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A direita autocastrada

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 28 de agosto de 2006

Quando me perguntam como quebrar a hegemonia esquerdista, a primeira fórmula que me ocorre é a do poeta austríaco Hugo von Hofmannsthal: “Nada se torna realidade na política de um país se antes não está presente, como espírito, na sua literatura.” A palavra “literatura”, aí, tem a acepção ampla de cultura superior escrita. Criem uma cultura superior na qual predominem os valores liberais e conservadores, e a esquerda não terá mais chance na política. Este resultado não se seguirá automaticamente, é claro, mas sem essa limpeza prévia do terreno mental nenhuma iniciativa política poderá prosperar contra o esquerdismo triunfante e monopolístico.

Entrem numa livraria qualquer e verão nas prateleiras a demonstração clara do que estou dizendo: a ascensão do império petista foi precedida de meio século de ocupação do espaço cultural. Antes de o Estado ser engolido pelo PT, impregnaram-se de esquerdismo militante as idéias, os juízos de valor, as palavras, os sentimentos, até as reações automáticas de aplauso e rejeição. A esquerda dominou de tal modo o imaginário nacional que até quem a detesta não ousa criticá-la senão nos termos dela, como se fosse possível derrotar politicamente o inimigo fortalecendo o controle ideológico que ele exerce sobre a sociedade. Políticos tarimbados como os srs. Marco Maciel, José Sarney ou Cláudio Lembo mimetizam o discurso politicamente correto, esperando atenuar sua imagem de “direitistas” e só conseguindo com isso atrair, junto com o ódio usual, uma boa dose de desprezo.

Essa falsa esperteza, tão miúda e provinciana quanto suicida, é o máximo de inteligência estratégica que um exame histológico atento revelará nos cérebros dos políticos “de direita” neste país. Com a colaboração prestimosa e servil dessas criaturas, os critérios e juízos de valor esquerdistas se impregnaram tão profundamente na mentalidade das classes falantes que já não são reconhecidos como tais: tornaram-se dogmas do senso comum. Nessa atmosfera, não é de estranhar que os eventuais opositores do governo já nem mesmo consigam imaginar o que é uma luta política, mas entendam sob esse termo a mera concorrência eleitoral. Essa é a diferença, no Brasil, entre a esquerda e a “direita”: a primeira quer o poder, a segunda quer apenas mandatos. Mandatos conquistam-se nas eleições; a luta pelo poder abrange um território muito mais amplo. Eleição não é política, é o resultado de uma política preexistente que começa no fundo anônimo e obscuro da sociedade, naquela camada quase invisível onde a hegemonia cultural se traduz como influência sutil exercida sobre as emoções básicas da população.

A esquerda sabe disso, a “direita” não. Os partidos de esquerda marcam sua presença numa variedade impressionante de campos da vida social – escolas, sindicatos, campanhas humanitárias, clínicas de psicoterapia e aconselhamento, telas de cinema, exposições de arte, novelas, programas culturais e educativos da TV, o diabo. A direita só é visível nos comitês eleitorais, às vésperas da votação. Isso é assim já faz muitos anos. Quem quer que tivesse observado esse fenômeno, como eu observei, teria chegado, como cheguei há mais de uma década, à conclusão de que a total esquerdização da vida política nacional era não só previsível como inevitável a prazo mais ou menos curto. Os inumeráveis idiotas – políticos, empresários, intelectuais, oficiais militares – a quem expus essa conclusão em tempo de reverter o processo, e que riram dela do alto de sua ignorância presunçosa, olhavam apenas o panorama eleitoral e, vendo ali a vitória fácil de um Collor, de um Fernando Henrique, proclamavam: a esquerda jamais dominará este país.

Ainda às vésperas das eleições de 2002, algumas dúzias desses sábios, selecionados entre brasileiros e brazilianists, consultados pelo Los Angeles Times, asseguravam que Lula não teria mais de trinta por cento dos votos. Não entendiam que os resultados das eleições anteriores refletiam apenas o conservadorismo residual da população brasileira, o qual, desprovido de canais de expressão cultural e partidária, acabaria por ceder terreno à invasão esquerdista. Tanto mais que esta última tomava o cuidado de não se apresentar ostensivamente como tal, camuflando-se de “populismo” ideologicamente neutro e ludibriando até observadores estrangeiros experientes como Mário Vargas Llosa.

Chamemos de direita, para fins de raciocínio, o conjunto heterogêneo e inorganizado dos que não querem viver sob o socialismo. Eles constituem, segundo uma pesquisa da Folha de S. Paulo, 47 por cento da população brasileira, face a 30 por cento de esquerdistas professos. Os restantes 23 por centro definem-se como centristas, com a ressalva de que aquilo que imaginam como centrismo inclui o apoio ostensivo a propostas conservadoras em matéria de moral e segurança pública. Com ou sem nome, a direita é 70 por cento dos brasileiros. Um programa político ostensivamente conservador teria portanto sucesso eleitoral garantido. Mas, como esse programa não existe — e se tentasse existir teria de vencer em primeiro lugar o desafio de criar uma linguagem própria num panorama semântico já totalmente impregnado de esquerdismo –, o resultado é que a população conservadora acaba votando em candidatos de esquerda nos quais não percebe esquerdismo nenhum mas apenas as qualidades externas mais afins à exigência conservadora, a começar, é claro, pela honestidade e honradez. Mas que honestidade e honradez pode haver em políticos que passam o tempo todo tentando parecer o que não são? E qual político brasileiro, de esquerda ou “direita”, se ocupa hoje de alguma coisa que não seja precisamente isso?

Assim, toda a política brasileira tornou-se um sistema de armadilhas e auto-enganos: o eleitorado vota maciçamente em candidatos que representam o contrário simétrico das suas aspirações, os políticos que poderiam representar essas aspirações recusam-se obstinadamente a fazê-lo e se apegam à busca de uma sobrevivência degradante por meio da parasitagem servil do discurso adversário. É tudo fingimento, hipocrisia, teatro, camuflagem, desconversa. Nenhuma discussão objetiva do que quer que seja é possível nessas condições. Os tais “problemas nacionais” podem esperar sentados: nenhuma discussão política, pelos proximos anos, tocará em nada que tenha algo a ver com a realidade. Nossa única esperança de um despertar coletivo é o programa comunista do Foro de São Paulo alcançar sucesso total e, tranquilizado pela ausência de oposições, arrancar finalmente a máscara e dizer a que veio. Aí a platéia chocada perceberá que, por décadas, viveu entre as névoas de uma fantasia entorpecente. Mas essa tomada de consciência tardia já não servirá para nada, exceto para produzir lágrimas inúteis em torno da vida que poderia ter sido e que não foi.

Entre os homens da “direita”, muitos teimaram em recusar os meus diagnósticos, ao longo dos anos, sob o pretexto de que eu era demasiado pessimista. Nem percebiam o quanto sua resposta provava o que eu dizia. Pessimismo e otimismo são atitudes da mente, são estados subjetivos. Não têm nada a ver com a situação externa, com a realidade das coisas. É possível ser pessimista diante de uma situação objetivamente positiva e otimista quando tudo está perdido. Quando uma descrição do estado de coisas é rejeitada por ser “pessimista”, é claro que o ouvinte está respondendo na clave dos seus estados emocionais e não no da percepção da realidade. Ele não está impugnando um diagnóstico: está reagindo contra os sentimentos desagradáveis que ele lhe infunde. É uma mera reação de autodefesa psicológica, uma autovacina contra a depressão pressentida. Só reage assim quem está fragilizado demais para abstrair-se de estados emocionais e concentrar a atenção na realidade. Os fortes não têm medo de encarar o pior: os fracos fogem dele porque sua mera visão os esmaga. Aquelas afetações de otimismo, fingindo desprezo superior ante as minhas análises deprimentes, não eram senão sintomas de debilidade terminal. A liderança “direitista” já não tinha força nem para admitir sua própria fraqueza.

Um pouco mais adiante, ela agravou mais ainda a sua situação, quando, após a revelação dos crimes do PT, perdeu a oportunidade de denunciar toda a trama comunista do Foro de São Paulo e, por covardia e comodismo, se limitou a críticas moralistas genéricas e sem conteúdo ideológico. Estas podiam facilmente ser apropriadas pela esquerda, e de fato o foram. Rapidamente alguns ratos abandonaram o navio petista e trataram de tirar proveito do naufrágio, sendo ajudados nisso pela recusa obstinada da “direita” de falar de assuntos politicamente incorretos  O único resultado objetivo alcançado pelas denúncias de corrupção no governo foi a ascensão da sra. Heloísa Helena nas pesquisas eleitorais. Agradeçam esse resultado à autocastração voluntária da liderança “direitista”.

A guerra das vestais

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 24 de agosto de 2006

Nativo de um país onde o cumprimento de praxe oferecido às damas são dois beijinhos no rosto — três para as solteiras –, não posso deixar de sentir desprezo pelo moralismo encenado, hipócrita em último grau, das queixas alegadas para derrubar o ministro israelense Haim Ramon e desestabilizar o governo de uma nação em perigo.

Mas vejo claramente que por trás da loucura há um método — e a astúcia que o inspira não é nada desprezível.

Aceitar novos padrões de conduta é absorver os valores que eles transmitem. O código politicamente correto esmaga as normas baseadas na tradição religiosa e no hábito consagrado, colocando em seu lugar, com a brutalidade dos decretos inexoráveis, um sistema de cobranças artificiosas inspiradas em valores paradoxais como a empáfia feminista, o exibicionismogay, o ódio racial e político, a rejeição pueril das responsabilidades da gravidez — tudo isso impingido como alta e irrecorrível obrigação moral. A acrobacia mental requerida para o cidadão adaptar-se a essa mutação súbita traz um dano profundo e dificilmente curável. Os engenheiros comportamentais que conduzem o processo da transformação social forçada sabem muito bem o que estão fazendo: estão cortando redes inteiras de reflexos condicionados, dinamitando os alicerces das personalidades, reduzindo almas adultas, por meio da dissonância cognitiva, à condição de bebês indefesos carentes de apoio grupal (leiam Pascal Bernardin, “Machiavel Pédagogue). O conteúdo explícito das novas regras pouco interessa. Os debates a respeito são puro diversionismo. O importante é o desconforto cerebral, calculado para induzir passividade, dependência, aceitação rápida e indiscutida do inaceitável. Assim uma geração orgulhosa de sua rebeldia juvenil contra mandamentos religiosos milenares acaba se curvando servilmente a exigências fúteis mil vezes mais repressivas.

Voltada contra pessoas e famílias, a artimanha já é de uma crueldade psíquica absolutamente criminosa. A novidade da década é o seu uso como instrumento da guerra assimétrica. Já não se trata de subjugar indivíduos, mas de colocar nações inteiras de joelhos ante os caprichos da Rainha de Copas. O império do politicamente correto começa vetando palavras, policiando olhares, maliciando automatismos impensados. As vítimas riem, submetem-se por preguiça, sem perceber que o acúmulo de proibições absurdas vai fabricando aos poucos uma arma mortífera contra a ordem social, as liberdades públicas e, por fim, a segurança do Estado.

Quando a estabilidade política de um país em guerra tem de ser sacrificada à presunção vaidosa de uma soldadinha que se acha pura e excelsa demais para receber o distraído “selinho” dado por um ministro, o alcance monstruoso da operação se revela de repente, todo de uma vez: de nada adianta Israel (ou a América) ter um exército valoroso lutando no exterior, se no interior seu povo é vulnerável à chantagem maliciosa de inimigos camuflados em vestais ofendidas. Na guerra assimétrica, são as vestais, não as bombas e canhões, que determinam a vitória.

Ensaio de patifaria comparada

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 21 de agosto de 2006

A situação na terrinha anda tão deprimente que se tornou uma questão de auxílio humanitário lembrar aos brasileiros, de tempos em tempos, que o nosso país não tem o monopólio da patifaria universal. A propaganda anti-religiosa espalhada por ONGs milionárias, por intelectuais ativistas e pela mídia chique nos EUA tem apelado a expedientes tão mesquinhos, tão sórdidos, que às vezes chego a me perguntar se não fui demasiado impiedoso com os vigaristas nacionais em O Imbecil Coletivo.

O artigo que reproduzo abaixo foi escrito originariamente em inglês para um público americano, mas, tão logo botei nele um ponto final, achei que seria útil para os meus compatriotas, não só pelo que informa da guerra cultural nos EUA, mas por fornecer um exemplo de como as sociedades altamente desenvolvidas são também altamente desenvolvidas no que não presta. Espero que sirva de consolo aos leitores do noticiário nacional da semana.

O motivo que me levou a escrevê-lo foi um artigo cheio de golpes baixos publicado pelo prestigioso biólogo Jerry Coyne em The New Republic, uma revista esquerdista que, em geral, é anormalmente decente. O autor da coisa, irritado com a articulista conservadora Ann Coulter, tentava desmoralizá-la esfregando no nariz dela suas credenciais acadêmicas de professor da Universidade de Chicago; mas, levado pelo ódio emburrecedor, acabava apresentando argumentos que fariam corar de vergonha o próprio dr. Emir Sader, se não padecesse de icterícia mental.

A sra. Coulter disputa com Rush Limbaugh e Michael Savage o primeiro lugar na lista dos colunistas mais odiados pelo establishment de esquerda. O currículo que ela apresenta para isso constitui-se de uma língua ferina vitaminada por um senso de humor desconcertante e uma capacidade de pesquisa fora do comum. Além disso, como a mulher é bonitona, fica mais irritante ainda. Sua popularidade cresceu a tal ponto que uma fábrica de brinquedos fez dela o modelo para uma bonequinha da série Barbie: você aperta a barriguinha dela e ela diz coisas horríveis contra os esquerdistas.

O prof. Coyne ficou especialmente revoltado com o último livro da sra. Coulter, Godless: The Church of Liberalism, “Os Sem Deus: A Igreja do Esquerdismo” (Crown Forum, 2006), que submete a seita esquerdista-materialista-evolucionista a um tratamento tão sádico quanto merecido. Para insinuar que a dona estava enfeitiçada, o cientista de Chicago deu a seu artigo de protesto o título trocadilhesco de “Coultergeist” e anunciou solenemente sua intenção de exorcizar a sra. Coulter mediante a água benta da sua erudição biológica. Infelizmente, a raiva foi tanta que o capeta acabou se apossando é da mente do professor, induzindo-o a exibições de raivinha mais próprias da inveja feminina do que da investigação científica.

Mas não pensem que esse artigo constitui uma exceção aberrante. O que me chamou a atenção nele foi, ao contrário, a sua tipicidade: querendo contestar o retrato cruel que Ann Coulter fizera da tribo intelectual esquerdista, o prof Coyne o ilustra com exatidão milimétrica.

Esperei uns dias e, como ninguém respondesse ao professor, resolvi fazê-lo eu mesmo, escrevendo, a duras penas, em língua de gringo, que aqui retraduzo em português:

 

O modo de raciocinio do prof. Coyne

 

Ao comentar o artigo do prof. Jerry Coyne, “Coultergeist” (The New Republic, online, 31 july 2006) não tentarei defender Ann Coulter — eu poderia antes tomar lições dela sobre como defender-me a mim mesmo. Nem prodigalizarei aos gentis leitores as minhas eruditíssimas opiniões sobre evolução, design inteligente, etc., pela simples razão de que não tenho nenhuma. Concedendo à minha irresoluta pessoa o direito de permanecer em dúvida em questões nas quais as certezas absolutas são tão abundantes hoje em dia, deixarei de lado essas altas matérias, limitando-me a enfocar alguns dos argumentos do prof. Coyne, os quais ilustram de maneira muito didática como a profunda ignorância de um assunto não é jamais obstáculo a que alguém o discuta com elevada autoridade científica.

De modo geral, boa parte da atividade acadêmica hoje em dia consiste em delimitar com cuidadosa precisão as fronteiras de um campo especializado de pesquisas e, com base na autoridade adquirida no seu estudo, dar opiniões sobre tudo o mais.

Como tarimbado professor de ecologia e evolução da Universidade de Chicago, o prof. Coyne está habilitado a afirmar que faltam à sra. Coulter as habilidades acadêmicas requeridas para a discussão desses assuntos. Mas, das 2432 palavras do artigo que ele escreveu contra ela, só 179 são argumentos científicos especializados. Ao longo das restantes 2253, o prof. Coyne, que tão modestamente havia se furtou a nos oferecer uma exibição plena da sua alegada superioridade profissional, presenteia os leitores com suas idéias sobre história, filosofia, política e religiões comparadas, entre outros campos nos quais suas credenciais acadêmicas são tão minguadas quanto as da sra. Coulter em biologia.

A falta de educação acadêmica numa área especializada não é em si prova de ignorância total nessa área. O que distingue o prof. Coyne é que ele condensa na sua pessoa ambas essas carências ao mesmo tempo. Ele realmente não sabe nada de assuntos que não pertencem à sua esfera de competência universitária, e esta é precisamente a razão pela qual ele imagina que pertencem.

O seguinte parágrafo fornece um exemplo do que estou dizendo: “O erro de igualar o darwinismo a um código de conduta leva Coulter a formular a sua acusação mais idiota: a de que o Holocausto e os inumeráveis crimes de Stalin podem ser jogados na cara de Darwin. ‘De Marx a Hitler, os homens responsáveis pelos maiores morticínios em massa do século XX foram ávidos darwinistas.’ Quem quer que seja religioso deve tomar muito cuidado ao dizer uma coisa dessas, porque, ao longo da história, mais matanças foram feitas em nome da religião do que de qualquer outra coisa .”

Poucos autores poderiam superar o prof. Coyne em sua habilidade de comprimir tanta ignorância histórica em tão escasso número de linhas. É claro que a biologia evolucionária e a ideologia evolucionária podem ser distinguidas conceptualmente, e de fato o são para fins práticos e pedagógicos. É igualmente óbvio que a primeira pode ser defendida nos seus próprios termos, sem necessidade de recorrer a argumentos extraídos da segunda. Mas isso não significa que na sua origem elas fossem campos separados e irrelacionados, que só vieram a ser unidos por um artifício retórico concebido ex post facto pela malvada sra. Coulter. Nenhum historiador sério ignora que a ideologia evolucionária, tal como concebida por Herbert Spencer, precedeu e inspirou Charles Darwin (1). Nem ignora que Darwin, como biólogo, aceitava de bom grado a conseqüência prática mais terrível daquela ideologia, isto é, a necessidade de exterminar raças e povos inteiros em proveito da “evolução” (2); nem que, imediatamente após ter sido formulado como teoria biológica, o evolucionismo foi posto de novo a serviço da ideologia, e isto por obra de biólogos evolucionistas eminentes e não de algum doutrinário alheio aos estudos científicos. (3)

Historicamente, a evolução como ideologia e a evolução como teoria biológica estão tão entrelaçadas que só puderam ser separadas por uma distinção abstrativa posterior e pela conseqüente decisão administrativa de enviar uma delas ao departamento de História e a outra ao departamento de Ciências Naturais. Como o prof. Coyne é demasiado preguiçoso para atravessar a distância entre esses dois edifícios universitários, ele termina por tomar uma abstração mental como realidade histórica, e depois inverte os termos da sua própria confusão para debitá-la na conta da sra. Coulter.

Fortalecido pelo sucesso imaginário do seu argumento ginasiano, o prof. Coyne rapidamente descarta a afirmativa da sra. Coulter de que “os maiores assassinos em massa do século XX foram ávidos darwinistas”, como se fosse demasiado estúpida para ser discutida, quando, na verdade, ela é um fato histórico bem estabelecido. Entre os muitos livros que eliminam toda dúvida razoável quanto às crenças evolucionistas de Marx, Lenin, Stalin, Hitler e Mao Tse Tung, o prof. Coyne poderia ao menos ter checado alguns poucos (4), se ele não fosse antes inclinado a respaldar-se na sua própria imaginação como fonte historicamente confiável.

No entanto, não seria justo dizer que o prof. Coyne nem mesmo tenta raciocinar contra a afirmativa da sra. Coulter. Ele chega a construir contra ela uma sentença inteira: “Não me lembro de qualquer menção ao darwinismo no julgamento dos Médicos de Moscou.” Infelizmente, a tentativa erra o alvo por muitas milhas. O fato de um determinado princípio geral não ser alegado em defesa de um certo argumento específico não prova que ele não seja uma das premissas em que esse argumento se baseia. Ao contrário, quanto mais um princípio é geralmente aceito como senso comum, menos necessidade há de apelar explicitamente a ele em qualquer discussão específica. Na circunstância precisa apontada pelo prof. Coyne, o recurso a argumentos evolucionistas estaria aliás bastante fora do lugar, de vez que os réus (acusados de tentar envenenar Stalin) não eram membros da classe burguesa “atrasada” mas traidores pertencentes à própria elite partidária “progressista”. Quem quer que tenha se beneficiado de uma formação científica deveria estar apto a distinguir entre o argumento pertinente e uma desconversa extravagante. O prof. Coyne não está.

Mas, antes de encerrar o seu parágrafo, o prof. Coyne ainda teve tempo para enriquecê-lo com um mantra que, embora ele não o saiba, foi originariamente concebido para ser repetido pelos iletrados do mundo: “Mais matanças foram feitas em nome da religião do que de qualquer outra coisa.” Tanto quanto a evolução animal, o fenômeno dos homicídios em massa é objeto de investigação científica que requer observação acurada e rigoroso método lógico, aos quais deve-se acrescentar o alto nível de seriedade moral comproporcionado à natureza do assunto. Nenhum historiador profissional ignora que os homicídios em massa devidos a conflitos religiosos, por mais horror que nos inspirem, jamais produziram um número de vítimas nem mesmo remotamente comparável ao dos modernos movimentos revolucionários inspirados em ideologias “científicas”. O mais completo estudo quantitativo do assunto foi feito por R. J. Rummel, professor emérito de ciência política na Universidade do Havaí. As conclusões de sua pesquisa de quatro décadas são apresentadas nos livros Understanding Conflict and War, 5 vols., Thousand Oaks (CA), Sage Publications, 1975-1981, e Death By Government, New Brunswick (NJ), Transaction Publications, 1994. Ampliando o conceito para além da nuance racial implícita na palavra “genocídio”, o prof. Rummel propõe o termo “democídio” para descrever de maneira mais genérica as matanças de povos inteiros. O desenho que ele obtem do estudo dos homicídios em massa ao redor do mundo não difere, em substância, do consenso usual dos historiadores, mas lhe acrescenta a precisão do método quantitativo e a nitidez das escalas comparativas. Em suma, o número de seres humanos mortos em menos de oito décadas pelas duas ideologias evolucionistas, nazismo e comunismo (140 milhões de pessoas), ultrapassa em dez milhões a taxa total de mortos dos homicídios em massa conhecidos no mundo desde 221 a.C. até o começo do século XX, dos quais os resultantes de motivos religiosos são apenas uma fração, e a parte devida aos cristãos uma fração da fração.

É absolutamente inútil alegar, como alguns inevitavelmente farão, que as ideologias evolucionistas não são pura ciência, na medida em que a mesma falta de pureza original pode ser legitimamente imputada às motivações religiosas dos cruzados ou dos inquisidores. Ademais, no que concerne ao cristianismo em especial, nenhum sinal de anuência à necessidade de homicídios em qualquer número que fosse está nem remotamente presente no Evangelho, ao passo que o pai fundador do evolucionismo científico foi suficientemente explícito ao declarar que as matanças em massa deveriam ser aceitas como um fenômeno evolutivo normal como qualquer outro. Mais significativo ainda é o fato de que a Igreja não apelou a nenhum tipo de brutalidade antes de decorridos muitos séculos da sua fundação, ao passo que o evolucionismo já serviu de estimulante a uma das ideologias revolucionárias logo após a publicação de A Origem das Espécies, e à outra umas décadas depois, graças sobretudo aos esforços do segundo-no-comando das hostes evolucionistas, Ernst Haeckel. A afirmação do prof. Coyne de que “Se Darwin é culpado de genocídio, Jesus Cristo também é” não passa de um aberrante jogo de palavras nascido de uma mistura de ignorância histórica e ódio anti-religioso vulgar.

Essa mesma mistura leva o prof. Coyne a ostentar, como prova de que a religião é a causa universal das violências, a afirmação ridícula de que “a razão pela qual Hitler escolheu os judeus (como alvos de perseguição) foi que os cristãos os encaravam como assassinos de Cristo”. Bem, como Hitler, segundo declarou a Hermann Rauschning,   estava abertamente interessado em “esmagar a Igreja como quem pisa num sapo”, é difícil acreditar que estivesse também ansioso por vingar-se do assassinato de Cristo, já que isso implicaria logicamente que além dos judeus ele atacasse também os herdeiros professos do Império Romano, isto é, os fascistas italianos, que no entanto ele escolheu como seus mais queridos aliados. Nenhum historiador especializado do período tendo jamais sustentado a idéia de que o Evangelho fosse uma influência importante na formação da mente de Hitler, a maioria deles reconhece no entanto que autores evolucionistas como Houston Stewart Chamberlain, Edgar Dacqué, Ernst Haeckel e Fritz Lenz tiveram um papel essencial na origem da futura ideologia nazista. Chamberlain apela explicitamente a motivos darwinianos como argumentos contra os judeus. Mais significativamente ainda, a maior parte das doutrinas racistas alemãs já estava pronta para uso antes mesmo de que Hitler estreasse na política. Elas foram criadas por importantes biólogos evolucionistas da Liga Monista Alemã, cujas doutrinas foram subseqüentemente incorporadas pelo Partido Nazista. O fundador da Liga, Hawckel, fazia pregação anti-semita desde pelo menos 1893. Ele era um materialista que via o cristianismo como “o principal obstáculo à vitória da ciência”. (5) Obviamente o prof. Coyne não tem a capacidade (ou a vontade) de distinguir entre uma crença doutrinal genuína e uma frase-de-efeito adotada hipocritamente muito depois como incidental e secundário artifício de propaganda, usado, aliás, menos como um meio de seduzir a platéia religiosa séria (Hitler não tinha ilusões quanto a isso), do que como camuflagem para desviar a atenção popular das perseguições em massa impostas aos cristãos.

Não comentarei as linhas que o prof. Coyne gasta em falsear as credenciais acadêmicas alheias para enaltecer as suas próprias, nem as insinuações mesquinhas com que ele tenta ferir a Sra. Coulter na sua dignidade feminina. O modo de raciocínio do prof. Coyne já fornece prova suficiente da sua baixeza de caráter e da sua total falta de integridade intelectual, de modo que posso me dispensar de sondar as camadas mais profundas de uma mentalidade fedorenta.

Notas

1.        O evolucionismo social de Spencer, que inclui rudimentos de uma teoria da evolução biológica semelhante à de Darwin, foi exposto no seu livro Social Statics, publicado em 1850, nove anos antes de The Origin of Species.  Foi Spencer, não Darwin, quem criou a expressão “sobrevivência do mais apto”. Darwin leu e elogiou o livro, e muito do seu trabalho posterior é uma longa discussão amigável com  Spencer. V. Robert J. Richards, “The Relation of Spencer’s Evolutionary Theory to Darwin’s”, em http://home.uchicago.edu/~rjr6/articles/Spencer-London.doc — um trabalho que o prof. Coyne deveria conhecer, já que o autor é seu colega na Universidade de Chicago.

2.        “Em algum período futuro, não muito distante se medido em séculos, as raças civilizadas do homem quase que com certeza exterminarão e substituirão as raças selvagens ao redor do mundo. Ao mesmo tempo, os macacos antropomorfos serão sem dúvida exterminados. A distância entre o homem e seus parceiros mais próximos será então maior.” (Charles Darwin, The Descent of Man, 2nd  ed., New York,  A. L. Burt Co., 1874, p. 178).

3.        Por exemplo, Thomas Huxley, o mais importante evolucionista inglês depois de Darwin, escreve: “Nenhum homem racional, conhecendo os fatos, acredita que o negro médio seja igual, e muito menos superior, ao homem branco.” (Thomas H. Huxley, Lay Sermons, Addresses and Reviews, New York, Appleton, 1871, p. 20.)

4.        Sugiro: Daniel Gasman, The Scientific Origins of National-Socialism, New Brunswick (NJ), Transaction Publishers, 2004; James Reeeve Pusey, China and Charles Darwin, Harvard University Press, 1983; Richard Weikart, Socialist Darwinism. Evolution in German Socialist Thought From Marx to Bernstein, San Francisco (CA), International Scholars Publications, 1999; Richard Weikart, From Darwin to Hitler. Evolutionary Ethuics, Eugenics and Racism in Germany, New York, Palgrave, 2004.

5.        Gasman, p. 55.

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