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Debatendo com o crime

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial) , 10 de maio de 2007

As alegações em favor da liberação do aborto são tão escandalosamente mentirosas que o simples fato de aceitar debatê-las já é conceder-lhes uma honra indevida. Não é a mesma coisa discutir com a pessoa honesta que tem uma idéia errada na cabeça e com vigaristas dispostos a impor suas decisões por meio de quantas fraudes e engodos lhes pareçam necessários para isso. Os abortistas, sob esse aspecto, já superaram a quota de mendacidade rotineira de qualquer movimento social ou político, tornando-se um perigo público que deve ser denunciado como tal. Mesmo porque a impunidade de que vêm desfrutando só os encoraja a usar a própria justiça como instrumento da fraude, perseguindo e acossando os discordantes por meio de trapaças jurídicas como aquela, já aqui denunciada, de tentar criminalizar o uso da palavra abortistas para designá-los, como se existisse termo melhor.

À desonestidade permanente e sistemática da sua propaganda acrescenta-se ainda a brutalidade incomum de uma retórica baseada na intimidação e na chantagem psicológica, que inventa males sociais puramente imaginários para em seguida imputar sua culpa aos adversários do aborto, fazendo da fé religiosa um crime e assim legitimando implicitamente a matança de cristãos e as legislações repressoras que configuram de maneira cada vez mais nítida um deliberado e crescente genocídio cultural.

Só a título de amostra, vejam alguns dos feitos notáveis do movimento abortista, e digam, com toda a franqueza, se essa gente merece um debate educado ou uma resposta judicial à altura.

1. As Católicas pelo Direito de Decidir são uma organização pró-abortista fraudulenta que se finge de católica para ludibriar a população religiosa mas na verdade é explicitamente satanista. Se isso não é propaganda enganosa e estelionato, a lei mudou sem que eu fosse avisado. Já acusei a organização em público por esses crimes, e a presidente da entidade, após uns rosnados de puro blefe, se recolheu a um silêncio altamente significativo.

2. O processo judicial Roe versus Wade , que produziu a legalização do aborto nos EUA, foi uma fraude completa. A própria autora da petição inicial, que solicitava permissão para abortar sob a alegação de estupro, já confessou que não sofreu estupro nenhum, que foi tudo uma invencionice tramada entre ela e os líderes do movimento abortista.

3. As estatísticas que procuravam impressionar o público americano com a alegação de milhões de abortos clandestinos realizados anualmente foram forjadas pelo líder abortista Bernard Natanson, que já confessou tudo. Natanson foi proprietário da maior clínica de abortos dos EUA, mas se arrependeu dos seus crimes, voltou à fé judaica da sua infância e hoje é um dos mais corajosos denunciadores do genocídio abortista. Ainda hoje essas estatísticas monstruosamente aumentadas são brandidas pela grande mídia nacional como argumentos sérios.

4. O financiamento bilionário da campanha abortista vem dos mesmos grupos multinacionais que há meio século tentam impor ao mundo o controle populacional por todos os meios lícitos e ilícitos. A desculpa da campanha era eliminar a miséria no Terceiro Mundo. Hoje está provado que o seu único resultado foi, ao contrário, diminuir a natalidade nos países ricos, desencadeando a onda de imigração ilegal que hoje ameaça destruir a sociedade européia e americana.

Em vez de admitir o erro, os iluminados autores da idéia decidiram redobrar a aposta, adquirindo a peso de ouro o apoio dos partidos de esquerda por toda parte e investindo no controle indireto por meio do incentivo ao aborto e ao homossexualismo. Resultado: aqueles partidos, que na década de 60 denunciavam a campanha de controle populacional como intervenção imperialista, se tornaram os maiores defensores e apóstolos daquilo que condenavam. Se isso não é comércio de consciências, não sei o que é.

5. O comércio de fetos para a indústria de cosméticos é o beneficiário mais direto e óbvio da legalização do aborto, mas nem uma palavra sobre isso se admite nos “debates” montados pela grande mídia, toda ela comprometida com a causa abortista.

É da cultura que estou falando

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial) , 28 de março de 2007

As reações negativas aos meus recentes artigos sobre o liberalismo seguem o mesmo padrão de automatismo mental que neles mencionei. Como o debate político brasileiro não vai além dos temas econômicos e, nestes, como que em obediência à lei da gravidade, volta sempre à contraposição usual de Estado e mercado, o que quer que se diga contra o liberalismo é sempre interpretado como uma apologia ao menos implícita do intervencionismo estatal.

Nesses termos foram respondidos os meus artigos, o que é o mesmo que dizer: não foram respondidos.

Minha objeção central ao liberalismo é sua falta de princípios, seu apego exclusivo a preceitos formais – liberdade e propriedade – que ele toma ingenuamente como se fossem princípios. Preceitos formais são sentenças vazias cujo conteúdo é determinado a posteriori pela sua regulamentação prática. A liberdade de cada um nada significa sem a enumeração clara dos limites impostos à liberdade dos outros. A propriedade, por sua vez, é algo de tão vago e indefinido que não se sabe nem mesmo se um feto em gestação é propriedade de sua mãe ou um cidadão proprietário do seu corpo.

Princípios têm de ser claros e auto-explicativos. Eles têm de determinar por mera dedução lógica a sua própria regulamentação prática em vez de ser determinados por ela. “Não matarás” já contém no significado mesmo da palavra “matar” a distinção entre homicídio doloso, homicídio culposo, guerra e legítima defesa. Estas definições são obtidas por mera análise lógica do conceito principal.

Uma filosofia política constituída de preceitos formais é baseada na ilusão positivista de poder orientar a sociedade tão somente com base em conveniências de ordem funcional prática, fugindo ao confronto com as questões mais gerais e substantivas (“metafísicas”, no linguajar positivista) sobre a natureza humana, o lugar do homem no cosmos, o sentido da vida etc.

O ideal liberal é fazer da sociedade uma máquina neutra que cada consumidor use segundo suas preferências e valores autodeterminados. Isso é impossível. Com exceção dos gênios e profetas inspirados, os indivíduos não inventam seus valores nem os recebem do céu: fazem suas escolhas num leque de opções oferecido pela sociedade. À filosofia política incumbe não só montar a máquina, mas discutir e selecionar os valores a ser oferecidos e negados. Esses valores têm de ser baseados em princípios substantivos, e não em formas vazias, a mera estrutura da máquina. De que serve uma máquina de sanduíches sem nenhum sanduíche dentro? Se o fabricante da máquina se recusa a decidir o que ela vai vender, a única coisa que lhe sobra para pôr à venda é a máquina mesma. A pura defesa da economia de mercado, separada de valores substantivos, faz com que o único valor restante seja o próprio mercado. Mas o mercado é um conjunto de formas vazias. Ele está aberto a todos os valores: bons e maus. Não pode criá-los nem determiná-los. Também não cabe ao Estado fazer isso. O Estado-guru é o ideal fascista e comunista, uma ilusão macabra. Criar e selecionar valores é a função da cultura, da qual faz parte a filosofia política. A cultura, se não tem iniciativa própria, independente do mercado e do Estado, não é cultura de maneira alguma: é apenas propaganda. Fazer abstração dos princípios e valores, deixando-os por conta do mercado, é o mesmo que entregá-los à mercê do Estado, que não tem a menor dificuldade de tornar-se, quando quer, o maior comprador e vendedor de tudo. O liberalismo é uma filosofia política suicida, que alimenta o monstro do intervencionismo pelos mesmos meios com que acredita liquidá-lo. Só uma cultura poderosa pode limitar o Estado, mas para isso ela tem de determinar o leque de escolhas no mercado em vez de ser determinada por ela.

Quando o liberal desiste da utopia da máquina neutra e começa a pensar em valores e princípios, ele pode continuar a chamar-se liberal, se quiser. Mas já é, em substância, um conservador.

Ciência e democracia

Olavo De Carvalho


Diário do Comércio (editorial), 12 e março de 2007

Se você acredita que a “”ciência” pode ao mesmo tempo desfrutar de autoridade pública e obedecer ao princípio de falseabilidade de Popper, você está querendo o impossível. Nenhuma autoridade pública pode ter o direito de mudar de idéia ao primeiro exemplum in contrarium que apareça e anunciar que talvez mude de idéia de novo no dia seguinte se um segundo exemplo impugnar o primeiro. A liberdade da pesquisa científica depende essencialmente da certeza de que nada do que os cientistas digam terá conseqüências graves que eles não possam mudar com a mesma liberdade com que saltam de uma hipótese a outra. Tão logo uma hipótese científica é subscrita pelo Estado e se torna obrigatória por lei, ou é aceita pela sociedade e se torna crença geral, ela se furta ao princípio de falseabilidade e já não pode ser alterada senão pela ação de grupos de pressão e da propaganda em massa. A ciência, ao menos em sua autodefinição ideal, é o inverso da democracia: é o poder de impor a opinião de um só contra a autoridade de todos, desde que a primeira atenda melhor às exigências do método. É o oposto simétrico do governo da maioria.

Não obstante, a alegação de popperianismo convive tão bem com a reivindicação de autoridade pública, que se diria que certos apologistas do saber científico não têm a menor consciência das implicações do que dizem.

Ademais, o princípio de falseabilidade é um saco sem fundo: não se pode alegar um fato contra uma generalização se esse fato não contém em si o germe de uma nova generalização ao menos implícita. E toda nova generalização é, como suas antecedentes, apenas uma hipótese provisória. Uma hipótese provisória pode durar um minuto, dois minutos, três dias, um século, e ser derrubada de repente. Mas se antes de ser derrubada ela já dispõe de autoridade pública e se torna fundamento de leis e instituições, a comunidade científica não tem o poder mágico de anular retroativamente as conseqüências sociais e históricas das mudanças que ela mesma tenha legitimado com base na hipótese agora rejeitada. A autoridade pública da ciência é fraude no sentido mais essencial e incontornável do termo. O exercício da ciência, na medida em que supõe o direito permanente de mudar de idéia, exige a renúncia a toda autoridade pública por absoluta impossibilidade de arcar com as conseqüências duradouras da fé em hipóteses transitórias. Não pode haver autoridade pública sem responsabilidade pública, mas, sendo impossível punir a comunidade científica inteira por crime de responsabilidade como se pune um governante, é forçoso que essa comunidade renuncie à sua autoridade pública para preservar sua própria liberdade de investigação científica.

A coexistência pacífica de “ciência” e “democracia”, quando não a fusão pastosa das duas no “ideal da razão” como guia dos povos, é só um dos muitos delírios iluministas que se impregnaram na imaginação popular ao ponto de fazê-la tomar ingenuamente como homogêneneo e idêntico aquilo que na verdade é diverso e incongruente.

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