Olavo de Carvalho

24 de julho de 2001

Não tendo um corpo de militantes a meu serviço, nem mais que uns minutos por semana para consagrar ao sr. Fedeli entre viagens e mil e um trabalhos, não posso evidentemente acompanhar e responder pari passu às acusações que me fazem ele e seu fiel escudeiro Felipe Coelho. Nem creio que isso seja importante, pois o tempo, por si, se encarregará de esclarecer as coisas. A ânsia, a pressa, a velocidade alucinada com que esses indivíduos disparam incessantemente páginas e páginas de páginas de acusações contra mim já mostra que não pensam em outra coisa, que destruir a reputação de Olavo de Carvalho se tornou para elas uma questão de vida ou morte.

Não me sentindo nem um pouco ameaçado, posso examinar o caso aos poucos, de maneira mais ou menos casual e assistemática, por mera curiosidade e sem nenhum intuito de “me defender”, já que a fantasia tribunalícia é do sr. Fedeli e não minha.

Um ponto que me parece especialmente importante é o conceito geral de gnose que entra nesta discussão.

Quando se trata de aplicar um conceito geral a um caso particular, a única prova admissível reside na coincidência exata ou pelo menos adequada das propriedades deduzidas do primeiro com aquelas observadas no segundo. Logo, para saber se sou um gnóstico ou não, seria preciso, primeiro, saber qual o conceito geral de gnose usado pelo sr. Fedeli.

Felizmente, para descobrir isso não é preciso desencavar um conceito de gnose implícito nas análises que ele fez do meu pensamento. Meses antes da eclosão da nossa controvérsia ele já havia exposto esse conceito num trabalho publicado em sua homepage. Isso nos dá a garantia de colocar a presente análise no terreno firme de uma fórmula inicial jamais impugnada ou corrigida pelo autor no que quer que fosse, excluindo também, ao menos por enquanto, a hipótese de que ele tenha depois concebido uma definição ad hoc para me fazer caber dentro dela.

Para conceituar a gnose, poderíamos dizer que ela pretende ser “o conhecimento do incognoscível”.

Evidentemente, essa conceituação revela uma contradição que é típica da gnose. Conhecer o incognoscível é uma contradição conceitual e lógica. Mas ocorre que a gnose repele a inteligência e a lógica como enganadoras. O verdadeiro conhecimento seria intuitivo, imediato e não discursivo e lógico.

Conhecer o incognoscível, de fato, significa dar ao homem o conhecimento de Deus e do mal, coisas impossíveis de compreender. De fato não podemos compreender ou conhecer a própria essência de Deus que é ser infinito e transcendente, impossível de ser captado por nosso intelecto. Também não podemos entender o mal e o pecado: o mal enquanto ser não existe, e o mal moral não tem razão que o justifique.

Assim, a gnose pretende oferecer ao homem um conhecimento natural que o colocaria em posição de compreender – e portanto superar – a Deus, de compreender a mal, e, ademais, de conhecer sua natureza mais íntima, que seria divina.

A gnose é então a religião que oferece ao homem o conhecimento do bem e do mal.

Ora, sabe-se que a árvore do fruto proibido do Éden era exatamente a árvore do conhecimento ou ciência do bem e do mal (Gen. II,10). Assim, teria sido a gnose a tentação de Adão. Com efeito, a serpente prometeu a nossos primeiros pais que, se comessem o fruto proibido, “seriam como deuses, conhecendo o bem e o mal” (Gen., III,5). A tentação de Adão e Eva foi a de se tornarem deuses. Essa é a grande tentação do homem, que, levado pelo orgulho, como Lúcifer, não admite sua finitude, não aceita sua contingência.

Essa tentação é, de fato, uma revolta anti-metafísica. Ora, é esse um outro modo de conceituar a gnose: uma revolta anti-metafísica.

Se admitirmos essa interpretação da tentação adâmica, teremos que concluir existência uma continuidade da gnose na História. E é o que constatam os estudiosos: a gnose apresenta-se realmente como uma religião ora oculta, ora pública, mantendo porém unidade e continuidade no transcorrer da História.

Essa unidade histórica da gnose através dos tempos e civilizações é constatada por muitos autores. Dennis de Rougemont, por exemplo, escreve:

“Mais perto de nós que Platão e os drúidas, uma espécie de unidade mística do mundo indo-europeu se desenha como em filigrama no plano de fundo das heresias da Idade Média. Se nós abraçamos o domínio geográfico e histórico que vai da Índia à Bretanha, constatamos que uma religião aí se espalhou, para falar a verdade, de um modo subterrâneo, desde o século III de nossa era, sincretizando o conjunto dos mitos do Dia e da Noite tal como eles tinham sido elaborados inicialmente na Pérsia, depois nos segredos gnósticos e órficos e é a fé maniquéia”.

Por sua vez, H. I. Marrou atesta:

“(…) da fato, a gnose e seu dualismo pessimista exprimem umas das tendências mais profundas do espírito humano, uma das duas ou três opções fundamentais entre as quais o homem deve finalmente escolher. Claude Tresmontant mostrou bem a permanência da tentação gnóstica, sem cessar reaparecida, sob formas diversas no pensamento ocidental no curso de sua história nos Bogomilas e Cátaros da Idade Média, em Spinoza, Leibnitz, Fichte, Schelling, Hegel. Poder-se-ia continuar esta história além do romantismo alemão e até nossos dias: o destino de Simone Weil é particularmente muito significativo; foi bem o seu neo-gnosticismo que a deteve finalmente na soleira da Igreja e sua herança se reencontrava na obra histórica de sua amiga e discípula Simone de Pétrement”. (1)

Um conceito é obtido a partir da síntese abstrativa de traços notados num certo grupo de fenômenos tomados como exemplares de uma espécie. Se o conjunto dessas notas conseguiu apreender adequadamente a essência da espécie, o conceito poderá ser generalizado para outros fenômenos da mesma espécie. A prova de que a generalização é adequada — insisto — reside na coincidência entre as propriedades deduzidas do conceito e aquelas observadas nos novos fenômenos que se pretende abranger nele.

Se o conceito fedeliano de gnose pretende abarcar a continuidade essencial de um fenômeno histórico em todas as suas manifestações, estas devem portanto ter algo em comum que permita pensá-las como unidade. Se a própria formulação lógica do conceito exclui alguma das mesmas manifestações inicialmente tomadas como exemplares, é porque ele não apreendeu corretamente a essência considerada, mas apenas alguns de seus aspectos acidentais. Uma definição feita a partir da coleta de aspectos acidentais não apenas é incapaz de dar conta dos fenômenos que abrange, porém, mais ainda, não poderá sem grave erro ser generalizada para abarcar novos fenômenos, pois estes se arriscam a não ter com os primeiros outro nexo senão acidental.

Um conceito elaborado nessas condições é garantia segura de confusão e erro.

Tal é, precisamente, o caso do conceito criado pelo sr. Fedeli. Já no seu enunciado inicial, “conhecimento do incognoscível”, ele exclui do fenômeno gnóstico pelo menos duas de suas manifestações modernas mais inquestionadas pelos estudiosos, isto é, o positivismo e o neopositivismo. Possuindo todas as seis características da gnose moderna tal como descrita por Voegelin, estas duas escolas têm como seu princípio fundamental, justamente, a abdicação sistemática de todo conhecimento que esteja para lá da experiência sensorial e portanto, a fortiori, o “conhecimento do incognoscível”.

Logo a seguir, ao afirmar que “a gnose repele a inteligência e a lógica como enganadoras. O verdadeiro conhecimento seria intuitivo, imediato e não discursivo e lógico” o sr. Fedeli exclui do fenômeno gnóstico todo o racionalismo clássico, a começar por Spinoza e Leibniz, que, linhas adiante, citando Marrou, ele mesmo classifica como gnósticos. Exclui ainda Hegel, também mencionado como gnóstico por Marrou. Para fazer uma idéia de quanto Hegel estava longe de todo intuitivismo, basta dizer que ele qualificava de “inimigo da humanidade” quem quer que, fugindo à demonstração racional, apelasse à sentença de um “juiz interior”.

Um conceito que não somente não pode ser generalizado para abranger outros fatos, mas que não abarca nem mesmo os próprios fatos dos quais partiu a sua formulação não é, obviamente, um conceito, mas apenas a expressão vaga e autocontraditória de uma impressão subjetiva.

O sr. Fedeli não tem, portanto, nenhum conceito de gnose. Não digo que tenha um conceito ruim, ou tosco, ou primário. Não tem nenhum. Tem apenas uma imagem, um símbolo unificador – o da serpente no Paraíso – em torno do qual pode agrupar, pelo método mágico da analogia, uma multidão de fatos objetivamente inconexos, cuja acumulação dê ao conjunto uma aparência de verossimilhança fortemente persuasiva — na verdade, tanto mais fortemente persuasiva quanto menos logicamente fundamentada.

Um símbolo não pode, como um conceito geral, ser aplicado a casos particulares pelo método racional que confronta as propriedades observadas neste últimos com as propriedades deduzidas do conceito geral. Um símbolo pode ser apenas “associado”, por analogia, a outros símbolos, e organizado numa cadeia de símbolos. Mas uma analogia não é uma identidade; bem ao contrário, é um misto indissolúvel de semelhanças e diferenças, de modo que, de uma cadeia simbólica, por mais extensa e rica que seja, nada se pode concluir quanto à realidade ou irrealidade dos nexos assinalados.

Também é evidente que qualquer julgamento classificatório que se faça de um caso particular tomando como base não um conceito, mas um símbolo, será logicamente “irrefutável” pelo simples fato de não ter um conteúdo concetual identificável que permita, nele, separar o verdadeiro do falso. Tal é exatamente o que acontece com o juízo que o sr. Fedeli faz dos meus escritos. 

Comparado a qualquer esboço de apreensão conceitual, mesmo canhestra, mesmo errada, essa forma de pensamento é primitiva, irracional e puramente mágica. O desprezo que o sr. Fedeli mostra ao irracionalismo gnóstico é pura afetação, ocultando a confiança cega que ele deposita na sua própria fantasia subjetiva.

Confiar-se a esse método no puro domínio investigativo, sem conseqüências práticas para ninguém, já seria uma irresponsabilidade absolutamente intolerável. Usá-lo como critério classificatório para um julgamento que pode ter efeitos lesivos sobre a reputação alheia é o cúmulo da leviandade. Mas o que mais se poderia esperar de um sujeito que, para disparar sobre outrem uma acusação de toxicomania, se baseia num livro que nem leu?

Espero que, diante dessa constatação, o sr. Fedeli não se apegue ao subterfúgio de que essa sua definição de gnose foi apenas uma tentativa informal e provisória – pois isto implicaria reivindicar, para um texto publicado e referendado pelo autor, o privilégio da interpretação figurada e liberal, que ele jamais concede às minhas palavras nem mesmo quando proferidas oralmente, de improviso, e transcritas sem minha correção. Essa duplicidade de critérios trairia de imediato a mais completa desonestidade, agravada ainda pelo fato de que o referido texto, sendo o único que na sua homepage é consagrado ex professo à explicitação de um conceito capital na sua obra escrita, assume nela portanto uma importância igualmente capital.

É evidente que a confusão do sr. Fedeli não tem de ser explicada necessariamente, em primeira instância, como fruto da malícia. O detalhe mais pitoresco – ou mais trágico – da sua fantasia é que, buscando definir a gnose pela sua contradição constitutiva, ele acaba por emitir, não a definição de uma contradição, mas uma definição autocontraditória. Qualquer principiante de lógica percebe a diferença entre o enunciado de uma contradição e um enunciado que se contradiz a si mesmo. Mas a contradição que o sr. Fedeli vislumbrou no seu objeto acabou por se apossar do próprio instrumental lógico com que ele tentava captá-la, e no fim as névoas da gnose encobriram o próprio olhar que buscava esclarecê-las. O sr. Fedeli é bem mais gnóstico do que jamais poderia imaginar.

Esse caso ilustra o triste destino do estudioso que, armado de um instrumental intelectual precário, se aventura a atacar um assunto superior à suas forças. A forma mentis do sr. Fedeli é inteiramente moldada e limitada pelos dois únicos elementos que a compõem: a extensa leitura dos textos doutrinais católicos e as técnicas de pesquisa historiográfica que aprendeu na USP. Faltam-lhe por completo a habilidade filosófica para a penetração teorética dos conceitos e a agudeza semântica para distinguir os sentidos das palavras conforme o contexto e o momento. Sua incompreensão do que lê raia freqüentemente a estupidez, como se vê na freqüência com que ele incorre na confusão entre figuras de linguagem e conceitos formais e na alteração pura e simples do sentido das palavras (se bem que seu discípulo Felipe Coelho supere o mestre nesse ponto, ao interpretar “virtude salvífica da devoção intelectual” como “salvação pelo conhecimento”).  A prova de que essa confusão não é acidental, mas reflete uma sua incapacidade crônica, uma falha na sua formação intelectual e talvez até um escotoma na sua percepção geral do mundo, é que ele não a comete somente ao ler, mas também ao pensar, como se viu no presente caso, onde, imaginando elaborar um conceito, ele não produz senão símbolos e analogias.

A falta de sensibilidade para a diferença entre sentido reto e sentido oblíquo, portanto um literalismo mecânico e raso, é vício redibitório em qualquer estudioso cuja ocupação consista, basicamente, em interpretação de textos. Talvez por isso esse historiador raté tenha preferido dedicar-se, longe das sutilezas de um público mais culto, à carreira de líder de seita. Aí, numa atmosfera onde o temor reverencial, o fanatismo religioso e o constante sobressalto das ovelhas que se sentem rodeadas de lobos inclinam à atrofia geral do senso das nuanças da linguagem, o mestre está livre para repassar ao público as suas deficiências de compreensão, a sua desordem interior e a sua doença espiritual.

Notas

(1) Orlando Fedeli, “Gnose: a religião oculta da História”, em http://www.montfort.org.br.

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