Anna Marina

O Estado de Minas, 17 de março de 2001

 A revista Época desta semana publicou mais um dos esplêndidos artigos do filósofo Olavo de Carvalho. Gosto muito das coisas que ele escreve, porque a abordagem é perfeita. Seu vasto conhecimento permite que ele mostre com toda categoria os pés de barro de alguns dos ídolos da mídia brasileira.

Ele é do tipo que, até onde dá para perceber, não pertence às panelinhas , não participa daquela instituição tão nossa que é a “fale-bem-de-mim-que-falo-bem-de-você” que, de certa forma, domina a mídia cultural do nosso país.

Basta ter um pouco de paciência para acompanhar esse tricô de elogios que é tecido para empulhar o leitor, passando para ele conceitos que estão quase sempre longe de serem reais. O pobre do leitor engole a isca e fica achando que fulano é mesmo o máximo, porque foi elogiado por beltrano, que também é o máximo.

O Rio é certamente o celeiro mais profícuo dessa troca de interesses. Por ser um grande balneário, as idéias geralmente rolam em torno da praia, do sol, do verão. Não têm, portanto, necessidade nem de serem duradouras – nem tampouco reais. A crônica cultural do Rio é cheia desses conchavos. De certa forma, eles nasceram de um fato real: a amizade e a excelência das crônicas de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos.

Amigos extremados, eles se badalavam mutuamente – com direito, é bom que se enfatize, porque todos eram uns craques. Da trinca, só restou Fernando Sabino, que entrou num inferno astral desde que se propôs a escrever aquele malfadado livro sobre Zélia Cardoso de Melo. Desde então, foi incluído no index dos jornalistas da esquerda, que não perdoam essa pisada de bola que ele deu. E que só se apressam em acusar quem acreditam que é simpatizante da direita. Quando se trata das esquerdas, é mais ou menos como aquele patuá de julgamento: “Aos costumes, disse nada”.

Olavo de Carvalho focalizou, nesta semana, a figura controvertida de frei Leonardo Boff, que adota a política de dois pesos e duas medidas. Não dá a menor bola para o que a esquerda apronta, e usa de toda a sua argumentação filosófica para tentar derrubar governos estáveis. O que Olavo de Carvalho pergunta é simples, liminar: como é que ele não consegue enxergar o que a esquerda andou aprontando pelo mundo afora?

Conheço de perto esse tipo de cegueira, ela também grassa por nossos lados. Há os esquerdistas românticos, que até hoje defendem Stalin, não acreditam nas atrocidades que ele cometeu com seu próprio povo. Atrocidades que não deixavam uma brecha para o alívio: iam da censura da cultura até a política, ambas terminando quase sempre nos campos de extermínio que montou na Sibéria.

Mas há também os ativistas, que gostam mais da figura de Fidel Castro. Confesso que nos anos 60 tive uma romântica simpatia por Fidel, Che Guevara, que comemorei no Alpino , com meus amigos, a queda de Batista. Mas o tempo foi passando e deu para descobrir que o que havia acontecido em Cuba era apenas uma troca de ditaduras. Saiu Batista, que conseguiu transforma Cuba num paraíso turístico – e todo mundo sabe que esse tipo de riqueza acaba modificando a qualidade de vida dos habitantes de um país, de um estado, de uma cidade – e entrou Fidel.

Entrou com aquele ideário político que todos nós conhecemos de cor: é melhor nivelar por baixo, é melhor exigir do povo sacrifícios que nem sempre ele está com vontade de fazer. Se a ilha fosse um mar de rosas, qual a razão do mar viver cheio de perigosas embarcações com destino à Flórida.

As loas a Fidel passaram a ser cantadas por aqui por ativistas sociais que conseguiam ir a Cuba como convidados, viam o que eles se animavam a mostrar e chegavam aqui contando maravilhas da revolução social que ele estava fazendo. Essas figuras malhavam a ditadura brasileira de todas as formas – e com razão. Mas se negavam a enxergar que estavam raciocinando com duas medidas. As atrocidades daqui eram diferentes das de lá, desculpáveis por ser um governo de esquerda, que buscava oferecer a penúria para todos os cidadãos do país.

Não é preciso dizer o enfaro tomel dessa gente. No princípio, ainda tentava argumentar, buscar entender qual era o parâmetro que usavam para ter dois raciocínios tão diferentes em relação a um mesmo estado de coisas – radical. Cansei, deixei pra lá. Essa gente falava de Fidel de boca cheia, como se estivesse falando de um Deus nivelador de todos os problemas, distribuidor de todas as benesses fossem… usar jornal cortado em lugar de papel higiênico.

Estou fora dessa – e é por isso que admiro e louvo a coragem do Olavo de Carvalho, que desce sua borduna filosófica sem dó nem piedade na cabeça dos falsos profetas.

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