrata, três quartos do dinheiro de campanha vêm de milionários, só o quarto restante dos pequenos contribuintes. A proporção é exatamente inversa no Partido Republicano. O símbolo mais eloqüente dessa diferença é que na Suprema Corte os dois representantes máximos do conservadorismo são justamente Clarence Thomas e Anthony Scalia, um negro e um filho de imigrantes italianos, enquanto os herdeiros das famílias tradicionais de Nova York e da Filadélfia se alinham com a esquerda politicamente correta.

Além disso, a linha divisória de esquerda e direita nos EUA tem menos a ver com economia do que com cultura e moral (questões como o aborto, o casamento homossexual, o ensino da religião, o anti-americanismo acadêmico, etc.). Nesse sentido, a população americana é decididamente conservadora, e está cada vez mais irritada com o fenômeno do “ativismo judicial” – a capciosa estratégia esquerdista de revolucionar a sociedade sem precisar mudar as leis, apenas invertendo o sentido delas por meio de sentenças dos tribunais (o “direito alternativo” brasileiro não é senão a macaqueação terceiromundista dessa moda infame). O próprio presidente Bush aludiu a isso no seu último discurso sobre o Estado da União, quando disse que os juízes devem limitar-se a aplicar as leis em vez de usurpar as atribuições do Legislativo.

Já antes da sentença desastrada, a Suprema Corte havia se tornado alvo de suspeita ao ordenar que as inscrições com os Dez Mandamentos fossem retiradas de todos os tribunais americanos. As pesquisas de opinião mostraram que 65 por cento da população desaprovaram totalmente essa medida e 14 por cento só a aceitavam com reservas. Na semana seguinte, a pilhagem das casas de New London em favor do Estado comedor de impostos transformou o desagrado geral num sentimento que fica entre o desprezo e a revolta.

Um comentarista afirmou que a decisão tinha sido “o maior insulto à América desde o processo Roe versus Wade”. Nesse processo, que pela primera vez nos EUA legalizou o aborto-a-pedido, a decisão baseou-se no testemunho da vítima, que dizia ter engravidado num estupro. Decorridas três décadas, a própria testemunha pediu a revisão do processo, confessando que não sofrera estupro nenhum mas fôra subornada pelo movimento abortista para mentir no tribunal. A Suprema Corte não quis reabrir o processo: foi a pressão popular que a obrigou a fazê-lo. A má-vontade que tenta sufocar até a verdade tardia ilustra, mais uma vez, o verso de Murilo Mendes que contrasta “as velozes hélices do mal e as lentas sandálias do bem”.

Nenhum cidadão americano ignora que a Suprema Corte já se tornou há muito tempo a fortaleza do ativismo judicial. Há quem goste e quem deteste isso, mas o fato ninguém nega. Há muitos livros a respeito; o mais famoso é Men in Black. How The Supreme Court Is Destroying America, de Mark R. Levin. Como no Brasil ninguém leu esses livros, nada mais natural do que a reação do leitor Ivanilson Zanin (palmeiraezanin@bol.com.br ) à minha coluna da semana passada: “Faltou apenas que esse jornal dissesse que os juízes norte americnos, no caso ‘a fina flor do esquerdismo judicial supremo’, como afirmam vocês, são filiados ao Partido dos Trabalhadores, lembrando aquele episódio dantesco no qual Paulo Maluf disse que o promotor suíço que investiga suas suas contas bancárias na Suiça era petista.” A dificuldade de discutir com brasileiros, hoje em dia, é essa. Opiniões baseiam-se em premissas factuais. Quando um indivíduo desconhece os fatos, só lhe resta concebê-los à imagem e semelhança da sua fantasia. Quando milhões de pessoas desconhecem os fatos, a fantasia coletiva que os substitui adquire uma espécie de autoridade, e cada indivíduo que se apóia nela acredita-se firmemente instalado na realidade. Daí a segurança, o ar de superioridade quase divina com que zomba daquilo que ignora, sem saber que não faz de palhaço senão a si próprio. Mas o sr. Zanin acrescenta à zombaria a insinuação maliciosa: “Gostaria de sugerir um slogan para este jornal: Diário do Comércio – um jornal a serviço do PSDB.” Isso é mais ridículo ainda, embora o sr. Zanin seja o último a percebê-lo. A defesa incondicional da propriedade privada, que é a tônica do Diário do Comércio , não poderia fazer dele o porta-voz apropriado de um partido filiado à Internacional Socialista.

O teste final

Congregando mais de cem partidos e uma dúzia de gangues de narcotraficantes e seqüestradores milionários, o Foro de São Paulo é a organização política mais poderosa que já existiu na América Latina. Há uma década e meia, no Brasil, na Argentina, no Equador, na Venezuela, em Cuba, no Uruguai, na Bolívia e em outros países do continente, não se vota uma lei, não se lança um programa, não se inaugura uma campanha social que não esteja dentro dos cânones aprovados pelo Foro.

Tal é a entidade cujo conhecimento a mídia brasileira, criminosamente, tem sonegado ao público, e cuja existência alguns deformadores de opinião, como aquele patético sr. Luis Felipe de Alencastro, da Veja , chegaram a negar até data muito recente.

O Foro foi fundado em 1990 por Lula e Fidel Castro. Sem a afinação estratégica entre os partidos de esquerda, que ali se aperfeiçoa em reuniões mais ou menos anuais, a ditadura Chávez ou a ascensão eleitoral de Lula teriam sido impossíveis. O próprio Lula reconheceu isso, ao afirmar, no seu discurso de posse, que devia sua eleição “não só a brasileiros mas a outros latino-americanos” (por incrível que pareça, essa confissão explícita da influência estrangeira nas eleições nacionais não suscitou escândalo nem curiosidade entre nossos jornalistas). Quanto à aliança Lula-Castro-Chávez, que está na base de tudo isso, o próprio Lula, com exemplar cara-de-pau, disse ao entrevistador Boris Casoy que ela era apenas invencionice de “um picareta de Miami”, alusão desrespeitosa ao escritor cubano Armando Valladares, recordista mundial de permanência na cadeia, sob torturas, por delito de opinião.

Mas a história não era invencionice, nem havia começado com Valladares.

No Brasil, muito antes disso, o primeiro a denunciar a existência do Foro, bem como sua submissão estratégica aos ditames da esquerda chique norte-americana, (os Clintons e tutti quanti ), foi o advogado paulista José Carlos Graça Wagner, que havia reunido uma impressionante documentação a respeito mas foi impedido, por doença grave, de prosseguir seu trabalho de investigação.

Nunca um jornal brasileiro ou programa de TV deu espaço ao dr. Graça Wagner para expor o que sabia do Foro de São Paulo. Quando tive uma breve oportunidade de acesso aos documentos, passei a escrever sobre o assunto na Zero Hora de Porto Alegre, no Globo , na Folha de S. Paulo , no jornal eletrônico Mídia Sem Máscara e em duas revistas americanas, sendo em seguida reforçado pela colaboração de Graça Salgueiro, Carlos Azambuja, Heitor de Paola e outros comentaristas marginalizados pela grande mídia. As reações que encontramos variaram entre o silêncio covarde, as explosões de ódio e as desconversas cínicas que apresentavam o Foro como uma inofensiva arena de debates sem poder decisório.

Mais tarde, o dr. Constantine Menges, analista estratégico do Hudson Institute em Washington DC , escreveu a respeito do Foro vários artigos, que os luminares da mídia brasileira, numa lição medonha de antijornalismo, trataram de desmentir sem publicá-los, espalhando as histórias mais escabrosas sobre a pessoa do autor e tapando antecipadamente a boca do acusado.

Agora, nada mais fácil do que averiguar quem disse a verdade e quem mentiu. Chegou a hora do teste final. Como o filósofo que andando provava o movimento, a décima-segunda assembléia do Foro inexistente, celebrando seus quinze anos de atividade jamais realizada, está reunida em São Paulo desde sexta-feira até hoje, na sede do Parlatino, na Barra Funda, à av. Auro Soares de Moura Andrade, 564. Quem não quiser ir até lá pode tirar a dúvida lendo o programa dos debates no site do próprio PT.

Desse modo, não apenas caem por terra quinze anos de negações mentirosas, mas vai para o brejo também a desconversa acima mencionada, já que, à imitação do que vinha fazendo em todas as suas assembléias, o Foro já anunciou — para hoje — o seu momento culminante: a redação das Resoluções que orientarão por um ano os partidos filiados. Mostra assim que não existe só para discutir à toa, mas para decidir e ser obedecido.

Significativamente, as FARC e o MIR chileno, as duas organizações criminosas tão ativas nos encontros anteriores, e cuja colaboração com o PT no quadro do Foro os apologistas do petismo negavam contra toda evidência, abstiveram-se de comparecer à festa. Honroso sacrifício! Sua presença, nesta hora em que toneladas de sujeira petista estão vindo à tona, teria sido mesmo uma inconveniência. Algum jornalista, cansado de ser bom menino, poderia até mesmo ceder à tentação abominável de fazer perguntas.

Festa

Vou hoje a Virginia Beach para ver a queima de fogos, os concertos de bandas, a alegria nacional de um país que tem amor-próprio e razões para isso. A diferença entre os EUA e o Brasil começa aí: naquele, a festa mais popular é o Dia da Independência; neste, a baderna geral que celebra a fuga às obrigações, a abdicação da realidade. São galáxias de distância entre um patriota com bandeira na mão e um folião bêbado vestido de baiana.

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