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O bicho-síntese

Olavo de Carvalho

Bravo!, outubro de 1999

James Bryce, no fim do século passado, observou que para a elite brasileira as palavras eram mais reais do que as coisas. Transcorrido um século da visita do diplomata inglês, temos de admitir que o verbalismo assinalado por ele não é apenas o hábito de um grupo social localizado. O culto das palavras, uma hipersensibilidade às harmonias sonoras que chega a distrair do curso do pensamento, a idolatria da técnica verbal vista como o supremo sinal de inteligência a despeito do conteúdo ralo ou nenhum são constantes da mentalidade brasileira, independentes dos grupos e classes, das épocas e situações.

Quem hoje em dia assista na televisão a entrevistas de intelectuais e políticos se surpreenderá — caso não esteja ele próprio contaminado ao ponto de não notar nisto nada de anormal — com o fato de que seja possível criar tantas opiniões com tão poucas idéias. Mais surpreendente ainda é a capacidade que essas criaturas têm de reproduzir os mais tontos lugares-comuns com a fisionomia concentrada de um pensador que impusesse a seu cérebro as provações dolorosas de uma sondagem intelectual profundíssima. Abaixando o volume e contemplando esses senhores na pureza da sua expressão visível, diríamos que cada um deles é um Leibniz a enunciar as sutilezas do cálculo infinitesimal ou um Swedenborg a surpreender os incrédulos com a descrição dos mundos celestes. Aumentamos o volume, e percebemos que estão apenas falando mal ou bem do governo. Um dia vi na TV Cultura o sapientíssimo Paulo Freire. Tinha o cenho franzido, as mãos em garra, o olhar fixo na distância como quem divisasse no horizonte uma verdade longamente buscada. Tudo isso para soltar esta jóia: “Devemos ser tolerantes — mas não com os nossos inimigos”. Mesmo ouvida com a maior boa vontade, essa frase nada mais significa senão que devemos chamar a intolerância de tolerância.

O que mais impressiona nesse fenômeno é a precisão, a arte, mesmo, com que no Brasil quem não tem nada a dizer sabe imitar, na entonação das frases e no suporte gestual, o estilo dos sábios e profetas.

Um sintoma característico é o modo nacional de ler poesia. O teste decisivo do valor poético é a paráfrase em prosa, a explicitação do sentido (ou sentidos) do verso. Um só verso deve conter muitas sentenças em prosa, compactadas na unidade indissolúvel de música e significado. “Life is but a walking shadow” ou “Transforma-se o amador na coisa amada” contêm filosofias inteiras. Um público universitário não poderia prosternar-se de adoração devota ante um verso como “Amor morto motor da saudade”, se notasse que significa apenas que o poeta sente falta de sua ex-namorada — e, pior ainda, se percebesse que um sentimento banal não se torna mais valioso por vir empacotado na aliteração tô-tô-mô-mô. Portanto ele evita notar isto. Contorna a questão do valor poético recusando-se a fazer a paráfrase desmistificadora e, para sustentar a ilusão, atribui à poesia o estatuto de um mistério excelso que não deve ser profanado pelo exame racional — sendo a palavra “racional”, aí, pronunciada em tom de infinito desprezo. O puro jogo sonoro, a coceirinha nos ouvidos, torna-se o emblema de uma ciência secreta, inacessível ao comum dos mortais. A mistificação nada pode sem a ajuda da automistificação.

Diante de semelhante fenômeno, um observador severo e isento diagnosticaria na classe letrada nacional um caso de psitacismo endêmico. Erraria, no entanto. A habilidade dos psitacídeos esgota-se no mimetismo sonoro, ao passo que o fato aqui mencionado comporta igualmente uma essencial componente muscular e gestual, sobretudo no que concerne à reprodução das expressões mais finas do rosto humano. Isto não há papagaio que faça. Para chegar a tanto, é preciso acrescentar às potências vocais dessa ave a desenvoltura cênica e malabarística do outro animal emblemático da fauna mental brasileira: o macaco. Sim, a arte nacional da imitação é tão rica, que não pode ser simbolizada por um animal só, mas exige um bicho composto, macaco e papagaio ao mesmo tempo: o papaco ou macagaio, também chamado papamaco, pacagaio ou mapapaco. O nome pode variar tanto quanto as manifestações onímodas da criatura mesma. Deixo-o aos cuidados dos cultores de combinações sonoras não substancialmente mais lindas que tô-tô-mô-mô, e resumo meu argumento declarando que, qualquer que seja o caso, o sentido da maior parte dos ditos e escritos em circulação no país só pode ser apreendido mediante um conceito que sintetize, num termo único, macaquice e papagaiada.

8 de setembro de 1999

O velhinho comunista

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 30 de setembro de 1999

Nos tempos antigos, em cada cidade do interior existia um velhinho erudito que vivia entre livros e não conversava com ninguém. Como compensação talvez de seu isolamento, era em geral comunista – e se não era, ao menos tinha fama de ser, já que nesses meios ninguém sabia em que podia consistir o tal comunismo, razão pela qual a palavra que o nomeava era usada para designar qualquer conduta suspeita que não fosse adultério ou pederastia. E nada mais suspeito, é claro, do que ler livros.

Foi assim que ser comunista – ou, melhor ainda, parecer comunista – se tornou um emblema convencional de cultura. E quando a expansão do ensino público, obra dos governos militares açambarcada pela militância esquerdista, deu a imensas populações o acesso ao vocabulário do Partidão e da AP, aí foi uma festa: todo menino que adquirisse os cacoetes verbais do esquerdismo sentia-se um sujeito cultíssimo, habilitado a opinar sobre política, religião, moral, metafísica e viagens espaciais. As eleições trouxeram quantidades maciças dessas criaturas para o Parlamento, a seleção dos jornalistas por diploma colocou-as nas redações, o crescimento do ensino universitário elevou-as a professores e reitores. Foi inevitável que essa gente logo tratasse de nivelar todos os valores culturais pela sua própria estatura, sendo nisto reforçada pela providencial ascensão do “politicamente correto” na Grande República do Norte, a qual, justamente por ser a terra do abominável capitalismo, foi declarada testemunha insuspeita para opinar no caso. E tão universal aceitação alcançou o novo sentido da palavra “cultura”, que até as classes ricas, que tinham acesso a um ensino melhorzinho, abdicaram dele para não perder o trem da História, e hoje acham inteiramente natural pagar mensalidades pesadíssimas em colégios de luxo para que aí seus filhos aprendam, democraticamente, a não saber mais do que os outros. Na década de 70, o romancista Osman Lins fez um exame da nossa literatura didática e encontrou um panorama de desoladora estupidez. Na época, foi fácil atribuir ao governo militar a culpa das enormidades que esse material escrito impingia às nossas crianças. Mas as hordas esquerdistas que, com a redemocratização, tomaram de assalto todos os órgãos educacionais, estão lá há 20 anos e conseguiram tornar ainda mais patético, pelas altas presunções modernosas que o legitimam, o conteúdo dos livros didáticos.

Em resultado, a burrice das elites falantes brasileiras raia hoje o calamitoso e é, no fim das contas, o único problema nacional – o único problema substantivo, do qual todos os demais derivam como seqüelas e corolários que a eliminação dele suprimiria automaticamente, sem esforço.

No entanto, basta abrir os jornais, ligar a televisão ou – com um pouco mais de caridade – assistir a congressos acadêmicos para notar que todos os problemas são discutidos, menos esse. É lógico: quem discute é a própria elite falante, e ela necessita chamar a atenção para mil e um problemas para que ninguém perceba que ela mesma é o problema. Discute-se principalmente a educação popular, nunca a educação da elite incumbida de educar o povo – o que leva o ingênuo ouvinte a pressupor que, essa elite já existindo e estando preparadíssima, só falta educar os outros…

A incapacidade de pensar, a rombuda incompreensão de palavras e argumentos, a tendência incoercível a raciocinar por slogans e termos da moda, o empirismo tolo que se perde em detalhes e casuísmos por incapacidade de abstração, a compulsão senil de rebaixar o nível de exigência intelectual para agradar a uma platéia “popular” que no fundo está pouco se lixando para isso, a redução de todos os debates ao confronto mais imediatista de governo e oposição – tudo isto mostra que o Brasil entregou o seu destino mental ao guiamento de um bando de macacos que só sabem pular, se exibir e pedir pipocas.

Visto de longe, esse espetáculo se torna ainda mais grotesco. Gilberto Amado dizia que tinha um orgasmo cada vez que via um brasileiro capaz de juntar premissa e conclusão. Hoje ele viveria numa privação ascética de fazer inveja a Santo Antão.

E dizer que tudo isso começou porque o pessoal decidiu tornar-se culto e, vendo o exemplo do velhinho comunista, achou que para ser culto bastava ser comunista…

Dinheiro e poder

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 16 de setembro de 1999

Sempre que ouço um político de esquerda verberar em tom profético a cobiça capitalista, pergunto-me se ele imagina mesmo que o anseio de poder é uma paixão moralmente superior ao desejo de dinheiro, ou se simplesmente finge acreditar nisso para se fazer de santinho. Evidentemente, não há terceira alternativa. Nenhum militante esquerdista quer fazer uma revolução só para depois ir para casa viver como obscuro cidadão comum da república socialista: cada um deles é, por definição, o virtual detentor de uma fatia de poder no Estado futuro. Essa é, entre os adeptos de um partido, a única diferença entre o militante e o simples eleitor. Ao assumir a luta revolucionária, o mínimo que um sujeito espera é um cargo de comissário do povo. Afinal, não teria sentido que, após ter arcado com a responsabilidade de líder ativo na destruição do capitalismo, ele desse menos de si à “construção do socialismo”. (O mesmo, é claro, aplica-se, mutatis mutandis , aos militantes do fascismo ou de qualquer outra proposta de mudança radical da sociedade. Enfatizo o socialismo pela simples razão de que no Brasil de hoje não há um movimento de massas de inspiração fascista.)

Toda militância revolucionária é, pois, inseparável da ânsia de poder, e é preciso um brutal descaramento ou uma inconsciência patológica para não perceber que essa paixão é infinitamente mais destrutiva que o desejo de riqueza. A riqueza, por mais que as abstrações dos financistas tentem relativizá-la, tem sempre um fundo de materialidade – casas, comida, roupas, utensílios – que faz dela uma coisa concreta, um bem visível que vale por si, independentemente da opulência ou miséria circundantes. Já o poder, como bem viu Nietzsche, não é nada se não é mais poder. Isto é a coisa mais óvia do mundo: por mais mediada que esteja pelas relações sociais, a riqueza é, em última instância, domínio sobre as coisas. O poder é domínio sobre os homens. Um rico não se torna pobre quando seus vizinhos também enriquecem, mas um poder que seja igualado por outros poderes se anula automaticamente. A riqueza desenvolve-se por acréscimo de bens, ao passo que o poder, em essência, não aumenta pela ampliação de seus meios, e sim pela supressão dos meios de ação dos outros homens. Para instaurar um Estado policial não é preciso dar mais armas à Polícia: basta tirá-las dos cidadãos. O ditador não se torna ditador por se arrogar novos direitos, mas por suprimir os velhos direitos do povo.

Foi preciso que a inteligência humana descesse a um nível quase infranatural para que uma filosofia – ou coisa assim – chegasse a inverter equação tão evidente, vendo na miséria o fundamento da riqueza e no poder político o instrumento criador da igualdade.

O fenômeno mais característico do século 20, o totalitarismo, não foi um desvio ou acidente de percurso no caminho do sonho democrático: foi a conseqüência inescapável de uma aposta suicida na superioridade moral do poder político e na sua missão social igualitária. O resultado dessa aposta está diante dos olhos de todos. A prometida igualdade econômica não veio, mas, em contrapartida, a diferença de meios de ação entre governados e governantes cresceu a um ponto que os mais ambiciosos tiranos da Antiguidade não ousaram sequer sonhar. Júlio César, Átila ou Gêngis Khan recuariam horrorizados se alguém lhes oferecesse os meios de escutar todas as conversas particulares ou de desarmar todos os homens adultos. Hoje os governantes já estudam como programar geneticamente a conduta das gerações futuras. Não se contentam com o poder destrutivo dos demônios: querem o poder criador dos deuses.

É uma das mais atrozes perversidades da nossa época que o homem imbuído do simples desejo de enriquecer seja considerado um tipo moralmente lesivo e quase um criminoso, enquanto o aspirante ao poder político é visto como um belo exemplo de idealismo, bondade e amor ao próximo. Um século que pensa assim clama aos céus para que lhe enviem um Stalin ou um Hitler.

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