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Por linhas tortas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de abril de 2015          

Na vasta bibliografia sobre temas nacionais, especialmente a assinada por autores de esquerda, não há tópico mais abundantemente estudado, explorado, revirado de alto a baixo, do que “a revolução brasileira”. Perdão. É com maiúsculas: Revolução Brasileira.
Livros com esse título, ou com essa expressão no título, foram produzidos por Nelson Werneck Sodré, Franklin de Oliveira, Octávio Malta, Celso Furtado, Pessoa de Moraes, Guerreiro Ramos, Azevedo do Amaral, Jamil Almansur Haddad, Florestan Fernandes, Moisés Vinhas, Danton Jobim, Hélio Silva, José Maria Crispim, Celso Brant e uma infinidade de outros, sem contar aqueles, muito mais numerosos, que trataram do mesmo assunto sem ostentá-lo no título.
Pode parecer estranho o interesse quase obsessivo por esse fenômeno num país que não atravessou nenhuma experiência comparável às revoluções da França, da América, da Rússia, da Espanha ou mesmo do México, limitando-se a nossa sanha revolucionária, a escaramuças locais com derramamento de sangue relativamente modesto no ranking internacional.
No entanto, a referência naqueles títulos não é a nenhum episódio histórico em particular, grande ou pequeno. “Revolução brasileira”, na acepção geral que o termo assumiu numa longa tradição de “interpretações do Brasil”, designa algo como um rio que flui, uma história inteira, um processo intermitente na superfície, contínuo no fundo.
Na verdade, não houve um único grande acontecimento histórico que se pudesse chamar “Revolução Brasileira”. É a série inteira dos pequenos que leva esse nome, designando uma intenção, uma teleologia simbólica subjacente a todos eles: o processo pelo qual o povo, inicialmente um bando de desgarrados e escravos mantidos em obediência estrita sob o peso de uma clique de altos funcionários e senhores de terras (mais tarde banqueiros e capitães de indústria), vai aos poucos emergindo de um estado de passividade abjeta para tentar se tornar o senhor e autor da sua própria História, sempre com sucesso inferior às suas mais ambiciosas expectativas, e por isso mesmo fadado a repetir a tentativa de novo e de novo, em escala um pouco maior.
Contra quem se volta precisamente esse processo? Qual a “classe dominante” que se tenta remover de cima para dar espaço à iniciativa popular? As tentativas de defini-la em termos do marxismo ortodoxo, como “burguesia capitalista exploradora do proletariado”, falharam miseravelmente, tal a míngua de proletários e burgueses num país de poucas indústrias, onde a burguesia industrial só conseguiu ela própria algum espaço quando carregada no colo pela ditadura estatista, semifascista, de Getúlio Vargas.
Na verdade, os autores marxistas não conseguiram sequer entrar num acordo quanto às etapas iniciais e mais remotas do processo, anteriores à Independência, uns falando de “feudalismo”, outros de “capitalismo rural”, outros, ainda, propondo a teoria de uma formação socioeconômica sui generis, alheia às categorias usuais do marxismo, o “escravismo colonial”.
Quem melhor definiu o vilão da história, a meu ver, foi Raymundo Faoro, no clássico Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro (Globo, 1958; ainda prefiro a primeira edição à versão reescrita de 1974, mais volumosa).
Partindo de noções obtidas em Max Weber, Faoro redefinia a índole e os objetivos da Revolução Brasileira em termos mais adequados à realidade do que qualquer marxista teria podido fazer no lugar dele. E eu não conseguiria resumir sua tese com mais exatidão do que o fez Fábio Konder Comparato (leia aqui):
“Para Raymundo Faoro, a sociedade brasileira – tal como a portuguesa, de resto – foi tradicionalmente moldada por um estamento patrimonialista, formado, primeiro, pelos altos funcionários da Coroa, e depois pelo grupo funcional que sempre cercou o Chefe de Estado, no período republicano. Ao contrário do que se disse erroneamente em crítica a essa interpretação, o estamento funcional governante, posto em evidência por Faoro, nunca correspondeu àquela burocracia moderna, organizada em carreira administrativa, e cujos integrantes agem segundo padrões bem assentados de legalidade e racionalidade. Não se trata, pois, daquele estamento de funcionários públicos encontrável nas situações de ‘poderio legal com quadro administrativo burocrático’ da classificação weberiana, mas de um grupo estamental correspondente ao tipo tradicional de dominação política, em que o poder não é uma função pública, mas sim objeto de apropriação privada. ”
O livro demorou para atrair a atenção pública, mas a segunda edição apareceu como uma balsa para os náufragos numa época em que, esfaceladas as guerrilhas, a esquerda brasileira buscava caminhos para a redemocratização do país e ansiava por um discurso que não soasse demasiado comunista aos ouvidos do governo militar – um esforço cujo primeiro resultado objetivo veio com a fundação do PT em 1980.
Faoro tornou-se quase espontaneamente o santo padroeiro do novo partido. Sua casa era frequentada assiduamente pelo sr. Luís Inácio Lula da Silva, que em 1989 chegou a convidá-lo, em vão, para ser candidato à vice-presidência.
Vestindo a camiseta faoriana de inimigo primordial da apropriação privada dos poderes públicos, o PT fez um sucesso tremendo nos anos 90, como denunciador-mor da corrupção nas altas esferas federais e promotor de uma vasta campanha pela “ética na política”, que resultou na quase beatificação do seu líder principal (quando Lula viajava pelas áreas mais pobres do Nordeste, doentes vinham lhe pedir que os curasse por imposição de mãos, como os reis da França).
Àquela altura, o partido parecia mesmo resumir e encarnar o espírito da “Revolução Brasileira”, com toda a expectativa messiânica embutida nesse símbolo. Daí a vitória espetacular de Lula na eleição de 2002.
Aconteceu – sempre acontece alguma coisa – que a liderança esquerdista em geral, e a petista em especial, não lia nem seguia só Raymundo Faoro. Desde os anos 60-70 lia com deleitação crescente os Cadernos do Cárcere e as Cartas de Antonio Gramsci, o fundador do Partido Comunista Italiano e criador da estratégia comunista mais sutil e mais calhorda de todos os tempos: a “revolução cultural” a ser implementada mediante a “ocupação de espaços” em todos os órgãos da administração pública, da mídia, do ensino etc., para culminar no momento em que todo o povo seria socialista sem saber e o partido se tornaria “um poder onipresente e invisível”.
Se Faoro forneceu ao PT a sua identidade aparente e a base do seu discurso “ético”, foi Gramsci quem deu à agremiação a sua estratégia e as suas táticas substantivas. “Gramscismo sob pretextos faorianos” é uma expressão que resume perfeitamente bem a política do PT ao longo de toda a sua existência.
Nunca um partido teve tão bela oportunidade de colocar em prática uma estratégia estritamente comunista sob uma camuflagem weberiana tão insuspeita.
Tudo parecia perfeito. Diante de uma plateia sonsa, a quem a sugestão de que houvesse algum comunismo nisso soava como delírio de “saudosistas da Guerra Fria”, o partido foi “ocupando espaços” e concentrando poder até fazer da administração federal inteira – sem contar o sistema de ensino e a mídia – o instrumento servil dos seus objetivos privados.
Nenhum, nenhum dos seus guias iluminados notou que era impossível fazer isso sem que o partido se transformasse, ele próprio, no odioso e odiado “estamento burocrático”, com o formidável agravante de que, na ânsia de concentrar todo o poder em suas mãos, e sempre enleado na boa consciência de servir à causa da Revolução Brasileira, passou a roubar, trapacear e explorar o povo incomparavelmente mais do que todos os estamentos anteriores.
Faoro morreu em maio de 2003, quatro meses depois de Lula tomar posse no seu primeiro mandato, e não teve tempo de meditar, nem muito menos de alertar o PT, quanto ao desastre que a síntese artificiosa e perversa, o “faorogramscismo”, anunciava como desenvolvimento fatal do processo.
Inevitavelmente, os papéis se inverteram: transmutado por obra do gramscismo na encarnação máxima e mais cínica do “tipo tradicional de dominação política, em que o poder não é uma função pública, mas sim objeto de apropriação privada”, o PT, quando por fim a população em massa se voltou contra ele, revoltada ante os maiores escândalos financeiros de todos os tempos, no fundo dos quais ela enxergava ainda que vagamente a premeditação gramsciana, viu-se perdido, desorientado, atônito, seus líderes ora escondendo-se no palácio como aristocratas assustados na Paris de 1789, ora tentando camuflar o medo mediante bravatas truculentas de um ridículo sem par.
Sim, a Revolução Brasileira está nas ruas. É ela, e não outro personagem qualquer. E veio com mais força do que nunca, brotando da pura espontaneidade popular, quase sem líderes (ou com tantos que se diluem uns aos outros), sem dinheiro, sem respaldo em partidos – o povo contra o “estamento burocrático”. Como diria o próprio alvo supremo da ira popular, “nunca ânftef na iftória dêfte paíf” esse povo demonstrou vontade tão firme e inabalável de ser seu próprio mentor e guia, de criar sua própria História, de mandar às favas todos os importantões e de calar de vez as bocas dos mentirosos. A começar pelas da sra. Rousseff e do sr. Lula.
Quem mandou o PT confiar nas falsas espertezas do gramscismo? Deus realmente escreve direito por linhas tortas.

Aprendendo com o povão

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de abril de 2015          

A queda abrupta na audiência da TV Globo ilustra algo que venho dizendo aqui há semanas: a revolta popular não é só contra meia dúzia de políticos ladrões, nem só contra a sra. Dilma Rousseff, o PT ou mesmo o Foro de São Paulo: é contra toda a elite que os protegeu e os legitimou no poder à força de mentiras e desconversas.
Sempre de joelhos ante as modas estrangeiras mais idiotas, e manipulados por intelectuais ativistas que, a despeito da sua mediocridade, sempre deslumbraram as suas mentes ainda mais medíocres, os donos dos nossos meios de comunicação puseram todos os seus formidáveis recursos a serviço de uma “revolução cultural”, cuja simples existência ignoravam, e que foi, aliás, concebida precisamente para ser levada a cabo por idiotas úteis que a ignoravam.
Antonio Gramsci é bastante explícito quanto a esse ponto: não se trata de “conquistar corações e mentes”, como afirmou esse asno pomposo que ocupa o Ministério da Educação, mas, bem ao contrário, de fazer com que “todos sejam socialistas sem sabê-lo”, de dominar o “senso comum” a tal ponto que massas inteiras da população repitam chavões e slogans sem ter a menor ideia da sua origem e da sua função num plano estratégico de conjunto.
A diferença entre o antigo militante proletário conquistado para a causa do comunismo e o moderno servidor da revolução cultural é tão imensurável que, por si, basta para ilustrar a elasticidade psicopática da mente revolucionária, sempre pronta a trocar de atitude, de discurso e de valores cada vez que julga isso necessário para o aumento do seu poder.
O primeiro decorava manuais de marxismo-leninismo, era hipersensível ao menor desvio da ortodoxia partidária e proclamava orgulhosamente sua condição de comunista militante, sacrificando bens, vida, honra e liberdade, tudo pela causa.
Em volta dele existiam, é claro, alguns idiotas úteis sem cultura marxista, que se associavam à luta por motivos subjetivos totalmente estranhos ao marxismo, que levavam o militante genuíno às gargalhadas.
Na militância gramsciana, as proporções inverteram-se: o grosso da contingente compõe-se de idiotas úteis, os militantes doutrinados reduziram-se a uma discreta elite dirigente que não faz a menor questão de que seus seguidores saibam por que a seguem.
Os motivos subjetivos, que antes eram apenas acréscimos acidentais ao corpo da luta revolucionária, tornaram-se a propaganda oficial, que na mesma medida perdeu toda unidade e coerência, estilhaçando-se numa poeira alucinante de chavões e cacoetes mentais desencontrados, bons para todos os temperamentos e preferências, incluindo a expressão histérica das insatisfações mais fúteis que o marxista puro-sangue de antigamente desprezava como “pequeno-burguesas”.
A pessoa e os feitos do sr. Jean Wyllys ilustram esse estado de coisas da maneira mais didática que se pode imaginar. Na sua ânsia de juntar num front comum tudo quanto lhe pareça antiocidental e anticristão, ele exige que as escolas esmigalhem de vez os cérebros das crianças com aulas simultâneas de gayzismo e de islamismo.
Cada pequeno brasileiro será portanto informado de que ele deve fazer aquilo que, se ele fizer, será punido com pena de morte.
Às vezes as pessoas clamam contra a “doutrinação marxista” nas escolas, mas “doutrinação” é eufemismo: os tempos da doutrinação já passaram. O que ali se faz é infinitamente mais destrutivo do que qualquer doutrinação. Pascal Bernardin, no livro Maquiavel Pedagogo (veja aqui), descreveu em minúcias como as técnicas adotadas na educação das crianças hoje em dia são calculadas para induzir mudanças de comportamento sem passar pela aprovação consciente.
Não se trata de “conquistar corações e mentes”, mas de adestrar os corpos no aprendizado da macaquice.
O apelo à consciência é cada vez mais reduzido, ao ponto de que aquele que passou por esse treinamento se torna incapaz de perceber as mais grotescas incoerências no seu discurso, mesmo quando elas tornam irrealizável na prática aquilo que ele proclama como seu sonho e ideal.
O sr. Jean Wyllys é o produto perfeito e acabado de um sistema de ensino montado para produzir idiotas úteis em escala industrial.
É evidente que, abolido o confronto ideológico explícito, dissolvida a ortodoxia marxista num farelo de estereótipos para todos os gostos, cada freguês podendo escolher à vontade os “direitos humanos”, a “anti-homofobia”, o “antirracismo”, o culto de uma lendária superioridade espiritual do Oriente, a mitologia indigenista, a liberação das drogas, os delírios da New Age, o ressentimento feminista, o islamismo ou tudo isso de uma vez, o mero fato de um sujeito ser pessoalmente um bilionário capitalista, e,  eventualmente o dono de uma rede de canais de TV, não o torna imune, no mais mínimo que seja, à contaminação de uma lepra mental que assume todas as formas e o assalta por todos os lados.
Foi assim que os donos da mídia, sem percebê-lo nitidamente, e até mesmo negando-o peremptoriamente, se tornaram servidores da “revolução cultural” que os abomina e despreza ao ponto de imaginá-los – pasmem! – responsáveis pelos movimentos de protesto anti-PT.
O sr. João Pedro Stedile proclamando “A Globo fez tudo isso”, ao mesmo tempo que os manifestantes escorraçavam os repórteres da Globo a cusparadas – eis uma cena representativa da confusão monstruosa que o gramscismo produziu na mente brasileira.
Enquanto os “intelectuais” e “formadores de opinião” mostravam cada vez mais nada entender do que estava acontecendo, exemplificando eles próprios o estado de turva inconsciência reinante, o povão, quase por milagre, apreendeu a unidade oculta por trás dos rostos cambiantes e inumeráveis do seu inimigo, e se voltou contra ele com uma determinação e uma coragem admiráveis.
Domingo ele vai nos dar mais uma lição a respeito.

Um cadáver no poder (II)

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 29 de janeiro de 2015

 

Volto à análise da Teologia da Libertação.
Se a coisa e até o nome que a designa vieram prontos da KGB, isso não quer dizer que seus pais adotivos, Gutierrez, Boff e Frei Betto, não tenham tido nenhum mérito na sua disseminação pelo mundo. Ao contrário, eles desempenharam um papel crucial nas vitórias da TL e no mistério da sua longa sobrevivência.

Os três, mas principalmente os dois brasileiros, atuaram sempre e simultaneamente em dois planos. De um lado, produzindo artificiosas argumentações teológicas para uso do clero, dos intelectuais e da Cúria romana. De outro lado, espalhando sermões e discursos populares e devotando-se intensamente à criação da rede de militância que se notabilizaria com o nome de “comunidades eclesiais de base” e viria a constituir a semente do Partido dos Trabalhadores. “Base” é aliás o termo técnico usado tradicionalmente nos partidos comunistas para designar a militância, distinguindo-a dos líderes. Sua adoção pela TL não foi mera coincidência. Quando os pastores se transformaram em comissários políticos, o rebanho tinha mesmo de tornar-se “base”.

No seu livro E a Igreja se Fez Povo, de 1988, Boff confessa que foi tudo um “plano ousado”, concebido segundo as linhas da estratégia da lenta e sutil “ocupação de espaços” preconizada pelo fundador do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci. Tratava-se de ir preenchendo aos poucos todos os postos decisivos nos seminários e nas universidades leigas, nas ordens religiosas, na mídia católica e na hierarquia eclesiástica, sem muito alarde, até chegar a época em que a grande revolução pudesse exibir-se a céu aberto.
Logo após o conclave que o elegeu, em 1978, o papa João Paulo I teve um encontro com vinte cardeais latino-americanos e ficou muito impressionado com o fato de que a maioria deles apoiava ostensivamente a Teologia da Libertação. Informaram-lhe, na ocasião, que já havia mais de cem mil “comunidades eclesiais de base” disseminando a propaganda revolucionária na América Latina. Até então, João Paulo I conhecia a TL apenas como especulação teórica. Nem de longe imaginava que ela pudesse ter se transformado numa força política de tais dimensões.

Em 1984, quando o cardeal Ratzinger começou a desmontar os argumentos teóricos da “Teologia da Libertação”, já fazia quatro anos que as “comunidades eclesiais de base” tinham se transfigurado num partido de massas, o Partido dos Trabalhadores, cuja militância ignora maciçamente quaisquer especulações teológicas, mas jura que Jesus Cristo era socialista porque assim dizem os líderes do partido.

Dito de outro modo, a pretensa argumentação teológica já tinha cumprido o seu papel de alimentar discussões e minar a autoridade da Igreja, e fora substituída, funcionalmente, pela pregação aberta do socialismo, onde o esforço aparentemente erudito de aproximar cristianismo e marxismo cedia o passo ao manejo de chavões baratos e jogos de palavras nos quais a militância não procurava nem encontrava uma argumentação racional, mas apenas os símbolos que expressavam e reforçavam a sua unidade grupal e o seu espírito de luta.
O sucesso deste segundo empreendimento foi proporcional ao fracasso do trio na esfera propriamente teológica. É possível que na Europa ou nos EUA um formador de opinião com pretensões de liderança não sobreviva à sua desmoralização intelectual, mas na América Latina, e especialmente no Brasil, a massa militante está a léguas de distância de qualquer preocupação intelectual e continuará dando credibilidade ao seu líder enquanto este dispuser de um suporte político-partidário suficiente.

No caso de Boff e Betto, esse suporte foi nada menos que formidável. Fracassadas as guerrilhas espalhadas em todo o continente pela OLAS, Organización Latino-Americana de Solidariedad, fundada por Fidel Castro em 1966, a militância se refugiou maciçamente nas organizações da esquerda não-militar, que iam colocando em prática as ideias de Antonio Gramsci sobre a “ocupação de espaços” e a “revolução cultural”. A estratégia de Gramsci usava a infiltração maciça de agentes comunistas em todos os órgãos da sociedade civil, especialmente ensino e mídia, para disseminar propostas comunistas pontuais, isoladas, sem rótulo de comunismo, de modo a obter pouco a pouco um efeito de conjunto no qual ninguém visse nada de propaganda comunista, mas no qual o Partido, ou organização equivalente, acabasse controlando mentalmente a sociedade com “o poder invisível e onipresente de um mandamento divino, de um imperativo categórico” (sic).

Nenhum instrumento se prestava melhor a esse fim do que as “comunidades eclesiais de base”, onde as propostas comunistas podiam ser vendidas com o rótulo de cristianismo. No Brasil, o crescimento avassalador dessas organizações resultou, em 1980, na fundação do Partido dos Trabalhadores, que se apresentou inicialmente como um inocente movimento sindicalista da esquerda cristã e só aos poucos foi revelando os seus vínculos profundos com o governo de Cuba e com várias organizações de guerrilheiros e narcotraficantes. O líder maior do Partido, Luís Inácio “Lula” da Silva, sempre reconheceu Boff e Betto como mentores da organização e dele próprio.

Nascido no bojo do comunismo latino-americano por intermédio das “comunidades eclesiais de base”, o Partido não demoraria a devolver o favor recebido, fundando, em 1990, uma entidade sob a denominação gramscianamente anódina de “Foro de São Paulo”, destinada a unificar as várias correntes de esquerda e a tornar-se o centro de comando estratégico do movimento comunista no continente.

Segundo depoimento do próprio Frei Betto, a decisão de criar o Foro de São Paulo foi tomada numa reunião entre ele, Lula e Fidel Castro, em Havana. Durante dezessete anos o Foro cresceu em segredo, chegando a reunir aproximadamente duzentas organizações filiadas, misturando partidos legalmente constituídos, grupos de sequestradores como o MIR chileno e quadrilhas de narcotraficantes como as Farc, que juravam nada ter com o tráfico de drogas mas então já costumavam trocar anualmente duzentas toneladas de cocaína colombiana por armas contrabandeadas do Líbano pelo traficante brasileiro Fernandinho Beira-Mar.

Quando Lula foi eleito presidente do Brasil, em 2002, o Foro de São Paulo já havia se tornado a maior e mais poderosa organização política em ação no território latino-americano em qualquer época, mas sua existência era totalmente desconhecida pela população e, quando denunciada por algum investigador, cinicamente negada. O bloqueio chegou ao seu ponto mais intenso quando, em 2005, o sr. Lula, já presidente do Brasil, confessou em detalhes a existência e as atividades do Foro de São Paulo. O discurso foi publicado na página oficial da Presidência da República, mas mesmo assim a grande mídia em peso insistiu em fingir que não sabia de nada.

Por fim, em 2007, o próprio Partido dos Trabalhadores, sentindo que o manto de segredo protetivo já não era necessário, passou a alardear aos quatro ventos os feitos do Foro de São Paulo, como se fossem coisa banal e arqui-sabida. Somente aí os jornais admitiram falar do assunto.

Por que o segredo podia agora ser revelado? Porque, no Brasil, toda oposição ideológica tinha sido eliminada, restando apenas sob o nome de “política” as disputas de cargos e as acusações de corrupção vindas de dentro da própria esquerda; ao passo que, na escala continental, os partidos membros do Foro de São Paulo já dominavam doze países. As “comunidades eclesiais de base” haviam chegado ao poder. Quem, a essa altura, iria se preocupar com discussões teológicas ou com objeções etéreas feitas vinte anos antes por um cardeal que levara a sério o sentido literal dos textos e mal chegara a arranhar a superfície política do problema?

Nos doze anos em que permaneceu no poder, o PT expulsou do cenário toda oposição conservadora, partilhando o espaço político com alguns aliados mais enragés e com uma branda oposição de centro-esquerda, e governou mediante compras de consciências, assassinatos de inconvenientes e a apropriação sistemática de verbas de empresas estatais para financiar o crescimento do partido.

A escalada da cleptocracia culminou no episódio da Petrobrás, onde o desvio subiu à escala dos trilhões de reais, configurando, segundo a mídia internacional, o maior caso de corrupção empresarial de todos os tempos. Essa sucessão de escândalos provocou algum mal-estar na própria esquerda e constantes reclamações na mídia, levando a intelligentsia petista a mobilizar-se em massa para defender o partido. Há mais de uma década os srs. Betto e Boff estão ocupados com essa atividade, na qual a teologia só entra como eventual fornecedora de figuras de linguagem para adornar a propaganda partidária. A TL havia assumido, finalmente, sua mais profunda vocação.

Quem quer que leia os escritos de Gutierrez, Boff e Betto descobre facilmente as suas múltiplas inconsistências e contradições. Elas revelam que esse material não resultou de nenhum esforço teorizante muito sério, mas do mero intuito de manter os teólogos de Roma ocupados em complexas refutações teológicas enquanto a rede militante se espalhava por toda a América Latina, atingindo sobretudo populações pobres desprovidas de qualquer interesse ou capacidade de acompanhar essas altas discussões.
Os boiadeiros chamam isso de “boi-de-piranha”: jogam um boi no rio para que os peixes carnívoros fiquem ocupados em devorá-lo, enquanto uns metros mais adiante a boiada atravessa as aguas em segurança.

Intelectualmente e teologicamente, a TL está morta há três décadas. Mas ela nunca foi um movimento intelectual e teológico. Foi e é um movimento político adornado por pretextos teológicos artificiosos e de uma leviandade sem par, lançados nas águas de Roma a título de “boi de piranha”. A boiada passou, dominou o território e não existem piranhas de terra firme que possam ameaçá-la.

Sim, a TL está morta, mas o seu cadáver, elevado ao posto mais alto da hierarquia de comando, pesa sobre todo um continente, oprimindo-o, sufocando-o e travando todos os seus movimentos. A América Latina é hoje governada por um defunto.

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