Olavo de Carvalho

5 de novembro de 2000

Introdução de A Coerência das Incertezas. Símbolos e Mitos na Fenomenologia Histórica Luso-Brasileira, publicado pela É Realizações.

Paulo Mercadante destacou-se entre os historiadores brasileiros sobretudo por um de seus primeiros livros, A Consciência Conservadora no Brasil. É obra tão essencial que, até certo ponto, justifica a relativa desatenção com que foram recebidos seus escritos posteriores. Tal é, aliás, o destino de muitos escritores brasileiros, vítimas de estréias felizes que obscurecem toda a sua produção subseqüente.

Na área do pensamento e das ciências humanas, esse fenômeno é ainda mais marcante. Não lhe escapou nem o próprio Gilberto Freyre, enquadrado para sempre na imagem inicial moldada pelo sucesso de Casa Grande & Senzala.

Não há nisso, aliás, injustiça nenhuma: não se espera nem se exige que um pesquisador, tendo resolvido uma questão central da disciplina que o ocupa, faça novas descobertas mais decisivas em seguida. Mas às vezes ele de fato as faz, como as fez o Gilberto de Sociologia e de Além do Apenas Moderno, e como as faz Paulo Mercadante neste surpreendente e enigmático A Coerência das Incertezas. Quando essas descobertas passam despercebidas pelo público, o escritor, garantido por seu prestígio inicial, nada perde. Quem perde é o público, que, satisfeito com o antigo dom, se esquece de estender a mão para receber o novo.

Mas o que Paulo Mercadante dá aos leitores neste novo livro é ao mesmo tempo algo de precioso e de sutil, que não se entregará facilmente nem mesmo a quem estenda a mão. O que este livro tem a dar não é aquilo que a maioria dos interessados na nossa História está costumeiramente buscando. É a resposta a perguntas que só os mais atentos e os mais finos observadores chegaram a fazer. Os demais, mesmo que passem por aqui, talvez nem cheguem a perceber de que raio de coisa o autor está falando.

Para dar aos leitores uma idéia do que encontrarão nas páginas que se seguem, talvez seja bom voltar um pouco à Consciência Conservadora. O problema de que ali se trata é decerto o mais decisivo na história de qualquer país: o que pensam e por que assim pensam os homens que mandam. No jargão das ciências sociais, é “a ideologia da classe dominante”.     Mas o termo ideologia tem, desde seu inventor, Napoleão Bonaparte, a acepção de um discurso evanescente, ideal, irreal. Segundo Marx, esse véu de irrealidades, Ideenkleid, “vestido de idéias”, encobre a dura realidade da luta econômica. De outro lado, toda ideologia tende a organizar-se em sistema, a racionalizar-se e justificar-se mediante cadeias de argumentos, mobilizando exércitos de intelectuais e de educadores para que façam da cultura e do ensino a ampliação e reprodução desse sistema.

E aí já começavam, para o investigador da ideologia brasiliensis, os problemas cabeludos. De um lado, a nossa classe conservadora era muito pouco inclinada aos discursos e teorizações. Pragmática e imediatista, raramente fazia questão de elaborar justificativas meticulosas para o que fazia, contentando-se em apelar a algum pretexto convincente, para fins do imediato, e em contar com o esquecimento geral, a longo prazo. Assim, essa ideologia não podia ser constatada diretamente em textos e documentos: tinha de ser escavada como que do subconsciente, à maneira daqueles discursos silenciosos que um psicanalista desentranha das condutas mudas que os encobrem. Em segundo lugar, tão logo o conteúdo mais ou menos implícito do pensamento das nossas classes dominantes começava a mostrar-se aos olhos do investigador, não se parecia em nada com um vestido de idéias a encobrir uma realidade, mas bem ao contrário, era de certo modo o traslado mesmo dessa realidade, apreendida da maneira mais simples, direta e chã. A “consciência conservadora” era de fato um pragmatismo, um arranjo oportunista de soluções oportunas. Que esse arranjo, no mais das vezes, se compusesse de ideais teoricamente contraditórios, cuja acomodação resultaria escandalosa do ponto de vista das mentes mais apegadas à coerência discursiva, era coisa que não abalava no mais mínimo que fosse a classe dos senhores, mais interessada em viver do que em filosofar. Mais ainda, a coexistência de valores incompatíveis, longe de ser sinal de irrealismo ou de falta de sensibilidade, era muitas vezes a expressão a mais exata possível do quadro de circunstâncias, a equação certeira das forças econômicas e políticas em jogo. Por exemplo, o Brasil de 1822 não podia abdicar nem das idéias liberais que inspiravam o movimento de independência, absorvidas na Europa pelos filhos da nossa aristocracia que lá iam estudar, nem das bases econômicas, fundamentalmente agrícolas e escravistas, que davam a esses jovens os meios de ir lá estudar e adquirir essas idéias. A solução pragmática foi “conciliar, antes de tudo, a revolução nas relações externas de produção com o escravismo nas relações internas de produção”, “conciliar o instituto da escravatura e o liberalismo econômico”.[1]

Mas em 1822 não se tratava só de uma revolução, e sim da fundação de um país, da busca de um senso de unidade profunda, de um “instinto da nacionalidade”, para usar a expressão consagrada de Machado de Assis. A rebelião anticolonial, para justificar a existência do novo país, recorre ao discurso do romantismo, de Burke, Savigny e Adam Müller, reação conservadora aos excessos da razão iluminista. “Ao invés de considerar a sociedade e o Estado como resultante de relações contratuais, o romantismo os vê como unidade espiritual; prefere as mudanças imperceptíveis que se acumulam silenciosamente, repelindo as transformações violentas provocadas pelas rebeliões; coloca a superioridade dos costumes como sedimentação da consciência jurídica de um povo e em lugar de um Direito Natural comum a todas as épocas e a todas as latitudes estatui que todas as normas de comportamento se vinculam necessária e historicamente a cada nação.” Porém, ao mesmo tempo, o desejo mesmo de dar expressão jurídica à nacionalidade produz a tendência de “realizar-se através de uma unificação apelando para uma superestrutura jurídica que tudo abrangesse e justificasse”. Transplantado para a nação nova e emergente, o primado romântico do costume sobre a lei assume a figura paradoxal de um formalismo jurídico avassalador. Não menos paradoxalmente, os valores liberais eram afirmados como inspiração perfeitamente autêntica e sincera dos próceres da independência e, ao mesmo tempo, neutralizados pela sua absorção no aparato jurídico “que tudo abrangia”: “O próprio liberalismo econômico seria reduzido a preceito de direito público.”[2]

Conceitos como revolução, reação, liberalismo, nacionalismo, etc., foram criados na Europa para refletir as forças em jogo em diferentes fases de uma sucessão histórica, à medida que ela se desenrolava ante os olhos de seus intérpretes. Amoldá-los a uma situação na qual essas forças, sucessivas do outro lado do oceano, apareciam simultâneas e entremescladas, foi a grande realização ideológica das nossas classes conservadoras. Conciliação e adaptação têm sido, desde então, os instrumentos de uma sobrevivência que de outra forma seria inexplicável. Os arranjos e improvisos, requerendo de um lado uma extrema finura psicológica e um senso prático formidável, dificultavam, de outro lado, a elaboração teórica mais demorada, lançando uma névoa geral no campo das idéias ao mesmo tempo que, na prática, as coisas se resolviam de algum modo. Daí a pobreza teórica do nosso conservadorismo e a facilidade pragmática e quase cínica com que, no poder, ele absorve o discurso e os ideais da oposição progressista ou mesmo revolucionária, para realizar, na prática, o que seus inimigos sonharam em teoria.

Ter chegado a essa profundidade na sondagem das raízes da política nacional fez de A Consciência Conservadora no Brasil um clássico da “história das mentalidades”.

Mas, nos trinta e cinco anos que se passaram desde sua publicação, a curiosidade investigativa de Paulo Mercadante não só foi ampliando o horizonte de temas e problemas que interessavam à sua devoção científica (a mentalidade do homem regional, em Os Sertões do Leste; o confronto de duas éticas em Militares e Civis; a influência paralisante das doutrinas comunistas na cultura brasileira, em Graciliano Ramos), mas, graças aos estudos filosóficos a que se dedicou com intensidade crescente ao longo dos anos, foi observando as coisas desde um ponto de vista cada vez mais profundo e mais pessoal. Em A Consciência Conservadora, movíamo-nos ainda num terreno que, malgrado a originalidade do ponto de vista, era ainda o da tradição historiográfica e sociológica brasileira. A partir de um certo ponto da sua carreira, Mercadante desembocou em questões que escapavam formidavelmente ao horizonte de consciência dos nossos cientistas sociais em geral — limitado por um materialismo e um imediatismo superficial que muito têm a ver com a formação da mentalidade das nossas classes conservadoras — e abriam um campo totalmente novo de investigações. A partir daí, ironicamente, o investigador se tornou um outsider precisamente no momento em que se viu dotado de seu mais fino instrumental analítico. Por uma infeliz coincidência, isso se deu contemporaneamente à tomada dos meios de comunicação cultural por um movimento político que, na ideologia, é herdeiro direto daquele do qual Mercadante, com toda uma geração de intelectuais de esquerda, se desligou quando da revelação do célebre Relatório Kruschev de 1956, e, na psicologia, é um fruto do irracionalismo sociopático infundido na intelligentzia esquerdista do Terceiro Mundo pela crescente influência da New Age, do ecologismo e da apologia marcusiana do lumpenproletariado.  O pensamento de Mercadante se tornava mais sutil e mais profundo justamente na hora em que a vida intelectual neste país sacrificava tudo no altar do simplismo e se reduzia cada vez mais à obsessiva repetição de slogans e cacoetes. Concomitante ao florescimento geral do imbecil coletivo, a individualização da forma mentis de um grande espírito resultou num isolamento monástico imposto pelas circunstâncias. Seus trabalhos, muitos da mais alta relevância para todos os estudiosos da área, como por exemplo a monumental edição anotada das obras de Tobias Barreto, em dez volumes, passaram a ser recebidos com o silêncio sepulcral que, na falta de coragem para a difamação direta, é a reação-padrão da esquerda brasileira às realizações valiosas de seus desafetos.

Mercadante é um dos homens mais humildes, bondosos e ternos que já habitaram esse planeta. Além disso, é inteligente demais para esperar que cretinos o compreendam, e foi dotado pela Providência com um senso de humor que lhe permite sair incólume das mais deprimentes situações mediante um sorrisinho irônico e um gracejo. Admiradores seletos, entre os homens mais cultos do país, – um Roberto Campos, um Vamireh Chacom, um Meira Penna – nunca lhe faltaram. Dos outros ele nada tinha a receber, e, se não recebiam o que lhes dava, eles é que perdiam.

Esse mesmo isolamento contribuiu, decerto, para que as meditações do estudioso fossem tomando um rumo cada vez mais peculiar, mais distante das preocupações (ou meras ocupações) dos nossos cientistas sociais acadêmicos.

Quando levada às suas últimas conseqüências, a história das mentalidades desemboca na história do subconsciente, que é, a fortiori, o subconsciente da história. Por baixo das ideologias, começa a se revelar a camada mais decisiva e misteriosa dos nexos sutis entre a história linear e o tempo cíclico do mundus imaginalis, a esfera dos símbolos, mitos e imagens primordiais que, desaparecendo e aparecendo à superfície dos fatos com regularidade assustadora, parecem constituir algo como o quadrante onde se movem os ponteiros da história. A partir dos anos 60, esse domínio, que mui apropriadamente recebeu o nome de meta-história, foi despertando a atenção de notáveis pesquisadores em todo o mundo. Henry Corbin, Jean-Charles Pichon, Eric Voegelin, Raymond Abellio mostraram que as relações entre história e mito não se explicavam pela mera distinção grosseira da infra-estrutura material e da superestrutura ideal a que as tinha reduzido a mistura de marxismo e positivismo, dominante nos meios acadêmicos desde o século passado e hoje, felizmente, moribunda. Muitas vezes, os mitos pareciam prefigurar a história, determinando de algum modo o seu curso: longe de ser puras criações dos homens históricos, eles tinham uma força criadora e determinante por si próprios. Sua presença ativa, encoberta pela sucessão dos fatos político-sociais, revelava-se de tempos em tempos pela recorrência dos mesmos símbolos, das mesmas imagens, que, emoldurando o imaginário dos personagens,  determinava invisivelmente o curso dos seus pensamentos e das suas decisões. Foi ao estudo dessa ordem de coisas que Mercadante, isolado da tagarelice ambiente, se dedicou cada vez mais.

Porém, a essa ciência misteriosa e desafiadora, Mercadante acrescentou uma ênfase nova e pessoal, derivada dos estudos de ciência física que, desde a juventude, o ocuparam apaixonadamente. Isso permitiu que ele se integrasse, como portador de uma contribuição bastante original, numa linha de investigações que, no mundo, é ainda nova e mal compreendida e, no Brasil, é radicalmente ignorada pelo establishment universitário.

Vamos defini-la. À medida que no campo das ciências humanas se desmoralizavam as noções de progresso linear e de causalidade predominante, dissolução similar sofria, na ciência física, o determinismo mecanicista. A constatação desse duplo fracasso abriu para alguns estudiosos um campo de trabalho que é hoje o mais promissor de todos: a investigação das analogias entre causalidade física e causalidade histórica, ambas compreendidas segundo uma matriz quântica e indeterminista.

Tal é o tema das investigações que, referidas especificamente à fenomenologia histórica luso-brasileira, Paulo Mercadante nos apresenta neste livro extraordinário.

Nesse campo, os símbolos, surgidos do impacto das percepções sensíveis sobre a memória e a imaginação, aparecem como condensados de experiências e de expectativas, formando como que o substrato imaginativo da inteligência racional. Assim, no domínio da ação coletiva, qualquer idéia, qualquer decisão, remetem sempre a um fundo simbólico que as emoldura, limita e, até certo ponto, determina.

Os símbolos pairam sobre a história como possibilidades de concepção que, em certos momentos, “descem” e se convertem em possibilidades de ação. O que determina sua descida e seu retorno, seu aparecimento e desaparecimento no cenário da história, parece ser um fator tão misteriosamente individual e irredutível como aquele que, em física subatômica, determina os movimentos de uma partícula singular. Na escala humana, porém, essa irredutibilidade não pode ser explicada como “irracional”: o indivíduo que apreende o nexo simbólico e o converte em ação deliberada opera, como bem percebeu Weber, de maneira estritamente racional. O irracional, o imprevisível, está somente no acaso que, em certos momentos, fornece ou sonega às forças históricas em conflito o personagem individual decisivo, a mente consciente capaz de apreender o novo sentido de velhos símbolos e, articulando-os com a situação presente, inaugurar uma nova possibilidade e um novo estilo de ação histórica. À análise desse personagem, o líder articulador como o chama Paulo Mercadante, são dedicadas algumas das páginas mais luminosas deste livro. Entre o encadeamento das ações pretéritas, a recorrência cíclica dos símbolos, o acaso que produz ou não produz o líder articulador e por fim a interferência do indivíduo consciente que interpreta a situação à luz dos símbolos e desencadeia novas ações, a rede de ligações é sutil e incerta demais para poder condensar-se num determinismo, ainda que atenuado, porém ao mesmo tempo é coerente demais para que nela nada se veja além de uma sucessão de casualidades furiosas. Daí o título: A Coerência das Incertezas. Trata-se de apreender um nexo de sentido onde não é possível (ainda) falar de uma conexão causal direta.

Os capítulos de teoria estão, decerto, entre os mais interessantes deste livro. Mas a passagem à ilustração concreta, à fenomenologia dos símbolos e de sua recorrência na história luso-brasileira mostra que a especulação teórica não trabalhou no terreno das meras hipóteses. O tecido de símbolos no qual nossa história nacional se move mostra aqui, pela primeira vez, seu padrão, sua forma, sua figura. Nossa vida coletiva já não é uma “história contada por um idiota”. De maneira ainda obscura, mas firme e decisiva, ela expressa um fundo de sentido sobre o qual os indivíduos, seja como líderes articuladores, seja como simples particulares, podem projetar o sentido de suas vidas pessoais, seguros de se integrar num projeto histórico já quase milenar. Após ler o livro de Paulo Mercadante, dissolve-se, como num exorcismo, muito da impressão de gratuidade, de absurdo e de inutilidade que infecta e debilita a experiência de ser brasileiro. De fato, essa experiência tem sido, muitas vezes, a de viver jogado num aglomerado caótico de átomos errantes ou a de tentar vencer o absurdo mediante o apelo – e o apego — a algum mito arbitrário, sem raiz, escolhido pela força da moda ou pela invencionice individual, um arremedo de sentido da vida. É só quando se descobre o nexo de mito e história que a unidade do sentido ideal pode encontrar, na multiplicidade dos fatos, o terreno fértil onde consiga passar da potência ao ato, realizar-se não como ficção histericamente reiterada, mas como vida autêntica.

Sob esse aspecto, este livro de Paulo Mercadante tem, sobre a alma brasileira, um efeito nitidamente curativo.

Não que esse efeito seja fácil de obter. A leitura deste livro é por vezes árdua, tantas são as alusões e subentendidos que entremeiam a exposição, e que, como os símbolos históricos mesmos, requerem um leitor capaz daquela apreensão criativa sem a qual a mágica não se realiza.

Mas o esforço será amplamente recompensado. Pois aqui já não se trata somente de história, nem mesmo de história mítica e simbólica, mas sim de, através dessas disciplinas, abrir uma passagem para o sentido da vida.

Este é, pois, para quem o saiba ler, um livro de sabedoria.

São Paulo, 5 de novembro de 2000

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[1] A Consciência Conservadora no Brasil, Rio, Saga, 1965, pp. 249-250.

[2] Id., p. 252.

 

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