Seminário de Filosofia, Rio de Janeiro, 11 de junho de 1997

Gravação transcrita por Fernando Manso; editada por Alessandra Bonrruquer.

§ 1. A fenomenologia em geral

O ceticismo nasce da fragmentação da mente. É a postura do covarde ou do preguiçoso que, por não querer fazer o esforço de saber, tenta provar que é impossível saber. Com esse objetivo, a mente cética produz impasses de difícil refutação, não tanto pelos esquemas argumentativos que os suportam, mas principalmente pelo estado de ânimo de desconfiança que os produz. A desconfiança suscita objeções e mais objeções, e quando todas foram respondidas, sua insegurança não se aplaca e ela continua a apresentar novas objeções, sem se dar conta de que são apenas variações das já respondidas. A discussão com o cético não tem fim — não por causa da força de seus argumentos, que em si são fracos, mas por causa do medo abissal que os produz, e que não pode ser curado mediante argumentos.

No entanto, enfrentar as objeções céticas é o começo do aprendizado filosófico. A capacidade humana de formular dúvidas é inesgotável, assim como a capacidade de aprofundar, enriquecer e tirar conseqüências do que sabe. O caminho da dúvida, entretanto, é mais fácil, porque mecânico e automático: basta deixar a mente pensar sozinha que a dúvida se autopropaga como se fosse um vírus – daí o prestígio barato do ceticismo e do relativismo. Já a certeza e a evidência não se autopropagam, não podem ser obtidas a contragosto. Exigem atenção. Exigem a convergência de várias faculdades intelectuais em torno de um objeto, o que requer esforço.

A fenomenologia de Husserl é uma tentativa de dar fundamentos apodíticos ao conhecimento. A fenomenologia não se interessa por argumentos, mas sim pela descrição precisa de fenômenos, do que aparece, do que acontece ante a consciência cognoscitiva. Por exemplo, como descrever este gato? Como é que você, ao vê-lo, sabe que é um gato? O que se passa precisamente neste ato de conhecimento? O que é que está subentendido nesse reconhecimento, pelo qual podemos dar a um fenômeno particular o nome de uma essência geral? O que se passa precisamente quando se formula um juízo, quando se diz que isto é aquilo, que a “é” b? A fenomenologia só se ocupa das essências, entendidas como o objeto do ato de conhecimento.

A fenomenologia trata da descrição de fenômenos, entendidos como atos de conhecimento, no sentido puramente cognitivo e não psicológico. As descrições que se utilizam de recursos psicológicos deixam de fora o objeto do conhecimento, ou o admitem como pressuposto. A imensa complicação das exposições fenomenológicas vem da dificuldade de se descrever os fenômenos em si mesmos, tais como aparecem, independentemente de explicações psicológicas do ato de conhecimento.

Por exemplo, o que é uma dúvida? A resposta provavelmente descreverá o estado psicológico de dúvida, e não aquilo que faz com que a dúvida seja dúvida em vez de certeza, probabilidade ou conjetura. Na verdade, qualquer explicação de um estado psicológico pressupõe saber do que está se falando, isto é, pressupõe o conhecimento das essências do que se fala. A explicação psicológica é, neste sentido, segunda ou derivada, e não primeira e fundamental como a descrição fenomenológica.

Que é um juízo de identidade? Que é quantidade? ou melhor, quando você pensa quantidade, “em quê” está pensando? Não “como” está pensando, mas “em quê” está pensando? Qual o conteúdo intencional a que se refere o pensamento? Onde está a “redondidade” do redondo? Que é círculo? Há uma definição geométrica de círculo, mas esta definição é apenas uma convenção que nomeia um conceito intuitivo prévio. Qual é o conteúdo deste conceito intuitivo de circularidade no qual se baseia a definição geométrica?

Dito de outra forma, a fenomenologia se ocupa da pergunta: “o que é?”, quid est?, independentemente de saber se o objeto que se investiga “existe” ou “não existe”. Essa pergunta é decisiva em todo o processo filosófico. A experiência da fenomenologia mostra que muitas vezes se discute por séculos um assunto sem se perguntar “o que é”.

Cabe assinalar que a filosofia começou com essa pergunta. Era a pergunta de Sócrates. Por exemplo, o que é a justiça? Sócrates criou o que entendemos hoje por definição. Passados no entanto 2500 anos, a fenomenologia verifica que a definição no sentido socrático-lógico não é suficiente, pois se baseia num conteúdo intuitivo prévio, que precisa ser descrito tal como se apresenta, antes que se possa formalizar o esquema verbal que o define.

A definição no sentido socrático – gênero próximo e diferença específica – delimita uma intuição prévia, marcando seus limites no quadro geral da classificação dos gêneros e espécies, mas não descreve plenamente o conteúdo da intuição pelo qual o conhecemos.

Platão e Aristóteles aperfeiçoam a definição, mas apenas no sentido técnico. Platão introduz o método da divisão. Aristóteles transforma a conceituação na demonstração, na prova. No entanto, esses métodos não resolvem a questão do conteúdo intuitivo prévio. Qual é o conteúdo intuitivo no qual se baseou a definição, a divisão, a conceituação, etc.? Ou, mais simplesmente: de que estamos falando?

Sob certo aspecto, a fenomenologia dá um passo “para trás”, ao exigir muito mais rigor e riqueza nos conteúdos, no sentido de preencher os conceitos com conteúdos intuitivos. A crítica que se pode fazer da fenomenologia é que ela se apresenta como uma coleção de monografias de conceitos isolados. Por exemplo, Max Scheler trata da inveja, do rancor, etc. Mas não chega a constituir uma filosofia, no sentido sistemático. Por outro lado, acostumando-se a descrever meticulosamente o que está implícito nos atos cognitivos, a discussão filosófica tem um aprofundamento extraordinário, como pode se depreender, por exemplo, da Fenomenologia da Consciência de Tempo Imanente de Husserl.

A maior parte das pessoas ignora isso e não imagina a importância dessa riqueza descritiva. Imaginam que descrição é assunto da arte e se enganam, pois a arte só produz análogos. A arte apenas refere, alude. Por exemplo, em toda a literatura universal não há nenhuma descrição de um estado psicológico humano, mas apenas referências analógicas a tal ou qual estado, não em si mesmo, mas tal como foi vivenciado por tal ou qual personagem em particular, sem levar em conta que o mesmo estado, exatamente o mesmo, poderia se apresentar num outro personagem sob vestes analógicas diferentes, sem deixar de ser “o mesmo”. O ciúme de Otelo não é igual, artisticamente, ao do Paulo Honório em S. Bernardo, de Graciliano Ramos. Qual é, então, o esquema invariante que permite reconhecermos, por trás das diferenças entre suas respectivas simbolizações literárias, o mesmo estado?

Colocado de outra forma, a fenomenologia se ocupa em abrir o ato intuitivo e mostrar o que há dentro dele, ou, de outra forma ainda, em descrever o conteúdo da intuição e não apenas se referir simbolicamente a ele. Para tanto, a fenomenologia usa a linguagem de forma diferente das formas quotidianas, científicas, literárias ou filosóficas. Mas é um uso que pretende desdobrar as implicações lógico-racionais de um conteúdo que, no entanto, na prática é captado de maneira intuitiva e imediata. Ou seja, é a tomada de consciência do que se passa no ato cognitivo. Neste sentido, a fenomenologia é uma auto-reflexão e um autoconhecimento. É o autoconhecimento da consciência, enquanto capacidade cognitiva. É saber o que é saber, saber o que se passa, efetivamente, no ato de intuição. Que isso tem um tremendo poder curativo é algo que os psiquiatras e terapeutas perceberam há tempos, daí a quantidade de terapias baseadas na fenomenologia.

O tema tem outros desdobramentos. Por exemplo, o que se passa precisamente na percepção sensível? O que significa “ver”? Agora, estou vendo um isqueiro. Mas no mesmo ato há também o reconhecimento da forma de uma essência, e portanto não se trata de um ato puramente visual. Como é que no mesmo ato se vê e se reconhece, sem ser necessário pensar para isso? Em que consiste este re-conhecimento, que está mais ou menos subentendido em todo ato de conhecimento?

Husserl diz que a atitude do fenomenólogo é diferente da atitude natural, a qual acumula atos cognitivos sem se ocupar com os mesmos nem com a consciência, mas apenas com os conceitos dos objetos intuídos. Esse retorno à consciênciamarca a atitude fenomenológica. Por exemplo, o que se passa no reconhecimento do sentido de uma palavra? E quando são palavras de outro idioma? E quando são apenas aglomerados de sons que não são palavras? Como é que as reconhecemos de forma imediata? Raramente paramos para examinar estes atos e descrever “o que” nos apresentam. Uma coisa é realizá-los, outra conhecê-los.

Husserl diz que a fenomenologia descreve o modo de apresentação dos objetos. Por exemplo, um hipopótamo e uma crise econômica se apresentam a mim de formas diferentes. Em que consiste precisamente esta diferença? Mais ainda, a crise econômica é um mero ente de razão ( com fundamentum in re), mas não do tipo de um dragão alado; logo, também há uma diferença entre os modos de apresentação destes dois objetos. Colecionando todos os modos de apresentação que existem para o ser humano, chegaremos aos vários tipos de seres ( ou essências ) que podem se apresentar, e temos então uma ontologia geral subdividida em ontologias regionais. A ontologia tem de ser bem ampla e bem amarrada em todos os seus pontos para poder abarcar todas as chaves que se intercalam entre um hipopótamo e uma crise econômica.

§ 2. A coisa-em-si kantiana

Quando não se têm os modos de apresentação bem classificados, os modos podem ser trocados acidentalmente. Imagine alguém falar do hipopótamo como se fosse uma realidade do mesmo tipo de uma crise econômica. É de uma confusão dessa ordem que vai surgir a famosa coisa-em-si kantiana, que é a coisa “independente do conhecimento que temos dela”. É a coisa “fora” do sujeito, de todo sujeito cognoscente possível. Para a fenomenologia isto é uma bobagem: supor que a verdade de uma coisa apresentada é uma outra coisa que jamais pode se apresentar. Ora, se ela jamais pode se apresentar ela não existe para ninguém, não afeta ninguém e não age. E como pode ser que essa parte que não afeta nem age seja mais real que a parte que afeta e age? Está aí uma forte objeção à coisa-em-si kantiana, baseada na consciência do modo de apresentação.

Segundo Kant, a coisa-em-si é o segredo que está dentro da coisa, que é a coisa na sua consistência interna, independentemente do nosso conhecimento. Ou seja, é a coisa na sua pura objetividade, desligada de qualquer subjetividade. Ora, essa noção é inconsistente e autocontraditória. Coisa é aquilo que tem a capacidade de ser fenômeno; se não a tem, não pode se mostrar de maneira alguma para ninguém, e não pode, portanto, transmitir nenhuma informação de si a qualquer outro ser. É uma coisa absolutamente irrelacionada e irrelacionável. Quantos seres poderiam atender a esse requisito? Só o nada. Logo, a noção de coisa-em-si corresponde exatamente ao nada. Nenhum ser atende ao requisito da coisa-em-si, porque sendo ela o totalmente irrelacionado, só pode existir como suposição negativa. Tão logo se lhe atribua alguma característica real, a coisa deixa de ser a coisa-em-si e passa a ser algo para algum outro. Mas esta capacidade de existir para o outro é a existência mesma. O que existe é aquilo que tem alguma relação com outras coisas que existem e o totalmente irrelacionado só pode não existir, ou existir como conceito vazio, ou seja, nada. Não faz sentido, portanto, dizer que a coisa-em-si é mais real do que o fenômeno.

Cabe observar que quando Kant enuncia o conceito da coisa-em-si, ele parece fazer algum sentido porque expressa uma impressão subjetiva que temos, de que conhecer efetivamente as coisas seria conhecê-las “por dentro”. Agora, supor que o gato por dentro seja mais gato que o gato por fora não faz sentido. Virar o gato pelo avesso esclareceria alguma coisa sobre ele?

A fenomenologia se pauta pelo respeito ao modo de apresentação das coisas. Em vez de suposições, as coisas são tomadas como estão. O que interessa não é o “gato-em-si”, mas a presença do gato, aquilo que aparece e que se faz reconhecer como gato. Esta é a essência do gato. Esse é o em-si do gato, que consiste em aparecer como gato para quem seja capaz de percebê-lo como gato.

Uma pedra, por exemplo, não reconheceria o gato. Mas faz parte da essência do gato não ter a capacidade de notificar a pedra de que é um gato. Assim como faz parte da essência da pedra não ter a capacidade de reconhecer um gato. Ou seja, os modos da apresentação coincidem com os modos de ser das coisas. O que significa que não existe nada cujo modo de apresentação seja falso, ou que seja apenas uma aparência com relação à essência, porque o modo de apresentação é a própria essência. Não sei se Husserl, ao dizer isso, tinha idéia de que fazia eco a Plotino, mas Plotino diz taxativamente que a essência de um ente, em vez de ser um misterioso x oculto no fundo dela, é o seu aspecto mais evidente, porque é a forma manifestada.

Kant diz que só percebemos através das formas a priori, que são independentes e prévias à experiência, como por exemplo as formas a priori da sensibilidade: espaço e tempo. Ou seja, tudo o que se percebe se dá dentro do quadro das formas a priori do sujeito. Kant pára por aí. Mas e o objeto, para se mostrar? Não precisa deste ou de algum outro quadro? Hartmann, fenomenologista, diz que existem também as formas a priori da apresentação do objeto.

Imagine se não fosse assim. Então o tempo e o lugar em que eu vejo esta pedra seriam formas subjetivas minhas. Fora isso existiria uma “pedra-em-si” que não está em tempo algum e em lugar algum, e que necessita do espaço e do tempo apenas para se mostrar a mim, e não para existir. Bella roba! Uma pedra intemporal e inespacial que se temporaliza e espacializa só para mim. Ora, então não é pedra! Porque a verdadeira pedra é aquela que está no tempo e no espaço, para que eu a perceba no tempo e no espaço. Portanto o em-si da pedra é exatamente essa capacidade de se apresentar a mim desta maneira. Logo, o que chamei de fenômeno é, na verdade, a essência da pedra, ou seja, a coisa aparentemente mais superficial é a mais profunda. A capacidade máxima da pedra é de apresentar-se como pedra a quem seja capaz de apreendê-la como pedra.

Mas Kant diz que do mundo exterior só recebemos informações caóticas, que ordenamos nas formas do espaço e tempo. Ele está supondo, então, que podemos receber dados de uma pedra caótica para depois lhe dar uma unidade projetiva no espaço e no tempo. Mais uma vez, enganou-se. Não é o sujeito que ordena. A pedra se apresenta na forma de pedra, que inclui sua própria ordenação no tempo e no espaço. Não fosse assim, não seria uma pedra. A “pedra-em-si”, sem as formas de apresentação, é inconcebível como pedra. Pode ser uma idéia pura platônica, um pensamento de Deus, mas não uma pedra. A pedra tem um em-si que independe do sujeito, que é exatamente a sua capacidade de apresentar-se como pedra, capacidade que o sujeito não poderia dar a ela. Depende do sujeito a capacidade de percebê-la, mas a visibilidade da pedra está nela, e não no sujeito. Se estivesse no sujeito, ele é que seria pedra, com visibilidade de pedra. Um sujeito cego não anula esta visibilidade: é importante que não se confundam as formas a priori do sujeito com as formas do objeto. As formas do sujeito não determinam as formas do objeto.

Além disso, é uma bobagem dizer que os dados se apresentam soltos, isolados, e que nós é que os sintetizamos. Hume, por exemplo, pretendia que, ao ver uma bola de bilhar bater em outra e causar seu movimento, vemos apenas o movimento da primeira seguido do movimento da segunda, e que sintetizamos os dois mediante a idéia de causa. Bobagem. Vemos um fenômeno único, coeso, e em seguida o decompomos em duas fases. Entre o movimento da primeira bola e o da segunda não há um intervalo: somos nós que, por abstração mental, separamos dois movimentos que na verdade se apresentaram unidos. A noção de causa não é “projetada” pela mente sobre os objetos para colar partes separadas. É obtida por separação, por abstração, por análise daquilo que se apresentou junto e coeso. Os dados vêm juntos, nós é que os separamos — exatamente ao contrário do que diz Hume, endossado por Kant.

A fenomenologia, em vez de perguntar, como Kant, se o conhecimento é possível, pergunta antes o que é o conhecimento, o que é o ato de conhecer, o que se passa precisamente quando se conhece alguma coisa. Estas perguntas, uma vez colocadas, já resolvem muitos dos problemas levantados pelos filósofos críticos e céticos.

§ 3. A identidade de ser e conhecer

Ao lado e sobre isso, eu acrescento a seguinte perspectiva, que é um dos pontos essenciais da doutrina metafísica que defendo: não faz sentido definir o conhecimento como uma relação entre o sujeito e o objeto, uma vez que isto pressuponha a existência do sujeito e do objeto fora e independentemente da potência do conhecer. Ora, é exatamente esta potência de conhecer e de ser conhecido que define sujeito e objeto. Portanto, a realidade em si não é nem objetiva, nem subjetiva, porque ser realidade é ter a capacidade de se desdobrar nesses dois aspectos. O conhecer, como potência, é prévio ao sujeito e ao objeto. Ser realidade é ter a capacidade de se apresentar a alguém, o qual também tem de ser real. Portanto, essa dicotomia sujeito-objeto faz parte da estrutura da realidade. Só é real aquilo que admite esta distinção.

Deus, por exemplo. Deus conhece a si mesmo. Mas há, obviamente, uma distinção entre o que é conhecido e o que conhece, ainda que esta distinção seja só relacional. Uma coisa é Ele ser, outra coisa é Ele conhecer-se. Estes atos são formalmente distintos, embora não sejam distintos no tempo nem no conteúdo. Se não houvesse a possibilidade de distinguir entre esses dois aspectos — ser e conhecer —, não haveria sentido em dizer que Deus se conhece. Mas, por outro lado, esta distinção também é conhecida, e faz portanto parte do ser, e portanto é real.

Só pode ser conhecido o que é real, sob algum aspecto, e só pode ser real aquilo que pode ser conhecido. Suponhamos algo que não pode ser conhecido de maneira alguma, essencialmente. Ora, se não pode ser conhecido de maneira alguma então este algo não se relaciona com nenhum outro ser. Não transmite informação a nenhum outro ser. Existir é transmitir informação, logo esse algo não existe.

Esta informação pode ser transmitida do ser para ele mesmo, como por exemplo aquilo que cada um sabe a seu próprio respeito. A essência do ser, então, consiste em conhecer-se, logo não há distinção entre o ser e o conhecer, mas apenas uma distinção relacional: são dois aspectos do ser. E essa distinção só existe do ponto de vista subjetivo humano.

O ser, verdadeiro, real, consiste em conhecer-se. Mas se é verdadeiro é porque é conhecido, e se é conhecido é porque é verdadeiro. Isto se aplica tanto a mim quanto à coisa da qual estou falando. Se não sou real, não posso conhecer. E se a coisa da qual estou falando também não é real, ela não pode ser conhecida. Ora, de onde tirei essas distinções? Do próprio conceito de conhecer. Logo, o conhecer é prévio a tudo isto. O conhecer é receber informação, o ser conhecido é emitir informação. Esta capacidade de receber e emitir informação é simultânea. Só o que emite informação pode receber informação. Emitir informação é relacionar-se de algum modo com outro ser, da mesma forma que receber informação também é relacionar-se de algum modo com outro ser. A capacidade de emitir e e a de receber informação não se separam, apenas se distinguem. Não pode existir uma sem a outra.

O tempo todo se verifica esta identidade do ser e do conhecer. Já a distinção sujeito-objeto é meramente funcional, descritiva. Num determinado ato de conhecimento, um dos entes atua como receptor de informação e o outro com emissor. Mas o que é receptor é emissor também, e vice-versa. Uma pedra, por exemplo, recebe várias informações: lei da gravidade, pressão atmosférica, e as informações químicas e cristalográficas que a compõem. Ela apenas não as recebe conscientemente, o que significa que essas informações estão na pedra como elementos constitutivos do seu modo de apresentar-se, não do seu modo de conhecer.

Ou seja, o conhecer é uma relação de troca de informações. Há, no entanto, uma diferença para o caso humano. Nós humanos podemos refletir sobre a informação recebida, ou seja, não apenas recebemos a informação como também sabemos que a recebemos. Logo, além do conhecimento que recebemos da pedra, recebemos também um conhecimento a nosso respeito, que é o conhecimento de que recebemos o conhecimento da pedra. Este segundo momento, que existe apenas para os humanos, constitui a diferença humana.

Uma pedra, por exemplo, recebe informação de fora, mas não de si própria. Há conhecimento nela, mas ela não emite informação para si própria, ou seja, ela está imune a si mesma. Ela não pode ser afetada por ela mesma, não pode fazer nada para si. Ela é inerme com relação a si. Logo, há uma limitação em seu modo de ser, que corresponde a uma limitação em seu modo de conhecer. A pedra existe deficientemente porque conhece deficientemente.

Do mesmo modo, a existência do ser humano se mostra mais rica, mais plena, mais verdadeira na exata medida em que mais conhece. O ser humano de pouca consciência existe de maneira tênue e fantasmal, afeta pouco o mundo circundante e age pouco sobre si mesmo. Já os que conhecem muito, como por exemplo Aristóteles, Platão, Lao-Tse, são mais reais, porque conhecem mais, e em conseqüência atuam sobre uma esfera maior durante mais tempo.

Os fenomenologistas estavam nesta pista. Não sei por que, não chegaram a estas conclusões metafísicas. O próprio Husserl, após passar a vida desenvolvendo o método, se dirige a uma filosofia da consciência que é uma espécie de idealismo filosófico. No entanto, esta não é a única direção possível a partir da filosofia. Isto é afirmado taxativamente por Roman Ingarden, o grande discípulo polonês de Husserl. Eu próprio teria preferido dar esse passo: existe uma forma de realidade que abrange sujeito e objeto, que se chama conhecer, e esta forma é coextensiva ao ser, ou seja, a distinção entre o sujeito e o objeto é superada no ato de conhecer. O conhecer não é somente uma relação entre um sujeito dado e pronto e um objeto dado e pronto. A potência de conhecer está na natureza do sujeito assim como a potência de ser conhecido está na natureza do objeto, porém não há o sujeito puro nem o objeto puro, que são meras suposições e conceitos funcionais.

Dito de outra forma, os conceitos de sujeito puro, que só conheceria e nunca seria conhecido, e de objeto puro, que só seria conhecido e nunca conheceria, são negações da realidade. São obtidos por negação das condições que permitem que a realidade seja realidade. A verdadeira realidade é o conhecer, nunca um puro sujeito ou um puro objeto. Sujeito e objeto são decorrentes do conhecer, fundados no conhecer. Então o conhecer é o próprio ser, que tem a capacidade de ser sujeito e objeto ao mesmo tempo.

Mas, se a realidade consiste fundamentalmente no ato de conhecer, precisamos cortar do verbo conhecer todo seu aspecto subjetivo. O conhecer não é algo que se passa no sujeito, apenas. O conhecer se passa no sujeito e no objeto ao mesmo tempo; o objeto não é fisicamente alterado pelo ato, mas ele participa do processo. Se o conhecer, entendido como relação, como unidade dual de sujeito e objeto, é a própria natureza do ser, então essa mesma dualidade una tem de existir no próprio ser; e de fato existe, como aspectos de relações que ele pode ter consigo mesmo. Se assim é, então a gradação do ser é a mesma gradação do conhecer. Ser mais ou menos é conhecer mais ou menos.

Na verdade, a pedra conhece algo de mim. Eu passo alguma informação a ela. No momento em que a vejo, passo a ela um recibo da sua visibilidade, atualizo sua potência de ser vista, respondo a uma informação que ela me transmite. Só que ela não pode repetir essa informação para si e aprofundá-la, então ela tem pouca informação a meu respeito, assim como tem pouca informação a respeito dela mesma. Ela faz mais parte do meu mundo do que eu faço parte do mundo dela, embora eu a afete. Neste sentido, ela é menos real do que eu. E pelo fato de ser menos real, ela tem algo de fantasmagórico. Quem quer que já tenha ficado sozinho e quieto por muito tempo entre objetos inertes compreende o que estou dizendo.

Essa impressão pode facilmente ser apreendida quando se está sozinho no meio de objetos inertes. Usualmente, quem se encontra nesta situação tende a criar um diálogo interno, ou fica com uma certa impressão de irrealidade, porque as coisas em sua presença são passivas. Elas não existem com a intensidade das coisas verdadeiramente reais. Elas são deficientes. Podemos concluir daí que o que chamamos de alma ou de espírito é a verdadeira substância da realidade. O espírito é o próprio conhecer. A verdadeira natureza da realidade é de ordem espiritual, cognitiva.

Se se compreende o que estou dizendo, compreende-se também que isto nada tem a ver com idealismo filosófico, seja idealismo subjetivo, seja idealismo objetivo. A distinção de idealismo e materialismo é posterior e derivada logicamente em relação a esta minha doutrina, que tanto pode ser usada para fundamentar um quanto o outro, dependendo de julgarmos que o ato espiritual, cognitivo, é material ou imaterial – duas hipóteses que, para mim, não têm a menor importância, aliás nem têm muito sentido.

Todo o universo é um imenso intercâmbio de informações, que circulam e que vão infinitamente além da própria presença espacial dos objetos. Uma pedra, por exemplo, é tudo o que ela já sofreu, é a sua história. Não uma história projetada, mas a história que está nela. Só que para ela, subjetivamente, esta história só existe como resíduo físico, como marcas, pois ela não tem reflexão sobre este passado. Embora traga nela a informação, para ela subjetivamente esta informação não existe, não obstante exista em seu “corpo”, digamos, para ser vista por outros seres.

Ora, nós trazemos todas essas marcas, só que não apenas para mostrar a outros seres, mas para nós mesmos. Somos, portanto, duplamente reais: para os outros e para nós mesmos. A pedra não, só é real para os outros. Neste sentido, ela é menos real. Ela acumula informação que circula do mundo para ela e dela para o mundo, mas não dela para ela, sendo que esta última, a informação de si para si, é a que dá a dimensão de interioridade ou consciência.

Basta essa constatação para verificar o quanto é estúpida qualquer tentativa de negar a consciência. Consciência é a simples transmissão interna de informações, transmissão que se realiza da periferia para o centro, do inferior para o superior, das partes para o todo. Minha definição de consciência não tem nada a ver com a distinção entre mente e corpo, que é a base de infinitas confusões das quais um Richard Rorty, por exemplo, se aproveita para negá-la.

Ora, se a verdadeira presença dos objetos consiste em emitir e receber informação, então aquele que acumula mais informação emitida, recebida e processada de si para si é mais real. Tem uma dose maior de realidade porque tem uma dose maior de circulação de informações, mais contato entre as partes e o todo, entre centro e periferia. Neste sentido, este desenvolvimento a partir da herança fenomenológica seria, se fosse preciso nomeá-lo com nomes de categorias tradicionais que a ele não se aplicam bem, um verdadeiro “idealismo materialista”.

Na verdade, as próprias noções de matéria e mente ficam subordinadas a essa noção de emitir e receber informação. Qual seria o maximamente real? Aquele que emitisse e recebesse toda informação. Este seria o universo considerado como um em-si, não apenas como um objeto – o universo que me inclui e dentro do qual eu exerço minha consciência. Logo, esta minha consciência é um atributo deste mesmo universo, a minha e todas as outras consciências particulares, das quais o universo toma consciência em si mesmo, através dessas mesmas consciências particulares que, estando nele, são dele. Ou seja, toda consciência humana é consciência que o universo tem de si mesmo – apenas restando saber se elas são recolhidas num centro, se somos nós mesmos o centro ou se o universo é apenas coisa, com um para-si tênue ou inexistente – um caso que não precisamos resolver aqui de imediato. Nossa consciência seria a dose de consciência que existe nesta parte do universo, sem contar que podem existir outras. Logo, o universo considerado, não como presença física atual, mas como toda a massa de informação, é a máxima realidade, desde que esse universo tenha um centro capaz de tornar essa massa um para-si — ainda que esse centro sejamos nós mesmos.

E Deus? Se imaginarmos um Deus transcendente ao universo, um Deus que não fosse o próprio Universo, mas que estivesse fora dele, estaria Ele fora necessariamente e sempre, ou seria um aspecto transcendente do próprio Universo? Ora, é claro que Ele é um aspecto do Universo que não pode se reduzir a nenhuma de suas partes e que é de certa forma transcendente a si mesmo, porque inclui toda a possibilidade ainda não realizada no universo físico. Essa possibilidade existe, e ela tem de se autoconhecer. Imagine se assim não fosse: a possibilidade transcendente que desconhece a si mesma e que só nós, seres humanos, conhecemos. Um materialista compreenderia assim. Mas se só nós a conhecemos ela é conhecida, ainda que apenas em nós. Teríamos então o conhecimento desta possibilidade, sem a possibilidade de realizá-la. O Universo teria a possibilidade e não poderia conhecê-la, havendo dentro dele quem a conhecesse sem ter a possibilidade de realizá-la. Se entendemos que essa omnipossibilidade inclui as possibilidades de consciência, entendemos também que essa hipótese materialista é absurda.

Logo, é claro que o Universo se conhece. A parte dele que se conhece mas que não está realizada ainda, e que talvez não se realize nunca, nós chamamos de aspectos transcendentes de Deus. Para ser transcendente, não é preciso ser transcendente a tudo.

Se existe consciência dentro do Universo, existe consciência noUniverso. Fatalmente, esta consciência transcende todas as consciências particulares que estão lá dentro, porque senão haveria apenas consciências particulares e não sua conexão, e não obstante elas estão conectadas realmente, pelo fato de estarem no mesmo lugar, ter a mesma história, etc. Assim sendo, não podemos admitir que exista alguma conexão central real dentro do universo que não seja autoconhecida também, embora não por esta ou aquela consciência particular. Daí se conclui a necessidade absoluta de uma consciência não apenas cósmica, mas supracósmica, porque se fosse apenas cósmica estaria limitada àquilo que o universo já é e não teria nenhuma possibilidade acima de si. O universo não teria a capacidade de superar-se, coisa que sabemos que ele tem: geração de novas estrelas, galáxias, etc.

Ou seja, a necessidade de uma consciência supracósmica e de um poder supracósmico de realizá-la é absoluta. A existência de Deus é uma evidência para quem encara a coisa da maneira certa, é absolutamente necessária e é absolutamente inconcebível que seja de outra maneira. Cada frase que se pronuncia, cada sentença de qualquer ciência exige isto.

As pessoas não percebem essa necessidade porque não relacionam uma coisa com outra, ou porque têm a ingênua pretensão de que sua ciência vai encontrar o mistério do universo que seja desconhecido pelo próprio universo. Ora, quando você começou a formar sua ciência, você já está dando por subentendido que a explicação do universo está no universo, e não apenas dentro do departamento onde o cientista trabalha, magicamente isolado do universo. A própria possibilidade de fazermos ciência está dentro do universo. Ninguém sai do Universo para fazer ciência ou o que quer que seja. Essas idéias confusas vêm de uma noção equivocada de objetividade, que a entende como se colocar fora do problema, quando a verdadeira objetividade consiste em saber onde precisamente se está, dentro do problema. Do contrário, seria como se Hamlet, para conhecer o rei ou Ofélia, precisasse sair da peça. A objetividade consiste na descrição exata das posições recíprocas, e não em sair de todas as posições e observar como se estivesse de fora.

Estando de fora, sem nenhuma relação com o objeto observado, não há sequer como observá-lo. A idéia do “puro observador” é uma autocontradição, porque sem relação não há conhecimento. O conhecimento é a relação, e esta relação, entendida não como junção posterior de termos já dados, mas como reciprocidade necessária de termos coexistentes, é a estrutura mesma do ser, que consiste em autoconsciência e nada mais, independentemente de questões inócuas como a de saber se é material ou mental.

Eis os princípios da metafísica que defendo.

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