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Da ignorância à maldade

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de agosto de 2005

WASHINGTON, DC – Quando você olha um objeto qualquer – um gato, uma cadeira, uma nuvem, um palito de fósforo –, não percebe nele somente o traço essencial que o define pelo nome. Percebe também um conjunto de aspectos secundários que o individualizam e o distinguem de outros entes da mesma espécie. Percebe, por exemplo, que é um gato rajado e não preto, que é grande e gordo em vez de pequeno e magro, que está deitado e imóvel em vez de correr e saltar, que está no sofá da sala e não em cima da mesa da cozinha etc., etc. É esse conjunto de aspectos secundários que diferencia a percepção concreta da mera idéia abstrata de “gato”, a qual idéia é sempre a mesma para todos os gatos de todos os tamanhos e cores, percebidos em todos os lugares, posições e atitudes possíveis.

Aristóteles denominava “categorias” esses vários aspectos sob os quais um ente ou coisa é percebido instantaneamente. Perceber com realismo é apreender um objeto, fato ou situação sob as várias categorias, captando com exatidão as diferenças que ele exibe em cada uma delas e articulando-as num todo concreto. É claro que nem sempre essa articulação é intuitiva e instantânea. Às vezes surge uma incongruência qualquer entre os aspectos percebidos, e o todo não se completa intuitivamente. Aí você recorre à conjeturação lógica para tentar completá-lo mentalmente, mas o melhor que a lógica vai produzir então é uma hipótese mais plausível. A verificação da hipótese só pode ser obtida por um segundo exame do objeto. Por exemplo, se a forma externa que ele mostra sugere que é um gato, mas o tamanho parece excessivo para um gato, você pode conjeturar que é uma onça ou tigre, mas só tirará a dúvida se olhar para o bicho de novo, ao menos pela fração de segundo necessária para concluir que está na hora de sair correndo. Em todos os casos e circunstâncias, nada substitui a percepção intuitiva adequada e completa.

Tanto é assim que, mesmo naquelas formas de conhecimento mais elevadas e complexas a que chamamos “ciências”, o teste da verdade vem sempre, em última análise, da experiência, isto é, do acesso intuitivo a algum dado de realidade presente. A experiência sistemática é, na esfera das ciências, o equivalente da percepção intuitiva na cognição vulgar ou pré-científica. Os conceitos descritivos e explicativos de qualquer ciência, por sua vez, não são senão aplicações mais especializadas das dez categorias descobertas por Aristóteles (substância, qualidade, quantidade, relação, ação praticada, ação sofrida, lugar, tempo, posição e atitude). O conhecimento da realidade é sempre uma questão de percepção, e percepção é articulação intuitiva de traços percebidos sob as várias categorias. A conclusão inevitável é que a aplicação eficaz dos conceitos científicos depende de uma boa percepção vulgar prévia. A tentativa de aplicar conceitos científicos a realidades mal percebidas resulta apenas em delírio pedante, em histórias da carochinha adornadas com uma aparência de linguagem intelectualmente sofisticada. Na imagem resultante, os traços percebidos são deformados por categorias impróprias e a confusão pode chegar a tal ponto que o trabalho mental de gerações inteiras se torna esforço perdido.

Na percepção de fatos mais complexos do que um gato dormindo, a possibilidade de incorrer nesse erro é enorme, sobretudo quando são fatos públicos sujeitos a deformações operadas por toda sorte de “especialistas”, palpiteiros, ativistas fanáticos e partes interessadas. Maior ainda a possibilidade do desastre quando a comunidade que participa do debate não tem prática do assunto e arrisca, por automatismo, e às vezes com fartura de termos científicos, jurídicos, sociológicos, etc., toda sorte de interpretações deslocadas, adaptadas de experiências vagamente parecidas, tornando ainda mais inacessível a realidade do objeto.

No caso do Mensalão, por exemplo, a incapacidade geral de atinar com a diferença específica do que está acontecendo é produzida pelo seguinte fator: uma década e meia de denúncias, fomentadas astuciosamente pelo partido que num choque de retorno veio a tornar-se depois o principal suspeito delas, criou o hábito de encarar o dinheiro do Estado como o bem mais valioso, superior mesmo ao próprio Estado, e de não conceber os crimes contra o Estado senão sob a categoria do roubo e da corrupção. Isso tornava impossível imaginar a possibilidade de delitos mais vastos e ambiciosos, que assim podiam ser cometidos sem medo ante milhões de olhos cegos.

Ora, o partido que infundiu esse hábito na mente do povo fez isso justamente porque sabia que o calcanhar-de-Aquiles dos adversários a quem desejava destruir estava na sua ânsia de enriquecimento pessoal, coextensiva à sua vacuidade ideológica, à sua completa falta de objetivos político-estratégicos maiores. Ele, por sua vez, tinha um objetivo político-estratégico maior: a destruição da ordem democrática, a deglutição do Estado no ventre da onipotência partidária, a criação de um regime socialista nos moldes delineados pelo Foro de São Paulo, o alinhamento do Brasil no eixo comuno-terrorista. Tinha esse objetivo e sabia não apenas que ele era ilegal em si mas que sua realização exigiria o uso de meios criminosos de envergadura jamais ambicionada por seus miúdos adversários. Não se tratava de enriquecer o sr. fulano ou de garantir o futuro do sr. beltrano, corrompendo, para esse fim, meia dúzia de parlamentares e uns quantos funcionários burocráticos. Tratava-se de elevar um partido acima do poder do Estado – e para isso era preciso corromper o maior número de políticos, a classe política inteira se possível, sobretudo e de preferência os virtuais adversários do partido, para que, em caso de perigo, corressem em socorro dele ou pelo menos se abstivessem de dizer o que sabiam contra ele. Tratava-se de comprar tudo e todos, organizadamente, sistematicamente, para que ninguém pudesse denunciar nada sem denunciar-se a si próprio.

Foi para isso, precisamente, que esse partido desencadeou mil e uma campanhas de “ética”, fomentando a indústria do denuncismo que ao longo de uma década e meia manteve a nação num permanente estado de sobressalto, sempre à espera de novos e novos escândalos que minavam a confiança do povo nas instituições e o induziam a apostar suas últimas esperanças na idoneidade do denunciante, sem imaginar que ele não produzia denúncias senão como elemento de um plano criminoso infinitamente mais vasto e ambicioso do que todos aqueles delitos isolados contra os quais ele incitava a revolta popular. Desviar contra os corruptos vulgares o potencial explosivo dessa revolta, amortecendo ao mesmo tempo o impacto de crimes incomparavelmente mais graves como o respaldo dado pelo Foro de São Paulo aos narcotraficantes das Farc e aos seqüestradores do MIR – mesmo quando atuavam no território nacional, matando brasileiros, treinando quadrilhas de bandidos nos morros, envenenando crianças com cocaína nas escolas –, foi a tática usada numa longa operação de amortecimento da inteligência pública, de modo a torná-la incapaz de perceber os fatos com suas devidas proporções. A recém-descoberta corrupção petista não é a negação dos velhos slogans “éticos” do partido: é a continuação natural deles, já que não foram inventados senão para prepará-la por meio da camuflagem, do diversionismo e da imbecilização planejada.

Os corruptos à moda antiga apropriavam-se do dinheiro do Estado para seus próprios fins particulares. O PT apropriou-se do Estado, usando o dinheiro dele para suas próprias finalidades estratégicas. Os primeiros deixavam o Estado intacto porque viviam dele, alimentando-se das suas sobras. O PT usou o Estado inteiro como alimento, assimilando-o no sentido estritamente fisiológico do termo, isto é, eliminando-o como entidade independente e recriando-o como elemento da sua própria estrutura.

Hoje está claro que a estratégia seguida para isso ao longo das últimas décadas comportava, antecipadamente, planos alternativos:

PLANO A
Dominar psicologicamente a sociedade por meio da tática dos sobressaltos e da chantagem moralista, e em seguida tomar o Estado quando já não houvesse mais resistência exceto suicida.

PLANO B
Se isso falhasse, entregar à execração pública alguns bodes expiatórios e tentar salvar a aura mágica do símbolo Lula para poder recomeçar tudo de novo.

PLANO C
Se isso também falhasse, salvar ao menos a reputação do esquerdismo como tal, apresentando a corrupção petista não como a implementação lógica de uma estratégia de conjunto e sim como uma “traição” aos belos ideais da esquerda, e transferindo para algum partido secundário – escolhido dentre os muitos do Foro de São Paulo — o encargo de posar como nova encarnação da moral e dos bons sentimentos.

O plano A falhou porque Roberto Jefferson aceitou o suicídio como meio de resistência. O plano B está falhando. O plano C está em plena realização. A nova encarnação da moralidade é a sra. Heloísa Helena com o seu PSOL. Até militares patriotas estão caindo no engodo, sem perceber que esse partido é tão sujo quanto o PT, já que tem entre seus mentores nada menos que um terrorista, Achille Lollo, condenado na Itália pelo assassinato de duas crianças, escondido durante décadas por padrinhos poderosos e por fim acolhido no Brasil pelo governo petista – um belíssimo curriculum vitae, que em nada perde para o do agente cubano José Dirceu.

Não por coincidência, escrevi com um ano e meio de antecedência que isso ia acontecer (Jornal da Tarde, 12 fev. 2004), e tudo está acontecendo exatamente como descrevi. O Brasil é de uma obviedade acachapante.

No entanto, tão arraigado é o vício mental infundido na população pela propaganda “ética” petista, que ninguém, hoje, parece perceber a diferença entre casos corriqueiros de corrupção e o crime incomparavelmente maior que o PT praticou e está praticando. O que o PT fez não foi desviar dinheiro daqui e dali para constuir piscinas ou alimentar amantes de deputados. Foi criar um macro-sistema de corrupção destinado a neutralizar oposições, a debilitar a capacidade investigativa do Estado e a confundir a população inteira para fazer dela e da própria máquina estatal instrumentos dóceis a serviço da instauração lenta e anestésica de uma ditadura informal sob o nome de democracia.

Isso não é corrupção. É golpe. É conspiração. É alta traição. Para quem se meteu em empreendimento tão ambicioso, tão perverso, tão maligno, ser acusado de mera corrupção é um alívio. Sempre resta a esperança de que seus crimes sejam nivelados assim aos de um P. C. Farias qualquer, sem manchar a reputação dos “ideais” que os inspiraram e sem estrangular a esperança de que o esquema desmantelado possa ser reconstruído em seguida com outros agentes e outro rótulo partidário.

Intoxicada por meio século de “revolução cultural” que tornou a cosmovisão da esquerda a única referência moral vigente, atordoada pela tagarelice “ética” de duas décadas, a nação parece empenhada em tomar os anéis da elite golpista com todo o cuidado para não lhe machucar os dedos. Dissolvendo a percepção da realidade concreta numa sopa de classificações abstratas inapropriadas à situação, ela colabora para que o criminoso, na mais ousada das hipóteses, seja condenado por um crime menor e saia ileso para tentar de novo o golpe maior.

Um sábio que conheci dizia que o pecado tem três etapas: a ignorância, a fraqueza, a maldade. A presente fraqueza moral brasileira é fruto de décadas de ignorância planejada. Só falta um pouco para que a nação passe à última etapa, aderindo a uma ética de Josés Dirceus e celebrando o maquiavelismo petista como a manifestação suprema e única do bem e das virtudes.

Obviedades temíveis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1o de agosto de 2005

A esta altura já se tornou óbvio que mesmo alguns dos mais ferrenhos acusadores da corrupção governamental estão antes interessados em salvar a imagem do PT do que em descobrir a verdade. Já disse dezenas de vezes e repito: a esquerda organizada – não o PT sozinho, mas a articulação dos partidos pertencentes ao Foro de São Paulo — é mais poderosa que o Parlamento, mais poderosa que o empresariado, mais poderosa que a Justiça, mais poderosa que a Igreja, mais poderosa que a mídia, mais poderosa que as Forças Armadas. Ninguém tem meios de puni-la, faça ela o que fizer. O Estado brasileiro, para ela, é apenas matéria dúctil da qual ela se servirá a seu belprazer, moldando-a e remoldando-a à sua imagem e semelhança, no instante em que quiser, no estilo em que quiser, sem suscitar senão reclamações isoladas, débeis e impotentes. O simples fato de que seus opositores se limitem a imputações de detalhe, sem coragem ou capacidade para denunciar o esquema ideológico e estratégico por trás de tudo, já é a prova mais contundente de que eles estão derrotados, submissos, agarrando-se a subterfúgios fúteis para não ter de enxergar a extensão da tragédia em que uma persistente covardia os mergulhou. Disputam no varejo porque sabem que, no atacado, já perderam. E não falo só do Brasil: o continente latino-americano, com exceção da Colômbia, do Chile e dos pequenos países da América Central, já está sob o domínio comunista e não sairá ileso dessa brincadeira, como nenhum povo aubmetido a experiência similar jamais saiu. Desde que os setores mais vitalmente interessados na sobrevivência da democracia capitalista caíram no engodo do “fim do comunismo” e reprimiram em si próprios toda veleidade de anticomunismo, estavam virtualmente mortos e enterrados. A começar pelos grão-senhores da mídia, coelhinhos assustados, trêmulos ante os chefetes comunistas que eles próprios nomearam e ante os bancos oficiais que prestam socorro a suas empresas periclitantes. A sorte do continente latino-americano está decidida: o futuro chama-se União das Repúblicas Socialistas da América Latina. A profecia de Fidel Castro, lançada na IV Assembléia do Foro de São Paulo, está em vias de se realizar plenamente: o movimento comunista internacional já está reconquistando na América Latina tudo o que perdeu no Leste Europeu. Com uma diferença: no Leste Europeu ele avançou sobre cadáveres de heróis e mártires, na América Latina vai deslizar suavemente sobre a pasta amorfa da pusilanimidade, da omissão e do colaboracionismo.

E não se iludam com uma intervenção salvadora dos EUA. A ascensão do comunismo na América Latina é do mais alto interesse da esquerda chique americana que aqui representa a nata do poder econômico e, na escala mundial, a vanguarda intelectual e financeira do globalismo. É verdade que aqui essa gente enfrenta uma resistência feroz dos conservadores e nacionalistas, mas estes começaram a lutar muito tarde, só na década de 80, ao passo que a esquerda já dominava os círculos de elite, as universidades, as diversões públicas e a grande mídia desde os anos 30. Hoje os esquerdistas são os donos das verbas oficiais de ajuda ao Terceiro Mundo, que, junto com o dinheiro das fundações multibilionárias, fluem para os movimentos revolucionários e são negados a tudo o que seja ou pareça “de direita”. Experimentem. Tirem a prova. Façam um projeto inspirado em valores judaico-cristãos, na defesa dos direitos individuais e da economia de mercado, e tentem obter ajuda de alguma instituição governamental ou megafundação americana. Na melhor das hipóteses, receberão evasivas educadas. Depois inventem alguma tolice alegando “combate às desigualdades”, abortismo, feminismo, direitos gays, etc.: os cofres se abrirão generosamente. É claro que aqui existe muita gente contra isso, é claro que os conservadores têm hoje o apoio da maioria da população, é claro que uma redescoberta dos valores americanos tradicionais tem criado dificuldades excepcionais para a elite esquerdista, mas ainda há pela frente uma luta de muitas décadas antes que isso possa se refletir numa mudança efetiva da política internacional americana. Mesmo no Oriente Médio, onde o plano Bush de espalhar a democracia entre os povos islâmicos vem alcançando sucessos espetaculares – reconhecidos até no Brasil por um esquerdista doente como Caio Blinder –, o apoio interno ao presidente é continuamente boicotado por meio de campanhas de propaganda, mentirosas até à alucinação, que arriscam abortar a ação americana e devolver o Iraque à quadrilha de Saddam Hussein. Como, nessas condições, poderiam os EUA intervir na América Latina? Se a própria esquerda alardeia como realidade iminente o que é de fato uma impossibilidade flagrante, é porque sabe utilizar o duplo efeito, estimulante e tranqüilizante, da propaganda enganosa: inocular medo e ódio nos corações de nacionalistas sonsos (militares especialmente), anestesiar empresários idiotas infundindo-lhes uma esperança insensata.

Mas talvez a insensatez maior dos antipetistas seja a confiança que têm no PSDB. Esse partido pertence à Internacional Socialista, foi responsável durante o governo Fernando Henrique pela transformação do MST no mais poderoso movimento de massas do continente e pela introdução maciça da propaganda comunista nas escolas. Aceitá-lo como encarnação da “direita” é cair na armadinha verbal do petismo, que demarcou a esquerda moderada como forma extrema de direitismo permitido, criminalizando tudo o mais para assegurar a si próprio o domínio do espectro político inteiro, bloqueando o surgimento de uma autêntica oposição capitalista-democrática.
O próprio Fernando Henrique, sob as palmas entusiásticas do petista Chtristovam Buarque, já declarou que seu partido não tem divergências ideológicas ou estratégicas com o PT, que entre eles não há senão miúdas disputas de poder (inevitáveis mesmo dentro de um regime soviético) e que os objetivos finais de um e de outro são exatamente os mesmos. A malícia pueril brasileira pode enxergar nessa declaração nada mais que uma concessão da boca para fora, um golpe de astúcia caipira. Mas Fernando Henrique não é estúpido o bastante para querer enganar um adversário tarimbado por meio da lisonja barata. Estúpido é o ouvinte que não percebe que o ex-presidente disse apenas uma verdade factual, material, auto-evidente para todos os petistas e tucanos informados.

Petismo e tucanismo correspondem, no microcosmo nacional, ao comunismo e ao socialismo fabiano na escala internacional. O socialismo fabiano é a ideologia orientadora da Comunidade Européia e, em larga medida, da ONU (leiam The European Union Collective, de Christopher Story, Londres, Edward Harle, 2002). Sua idéia básica é instaurar a ditadura socialista – o pleno domínio do Estado sobre todas as iniciativas humanas – não através da revolução, mas de mudanças progressivas na legislação. O símbolo do socialismo fabiano é a tartaruga, designando a lentidão persistente em contraste com a precipitação comunista (durante todas as reuniões de fundação da Comunidade Européia, a mesa diretora ostentou uma tartaruga de louça, trazida pelo ex-presidente francês Valéry Giscard d’Estaing). Hoje sabe-se que os criadores do socialismo fabiano – Sidney e Beatrice Webb – agiam sob orientação direta do governo soviético, apresentando como alternativa ao comunismo aquilo que era apenas o comunismo agindo por meios mais anestésicos. Passados oito décadas, a divisão de trabalho não mudou. Também não mudaram em nada as briguinhas internas que jogam areia nos olhos da platéia. Quando Fernando Henrique declara que, nas investigações sobre o escândalo do Mensalão, é importante “não destruir o PT”, ele sabe o que está dizendo. Trata-se de garantir para o PSDB um lugar melhorzinho no esquema de poder socialista, não de eliminar o esquema enquanto tal.

O tremendo respaldo internacional que esse esquema tem nos círculos globalistas da Europa e dos EUA pode ser medido pela paparicação de Lula por parte da grande mídia americana (arraigadamente anti-Bush), de vários governos europeus e do próprio Fundo Monetário Internacional, que aí ninguém parece saber que é um órgão da burocracia globalista, não um baluarte da liberdade econômica como o apresentam os esquerdistas para camuflar a ajuda que recebem dele.

Se há algo que me desgosta e me irrita é ter de abandonar o plano das análises e diagnósticos, onde me movo à vontade, pelo das sugestões práticas que não cabem ao estudioso e sim aos políticos. Odeio dar conselhos. Mas há um que não posso reprimir. É de uma burrice insana tentar combater com acusações pontuais um esquema estratégico abrangente, que inclui desde o envenenamento ideológico das crianças pequenas até vastas redes internacionais de apoio econômico, político, publicitário e militar. Se vocês querem fazer algo de efetivo contra a hegemonia esquerdista, parem de se iludir com a eficácia utópica das meias-medidas, parem de confiar em comissões de inquérito presididas pelos próprios investigados, parem de querer furar com alfinetes uma couraça de elefante. Admitam que, contra uma estratégia comunista de envergadura continental, só uma estratégia anticomunista de idênticas proporções pode alguma coisa. Admitam que só o que os pode salvar é aquilo que vocês mais temem: o enfrentamento ideológico sistemático, abrangente, completo. Assumam a defesa dos valores judaico-cristãos, do modelo ocidental de democracia, das liberdades individuais e declarem em voz alta o nome do inimigo: comunismo. Se vocês têm medo até mesmo de nomear o bicho, como poderão vencê-lo?

Sei que é tarde, é demasiado tarde, para começar uma briga dessas proporções. Mas há algumas coisas que podem ser feitas com meios modestos e de grande eficácia. Uma delas é, admitindo francamente que já não existe no Brasil autoridade superior à esquerda organizada, reconhecer que está na hora de apelar ao julgamento internacional, usando as armas do próprio globalismo contra os seus protegidos locais. Não custa nada algum grupo interessado encaminhar à Organização dos Estados Americanos uma petição requerendo uma comissão investigativa internacional, independente, para averiguar os crimes do PT. Duvido que alguém aí tenha coragem para isso, mas, quando todas as portas se fecham, é preciso lembrar que ainda existem janelas. Direi mais sobre isso nos próximos artigos.

***

Para vocês fazerem uma idéia de quanto as notícias internacionais chegam ao Brasil invertidas, todo mundo aí está anunciando a saída de Roger Noriega em termos que apresentam o ex-subsecretário como o suprassumo do conservadorismo anticastrista. A verdade é precisamente o contrário. Noriega era um molenga, um “extremista de centro”, e desagradava precisamente por isso. Seu sucessor será muito provavelmente Tom Shannon, homem mais decidido. Isso ainda não trará uma mudança total da política latino-americana do Departamento de Estado do passivo para o ativo, mas certamente representará uma vitória do conservadorismo sobre a inércia burocrática, pró-esquerdista, herdada do governo Clinton. A limpeza que George W. Bush iniciou na CIA parece que está chegando ao Departamento de Estado.

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Terça-feira, no Hudson Institute em Washington, estive na conferência do subsecretário assistente da Defesa para assuntos interamericanos, Roger Pardo-Maurer, sobre “O retorno de uma política exterior agressiva por parte de Cuba”. O conferencista disse coisas que todo mundo já sabia: que há uma crescente ingerência cubana nos países vizinhos, que há um eixo Castro-Chávez em ação no continente, que Fidel Castro dirige e Hugo Chávez financia a agitação na Bolívia para levar o cocalero Evo Morales ao poder.

Poucas horas depois, o jornal venezuelano El Universal publicava em sua edição eletrônica a reação do embaixador da Venezuela, Bernardo Alvarez, segundo o qual as palavras de Pardo-Maurer eram apenas uma tática para espalhar medo e conseguir votos em favor do tratado de livre comércio com a América Central.

A resposta é de uma tolice exemplar. A palestra de Pardo-Maurer foi ouvida por uns trinta indivíduos, no máximo, em geral estudiosos de assuntos latino-americanos, pouco inclinados a assustar-se com notícias velhas. E não havia ali nenhum representante do governo, exceto o próprio conferencista, que por isso não podia razoavelmente esperar alguma atitude prática por parte da platéia.

A importância da reação do embaixador não está no seu conteúdo, mas no simples fato de que ela tenha ocorrido: não havia oficialmente no auditório do Hudson nenhum representante do governo da Venezuela ou da mídia venezuelana. Algum olheiro bem camuflado saiu dali correndo para a embaixada, para fomentar a intriga. Nada mais típico do comunismo: praticar a Guerra Fria e acusar os EUA de querer trazê-la de volta.

 

Automacumba semântica

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 25 de julho de 2005

O termo “neoliberalismo” foi inventado para enganar os nacionalistas, camuflando a aliança discreta entre a esquerda latino-americana e os poderes globais.

WASHINGTON, DC – Acabo de ler a entrevista do sr. Rubens Requeijão na revista Caros Umbigos , e lá vem de novo esse personagem de comédia da Atlântida tentando assustar criancinhas com o fantasma do “neoliberalismo” – o culpado de todos os males.

Mas é só um exemplo entre infinitos. A facilidade, a desenvoltura, a segurança com que no Brasil se usa esse termo, como se designasse uma entidade patente e arquiconhecida, é para mim o sinal mais evidente da psicose nacional, do completo divórcio brasileiro entre linguagem e realidade.

É deprimente observar como os autoproclamados representantes do “pensamento crítico”, incapazes da mais elementar análise crítica de seu próprio discurso, se deixam hipnotizar pelas palavras que empregam. Não existe nenhum “pensamento crítico” se você continua preso numa malha de compactados verbais, impotente para descascar suas várias camadas de significado e confrontá-las com os dados de realidade que presumidamente elas designam. Só o que existe, nessas condições, é pensamento mágico, é automacumba semântica.

“Neoliberalismo”, no vocabulário usual da esquerda – que no Brasil de hoje é o da mídia e da intelectualidade inteiras –, é uma corrente de opinião que favorece (a) a livre-empresa contra a intervenção estatal na economia, (b) o globalismo em detrimento dos interesses nacionais e (c) a moral judaico-cristã tradicional em oposição aos princípios “politicamente corretos”, buscando, por esses três meios, (d) ampliar a hegemonia norte-americana no mundo em prejuízo dos interesses das nações pobres. Com essas características, o neoliberalismo aparece como (e) sinônimo da “direita”, dando-se por pressuposto que (f) é a ideologia dominante no mundo dos negócios e entre os políticos antipetistas e anti-esquerdistas em geral.

Dado o objeto, só resta tomar posição diante dele: a primeira coisa que no Brasil se espera de um político, de um jornalista, de um formador de opinião, é que se defina – ou consinta em ser definido pelos outros – a favor ou contra o neoliberalismo. Tal seria a questão fundamental, o supremo divisor de águas que separa não apenas duas correntes políticas, mas dois sistemas de valores, duas concepções da existência.

A síntese dos elementos designados pela junção das camadas de significado forma um desenho apto a despertar o ódio dos nacionalistas, terceiromundistas e progressistas em geral. Como slogan político criado para reunir forças num vasto front anti-americano, o termo é perfeitamente apropriado.

Só resta perguntar se o objeto assim concebido pode existir efetivamente ou se, ao contrário, o impacto persuasivo da palavra não reside precisamente no fato de que ela junta numa síntese ideal elementos que, na realidade, só podem existir como entidades separadas, heterogêneas ou antagônicas. Um breve exame tirará isso a limpo:

1) Globalismo não é simples abertura de mercados: é introdução de regulamentações em escala mundial que transferem a soberania das nações para organismos internacionais. Nenhum apóstolo da economia de mercado é sonso o bastante para não perceber, hoje em dia, que a abertura das fronteiras arrisca não produzir um paraíso de liberdade econômica, e sim a proliferação de legislações e controles em escala global – o Leviatã dos leviatãs. A incompatibilidade lógica traduz-se, no plano da ação política, como briga de foice entre os liberais clássicos e os planejadores-legisladores econômicos globais. Nos EUA, isso é um fato do dia-a-dia. Mas, como no Brasil e em outros países da América Latina a mídia intoxicada de lendas esquerdistas jamais menciona esse fato, a união harmônica e indissolúvel de liberalismo clássico e globalismo pressuposta no conceito de “neoliberalismo” parece não só viável como realmente existente. Rarissimamente encontrei entre brasileiros um colunista de mídia, cientista social, empresário, analista econômico ou estrategista militar que tivesse alguma consciência desse engano monumental.

2) Um dos temas mais discutidos nos EUA é a contradição aparentemente insolúvel entre abertura econômica e segurança nacional. Os chineses, por exemplo, têm alguma chance de vencer a Chevron na concorrência para a compra da Unocal (a nona maior companhia americana de petróleo), mas, se isso acontecer, as conseqüências estratégico-militares podem ser desastrosas. A maior parte dos poços da Unocal está na Ásia, mais perto da China que dos EUA. Se os chineses cumprirem sua ameaça de invadir Taiwan, a quem a Unocal chinesa vai fornecer combustível? A eles ou às tropas americanas, comprometidas a defender a ilha custe o que custar? E não são só as empresas privadas que, na sua ânsia de livremercadismo absoluto, colocam o país em risco. O próprio governo americano, semanas atrás, estava quase fechando um negócio bilionário de venda de reatores nucleares à China, quando a Câmara dos Deputados, no último instante, vetou a brincadeira. Afinal, só um doido canta vitória comercial quando consegue bom preço na venda de armas ao inimigo que jurou matá-lo. Diante de fatos dessa envergadura – e eles são milhares –, como acreditar nos tagarelas brasileiros quando proclamam que a “idolatria do mercado” é um instrumento do poderio americano? Aqui, quem grita contra essa idolatria são precisamente os conservadores. Há pelo menos dez anos eles estrilam contra a orgia de investimentos na China, que os economicistas de plantão justificavam sob a desculpa da liberdade econômica, dotada, segundo eles, do poder miraculoso de gerar a liberdade política. Hoje as conseqüências dessa ilusão são tão evidentes que há mesmo quem suspeite que ela foi plantada na mente dos investidores americanos com o propósito consciente de esvaziar a ideologia capitalista dos valores morais e culturais que a sustentam, reduzi-la a um triunfalismo econômico suicida e usá-la como instrumento de liquidação das defesas nacionais americanas. Se essa hipótese lhes parece demasiado assustadora para ser verdade, lembrem-se de que a abertura econômica acoplada à destruição sistemática das bases morais do americanismo foi a marca registrada da era Clinton – e ninguém aqui ignora a intensa troca de favores entre os Clintons e a espionagem chinesa. Como lembrou o colunista Terence P. Jeffrey no semanário Human Events – de muita influência nos círculos bushistas –, os chineses leram Clausewitz e chegaram à conclusão de que comprar certos bens de capital é também “fazer política por outros meios”, isto é, guerra por outros meios.

3) Se identificar o globalismo com a ambição nacional americana já é maluquice bastante, ainda mais insano é associá-lo ao conservadorismo religioso que, nos EUA, vem crescendo ano após ano. Para o automatismo mental brasileiro, nada mais óbvio e autoprobante do que essa associação. O cérebro nacional acostumou-se a saltar direto das palavras às reações emocionais que elas evocam, sem a menor necesside de referência a alguma realidade do mundo exterior. Assim, a associação verbal é infalível: religião = reacionarismo; reacionarismo = capitalismo; capitalismo = imperialismo ianque; imperialismo ianque = globalismo; globalismo = neoliberalismo; logo, a moral religiosa tradicional é um instrumento do neoliberalismo. Esse método puramente galináceo de raciocínio é hoje obrigatório em todas as universidades brasileiras, e tamanha é a sua autoridade que a simples tentação de corrigi-lo já desapareceu do fundo das almas. Deve portanto soar como um escândalo intolerável a informação que vou dar a seguir: todos os conservadores religiosos americanos – cristãos ou judeus – são, em maior ou menor medida, contra o globalismo. E são contra por um motivo muito simples: o projeto de cultura mundial administrada, que vem junto com a uniformização econômica do planeta, traz no seu bojo as sementes de uma neo-religião híbrida, meio ecológica, meio ocultista, criada em laboratório por engenheiros comportamentais da ONU (procurem saber quem é Robert Müller), e cuja implantação resulta pura e simplesmente na destruição completa do cristianismo e do judaísmo. Não foi por coincidência que uma onda de anti-semitismo e anticristianismo se espalhou pelo planeta nas últimas décadas: ela veio por intermédio da rede global de ONGs subsidiadas pela ONU e por fundações milionárias, empenhadas na “guerra cultural” pela criação de uma civilização biônica inaceitável para toda mentalidade religiosa tradicional. Mais especialmente, o ataque cultural globalista se volta contra a cultura americana, tentando criminalizar e destruir as suas raízes judaico-cristãs e substituí-las por uma nova moral abortista e hedonista adornada pelo culto de Gaia ou fetiches similares. Nos EUA não há quem não esteja consciente de que esse é o verdadeiro divisor de águas, o verdadeiro campo de combate pelo domínio dos corações e mentes no século XXI. Os debates brasileiros passam a anos-luz de distância do centro dos acontecimentos.

4) Por fim, é absolutamente falso que a esquerda, no Brasil ou em qualquer outro país do continente, oponha alguma resistência ao globalismo, exceto o mínimo indispensável para fins de camuflagem. Nenhuma corrente política existe para se opor àqueles que a subsidiam. As fontes de dinheiro para a esquerda, tanto na América Latina quanto nos EUA e na Europa, são hoje bem conhecidas, e elas são precisamente as mesmas que, a pretexto de livre mercado, financiam o estabelecimento da Nova Ordem Global: as fundações Ford, Rockefeller, MacArthur e sobretudo a rede tentacular de agentes do multibilionário golpista George Soros – eis aí os grandes financiadores e protetores do chavismo, do lulismo, do fidelismo e de todas as demais patologias políticas que, numa atmosfera geral de loucuras e mentiras, tem se apossado velozmente do poder em várias nações do continente. A essas fontes capitalistas devem somar-se os agentes políticos (Partido Democrata, Diálogo Interamericano, os Clintons, os Kennedys e uma multidão de Carters) que ajudam a drenar para os mesmos destinatários o dinheiro do governo americano, principalmente as verbas da USAID. O leitor encontrará nos sites www.discoverthenetwork.org e www.activistcash.com um mapeamento bem minucioso da circulação de dinheiro entre os potentados do globalismo e as organizações que, na América Latina e em outras partes do Terceiro Mundo, fingem combatê-los. Essa elite invariavelmente toma partido da burocracia mundial quando esta fere o interesse nacional dos EUA, tal como aconteceu na guerra do Iraque, nas discussões sobre o Tratado da Lei do Mar, na introdução da moral “politicamente correta” na educação emericana etc. Financiando a esquerda do Terceiro Mundo, ela tem a seu serviço um útil instrumento para enfraquecer a resistência americana, facilitando a implantação do governo mundial que a ONU já declarou ser seu objetivo prioritário para as próximas décadas.

Para isso, precisamente, serve o termo “neoliberalismo”: para ludibriar nacionalistas sonsos nos países pobres, desviando suas pretensões de resistência antiglobalista no sentido de um anti-americanismo despropositado que, hoje, é um dos instrumentos essenciais da ascensão da burocracia mundial.

Intelectuais esquerdistas tagarelas do Terceiro Mundo são os tipos mais caricatos e desprezíveis que a humanidade já conheceu. Estão sempre dispostos a inventar belas desculpas para servir a tudo o que não presta.

Quem quer que use o termo “neoliberalismo” com ares de  falar a sério só pode ser um manipulador de idiotas ou um idiota manipulado. Não creio que algum dia terei interesse em saber em qual dessas duas classes se incluem o sr. Requeijão e os redatores de Caros Umbigos.

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