Os mais excluídos dos excluídos

Olavo de Carvalho

O silêncio dos mortos como modelo dos vivos proibidos de falar.1

Em Olavo de Carvalho, O Futuro do Pensamento Brasileiro: Estudos sobre o nosso lugar no mundo, 2a. edição, Rio de Janeiro, Faculdade da Cidade Editora, 1997, pp. 82-111.

Devo começar por fazer recordar aos franceses aqui presentes uma citação do eminente médico brasileiro Vital Brasil, que, na ocasião de falar pela primeira vez a um público de língua francesa, disse: “Peço que me perdoeis pelos danos que eu venha a fazer à gramática, porque estou falando numa língua que não é a minha e que, como o percebereis em poucos instantes, talvez não seja tampouco a vossa.”

Meu único consolo que me traz a presente circunstância de um diálogo plurinacional é a de poder imaginar que talvez alguns dos africanos, asiáticos e americanos que me escutam terminarão por acreditar que vos falo em francês.

O assunto que pretendo sugerir às vossas meditações vos parecerá talvez estranho. Num colóquio dedicado aos sofrimentos dos homens, mulheres, crianças e velhos submetidos a injustas exclusões e discriminações, é dado por pressuposto que se fale sempre de minorias que protestam da justeza de sua causa, para fazer valer seus direitos. O grupo excluído do qual pretendo vos falar é, ao contrário, composto da vasta maioria da espécie humana. Pior ainda, ele se compõe apenas de pessoas que não protestam jamais, que não se exprimem nunca senão por um silêncio que com demasiada facilidade tomamos como sinal de indiferença ou aprovação. Pretendo falar-vos dos mortos, dos homens dos tempos passados. Embora sendo verdade que eles são as mais inermes de todas as criaturas, eles não teriam o que fazer neste colóquio se sua exclusão do diálogo humano não fosse, no meu entender e segundo vos pretendo mostrar se mo permitirdes, o modelo mesmo, o arquétipo de todas as formas modernas de exclusão e de discriminação.

Há muitos traços que delineiam nosso século com um perfil que o singulariza entre todos, mas o mais significativo é sem dúvida a mudança radical da atitude dos homens para com o passado. Essa mudança foi preparada desde o advento do historicismo, mas não atingiu a plenitude senão no século XX. O historicismo ensinou-nos a “relativizar” as idéias, referindo cada uma à sua “época”, de onde não poderiam sair senão na condição de testemunhas de estados de espírito que não voltariam jamais à vida. Ele nos ensinou a ver as idéias e as crenças dos homens de outrora como exemplares de espécies extintas. Ele nos ensinou a não nos esforçar mais para estar na verdade, mas para “ser do nosso tempo”.

Com Karl Marx, o historicismo já não é mais apenas um simples quadro de referência teórico e se torna uma força agente, que modela o mundo à sua imagem: a imagem de um fluxo temporal absolutizado, que desgasta a significação das idéias até fazer delas simples resíduos do fato consumado. As opiniões e as crenças dos homens de outrora, não devemos mais discuti-las, julgar de sua veracidade ou falsidade: devemos explicá-las em função de estados de coisas que nada têm a ver com o seu conteúdo, mas que se supõe havê-las “produzido” desde fora por uma espécie de “simpatia” mágica entre as estruturas maiores da sociedade, da história e do psiquismo, e aquilo que cada homem acredita pensar livremente. Explicamos os teoremas da geometria pela luta política, os metros da poesia pelos interesses de classe. Estamos longe do tempo em que Sto. Tomás podia ler os textos de Aristóteles tal como se fossem de edição recente, para separar neles o verdadeiro e o falso, o melhor e o pior. Não pousamos jamais nosso olhar sobre o assunto dos escritos antigos: miramos de esguelha, não visamos senão às causas que supomos havê-las produzido e a “explicação” que delas nos podem dar. Com o advento da psicanálise, esse desejo de olhar de viés vai mais longe ainda: ante um homem que tenta nos comunicar os conteúdos de sua consciência, não miramos senão os conteúdos de seu inconsciente, que freqüentemente nada têm a ver com aquilo que ele deseja nos fazer ver. Desde então, o progresso dos métodos e das teorias – das análises pejorativas de Nietzsche até o desconstrucionismo – não fez senão nos levar cada dia mais longe do ponto focal visado pelos homens cujas ações e palavras professamos estudar e compreender.

O desejo de enxergar as grandes estruturas e os ciclos maiores por trás dos fatos e dos homens singulares é, decerto, algo de legítimo, talvez de louvável. Mas com freqüência esse impulso nos leva a fazer, dos homens dos tempos passados, puros objetos de nossa pesquisa, o que nos faz esquecer que são homens, isto é, interlocutores legítimos que têm o direito de nos falar de iguais para iguais.

Não é o objetivo da presente comunicação descrever-vos esse longo processo de transformação de nossa imagem dos homens de outrora. Vós o conheceis, talvez, melhor do que eu. O que pretendo é mostrá-lo enquanto forma de exclusão – o feito de uma época que se crê suficientemente boa para saber, das outras, muito mais do que elas mesmas o sabiam, tal como o superior conhece o inferior melhor do que ele mesmo.

Para empreender esse esboço de nossa imagem dos tempos passados sub specie exclusionis, vou começar por um breve exame de uma constante das relações entre os seres da nossa espécie: a reciprocidade.

  1. Resposta e efeito

Donde vem a satisfação que sentimos quando uma flor que plantamos desabrocha, quando o cão que chamamos por um assobio vem se deitar aos nossos pés? Não se trata, por acaso, de simples reações normais e previsíveis ao simples desencadear de um mecanismo de causa e efeito? Por que então nos parecem mais significativas do que o ronco do motor quando damos partida a um automóvel, do que a mudança da tela do computador quando clicamos o mouse? É que nelas podemos entrever toda a distância que separa um efeito de uma resposta. Esta última pode sempre ser negada, pode vir diferente do que esperávamos, e é algo de mais precioso do que a manifestação de nosso simples poder de produzir efeitos. Em todos os casos em que responde à nossa expectativa, ela nos parece ser como que a retribuição de uma atenção amorosa. Percebemos que por trás dela existe algo como uma decisão, o exercício de alguma liberdade, um consentimento que manifesta uma harmonia e uma graciosa compreensão mútua entre nós e o mundo. Por esta mesma razão, temos mais paciência com o cão desobediente ou com a planta que demora a brotar do que com o carro que não pega ou com a tela de computador que “congela”. Isto provém da natureza mesma das informações que nos são trazidas pela sua recusa de nos obedecer: o automóvel, o computador que não funcionam só nos informam acerca de seu próprio estado. O cão que se furta ao nosso chamado expressa algo que é como sua opinião a nosso respeito. Ele nos julga, enquanto a máquina não julga senão a si mesma.

Uma reação se aproxima tanto mais de uma resposta e se distingue tanto mais de um simples efeito quanto maior a sua complexidade, portanto a imprevisibilidade do sujeito, sua liberdade de nos aceitar ou nos rejeitar, liberdade que no cão, e até certo ponto mesmo na planta, é normal e constitutiva, enquanto no carro ou no computador é somente defeito e anormalidade.

Dar ou negar respostas é próprio do ser vivo. Eis por que a capacidade de prever respostas é considerada uma habilidade superior, e mais próxima do ideal de sabedoria, do que o simples conhecimento de relações de causa e efeito.

Todo conhecimento do ser humano pelo ser humano implica sempre, em algum grau, a possibilidade ao menos de conjeturar suas respostas, mas também a impossibilidade de as calcular com uma exatidão tal que acabassem tendo para nós uma significação menor que a da obediência do cão ou a do funcionamento regular de um utensílio eletrônico. No ser humano, a imprevisibilidade absoluta coincidiria com a total ausência de conhecimento a seu respeito, a absoluta previsibilidade com a supressão de seu estatuto humano, com sua redução ao substrato biológico ou bioquímico ou talvez físico de sua hominidade.

É porque as respostas de um ser humano podem ser variadas que elas têm para nós uma significação. É porque essa significação não pode variar para fora da gama admitida pelo ato ou pela palavra que a suscitam que ela nos é compreensível, em princípio e de jure, e é o fato de ela dever ser compreensível que nos permite, quando não o é, julgá-la absurda.

Por todas essas razões, não se pode admitir como dotada de sentido nenhuma idéia ou crença a propósito do ser humano, que não implique, em certa medida ao menos, o interesse pela resposta que se supõe que ele teria a lhe oferecer. Se tenho uma opinião sobre um certo indivíduo, mas me é impossível prever o que ele pensaria dela, então ela não contém efetivamente nenhum conhecimento a respeito dele, ela deixa escapar totalmente seu objeto, ela não sai do círculo de imanência onde comparo, umas com as outras, minhas várias imagens de mim mesmo.

  1. Reciprocidade e bilateralidade atributiva

Existe portanto, no conhecimento do ser humano pelo seu próximo, sempre a admissão de um certo grau de reciprocidade, seja positiva, seja negativa. Conheço um homem na medida em que sei que o horizonte daquilo que ele sabe dele mesmo é igual, maior ou menor do que aquele em que o enxergo.

Em nenhum caso isso é mais evidente do que na radical discordância. Saber que não estou de acordo com alguém é saber que ele não está de acordo comigo. A impossibilidade de prever sua reação a minhas opiniões importaria em ignorar por completo se entre nós há acordo ou desacordo. Quando estudamos culturas estrangeiras, sabemos que alguns de seus costumes só nos parecem estranhos na medida mesma em que, como o diz a própria palavra costume, não parecem estranhos de maneira alguma àqueles que os seguem. Aos olhos destes, é nossa reação de surpresa que parece estranha.

Em toda relação pessoal, o conhecimento que julgamos ter de nossos próximos não é jamais pertinente se não traz dentro de si informações corretas concernentes ao que eles pensam de nós. A imagem do próximo é por assim dizer bidirecional, e é só a retrovisão que nos dá o centro de perspectiva dessa imagem. Sem este feedback, permaneceríamos semi-cegos e desorientados como uma flecha que, tendo esquecido seu alvo, voasse nas trevas. (É mais ou menos a situação em que me encontro, falando-vos numa língua que suponho ser o francês sem saber se ela o é também para os que me escutam.)

A mesma coisa se passa na política: não podemos compreender uma ideologia, um partido, um movimento qualquer, se não temos uma idéia do que nossas interpretações deles significam desde o seu ponto de vista.

Reduzindo o próximo à condição de um objeto inerme, destituindo-o de sua capacidade de nos julgar e de nos abalar, isto é, arrebatando-lhe sua força e seu potencial de periculosidade, já não lidamos mais senão com marionetes que se movem e falam a nosso belprazer.

Jamais, no conhecimento do homem pelo homem, a virtude de objetividade corresponde a um deslocamento do observador para alturas divinas onde esteja protegido de todo feedback, de toda possibilidade de uma resposta. Bem ao contrário, esse deslocamento não seria senão um sonho de onipotência infantil, a abdicação do senso das medidas, que é a garantia única da objetividade de nossos conhecimentos.

É mesmo espantoso que esse sonho de onipotência tenha sido consagrado como o ideal da objetividade científica, que a impossibilidade de separar o observador das coisas observadas tenha sido deplorado como um sério obstáculo ao conhecimento, quando ela é precisamente a garantia da realidade de todo conhecimento, a garantia de um liame indissolúvel de sujeito e objeto.

Com tanto mais razão, em nenhum caso o reconhecimento da necessidade do feedback depende de que o próximo esteja conosco numa relação de proximidade física. Se um modesto jornal de uma cidade do interior do Brasil publica críticas ao Sr. Lionel Jospin as quais o Sr. Jospin não lerá jamais, ainda neste caso é preciso que o articulista tome por modelo de sua argumentação a inversão imaginária das reações possíveis do Sr. Jospin ao seu artigo.

Em todo conhecimento que buscamos sobre o ser humano, a expectativa da reciprocidade é uma necessidade tão premente, que podemos dá-la por pressuposta. É só quando ela falta que ela nos atrai a atenção. Nesses momentos, a impressão de incongruência será tanto mais forte quanto mais inconsciente tenha sido a expectativa de reciprocidade.

Tão fundamental é essa expectativa, que a norma jurídica das relações humanas tem como critério essencial o que o jurista brasileiro Miguel Reale chamou bilateralidade atributiva.

“Existe bilateralidade atributiva – escreve Reale – quando duas ou mais pessoas estão numa relação segundo uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente alguma coisa. Quando um fato social apresenta esse gênero de relação, dizemos que é jurídico.” 2

Segundo Reale, a diferença entre os fenômenos jurídicos e os não jurídicos – econômicos, psicológicos, etc. – é que nestes a bilateralidade não é atributiva, isto é, a correspondência não está assegurada, não obedece a um padrão uniforme ou obrigatório.

Portanto, é precisamente nessas esferas que o esforço de conjeturar e prever a resposta se torna ainda mais importante, e este esforço é repetido com tanta freqüência que acaba por se integrar no conjunto dos automatismos da vida cotidiana e nas rotinas do conhecimento científico sem necessitar de uma teorização especial.

  1. feedback, condição de todo conhecimento do homem, da natureza e de Deus

Por isso, mesmo ante os objetos da natureza – e me ocorre agora que Eugen Rosenstock-Huessy definia a natureza como “o mundo menos a fala” –, nossa confiança no sucesso de nossas idéias se baseia inteiramente na certeza de que os seres naturais reagirão a nossos atos de uma maneira determinada, e não indeterminada: sei que um cão é feroz porque conheço o feedback que ele me daria caso eu me aproximasse dele fundado na hipótese de que não o é.

Em todas as circunstâncias, é essencial ter o conhecimento da resposta possível. A total ausência desse conhecimento equivale ao estupor ante um enigma incompreensível. Toda a dificuldade que temos para conhecer Deus reside precisamente na impossibilidade de prever a resposta que Ele daria a nossos atos ou opiniões. A falta de uma resposta controlável leva ao desespero o homem que se dedica à busca do conhecimento de Deus.

Seja no estudo do homem, da natureza ou de Deus, a resposta dá o centro de perspectiva e a medida do quadro de nossa visão das coisas.

Uma das diferenças maiores que assinalam a passagem do mecanicismo clássico à ciência contemporânea é que os homens de ciência abandonaram o projeto de nos dar uma “imagem” do mundo como puro objeto, para lhe substituir a figura movente de uma interação e de uma constituição mútua do observador e da coisa observada. A interação tomada como modelo prestou relevantes serviços nas pesquisas ecológicas e se constituiu finalmente num dos pilares do “novo paradigma” científico.

  1. A História como espetáculo

Por todas essas razões, é muito estranho que em geral a necessidade de levar em conta a reciprocidade tenha sido tão menosprezada pelos estudos históricos e pela visão geral que nossa cultura tem do passado humano. A extensão desse menosprezo pode ser avaliada pela reação de estranheza com que o historiador contemporâneo respondería se lhe perguntássemos o que ele imagina que Aristóteles ou Lao-Tsé ou Napoleão Bonaparte ou Luís XIV pensariam do que ele escreve a respeito deles.

No entanto, bem examinadas as coisas, essa reação é que é estranha. Não é espantoso que os únicos objetos que acreditamos poder conhecer sem nenhum feedback sejam precisamente seres humanos, ou seja, entes capazes de ter uma opinião? Poderia eu orientar-me no mundo antigo sem outro guiamento senão as opiniões de meus contemporâneos, que o conhecem tão de longe quanto eu? Mesmo que o tivessem conhecido de perto, restaria perguntar: em qual tribunal do mundo o depoimento das testemunhas vale alguma coisa, se desprovido de qualquer confronto com o do réu?

Por mais perfeita, científica ou realista que se pretenda a nossa reconstituição do passado, ela não chega jamais senão a fazer dele um espetáculo, algo que vemos e que não nos vê. Os mortos estão para sempre excluídos do diálogo, são os excluídos por excelência. Ele têm olhos mas não vêem, têm ouvidos mas não ouvem. Nós os espiamos pelo buraco da fechadura que denominamos “História”. Eles são os objetos inermes de nossa paixão de ver sem sermos vistos, que em última instância é a paixão de julgar sem ser julgado. Esta paixão recebe em nossos tratados e teses universitárias o nome dignificante de objetividade. É talvez a maior mentira desde o começo do mundo.

  1. A supressão da presença humana

Antigas tradições tiveram sempre consciência de um dever para com os mortos. Ele não tinha nada a ver com as nossas homenagens preguiçosas ou com o nosso ambíguo reconhecimento de uma “importância histórica” que nos dê o direito de mal interpretá-los ao sabor de nossas conveniências. As velhas tradições não tinham a pretensão de saber sobre os mortos mais do que eles mesmos sabiam; menos ainda a de julgá-los do alto de uma plenitude dos tempos, de explicá-los em função de tal ou qual teoria da História, de tal ou qual método sociológico. Para elas, não se tratava jamais de vasculhar pelas costas deles as suas motivações secretas, de reduzi-los a fantoches movidos por forças inconscientes, de fazer deles, em suma, objetos. Elas os respeitavam, escutavam seus conselhos, obedeciam-nos, às vezes, longo tempo após eles terem se retirado deste mundo. Eles eram presenças humanas, eles tinham direito de cidade entre os vivos e faziam escutar suas vozes nas assembléias. Eles eram compreendidos, em suma, tal como se compreendiam a si mesmos. E não é esta, por acaso, a mais elevada compreensão que podemos ter do nosso próximo? A confiança cega que depositamos nos progressos da ciência histórica não estará nos afastando cada vez mais do conhecimento da identidade concreta de nossos antepassados, na medida em que a ampliação exagerada do cenário torna impossível um diálogo com seres reduzidos artificiosamente às dimensões de grãos de areia?

A maneira mesma pela qual procuramos dar às ações e palavras dos tempos passados um “sentido presente”, na ilusão de os “revivificar” generosamente, consiste quase sempre em lhes atribuir intenções muito distantes das de seus protagonistas e autores. Dizemos, por exemplo, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, que “Descartes inaugurou o subjetivismo moderno”. É atribuir a Descartes o que outros fizeram dele sem consultá-lo. O próprio Descartes não se reconheceria nesse retrato, todo feito da inserção de sua pessoa, de sua vida e de seus pensamentos no quadro maior de ciclos históricos que no tempo de sua vida não se tinham cerrado senão pela metade, na melhor das hipóteses, e que talvez lhe fossem perfeitamente estranhos.

As ciências históricas estariam condenadas a não compreender os homens do passado sem fazer de sujeitos humanos simples objetos, sem dissolver sua fisionomia na de seus descendentes quase sempre infiéis?

Não me sinto de maneira alguma qualificado para dar a essa pergunta uma resposta geral. Mas um só exemplo, tomado ao campo especializado que me é mais acessível, isto é, à história da filosofia, pode ilustrar a direção na qual se deve, segundo creio, buscar a resposta.

Quem quer que aborde os estudos sobre o pensamento grego se surpreende de ver os conflitos entre interpretações mutuamente excludentes da filosofia de Platão, ou de Aristóteles, atravessarem os séculos e os milênios sem se aproximar, no mínimo que seja, de uma solução. Ao contrário, são as questões e as dúvidas e os pontos de vista que se multiplicam, tomando com freqüência formas novas e imprevistas. É só do ponto de vista estritamente quantitativo que isso pode ser dito um progresso. Bem feitas as contas, o resultado de todas essas controvérsias não é, na maioria dos casos, senão a fragmentação do objeto de pesquisa numa poeira rodopiante de imagens, cada uma delas assegurando ser “o verdadeiro Platão” ou “o verdadeiro Aristóteles”.

Ao longo desse trajeto, podemos perceber o retorno cíclico de gigantescos ensaios de reconstrução, que periodicamente restauram a unidade do objeto e oferecem aos séculos seguintes um campo unificado onde as pesquisas não são mais uma confrontação cega de hipóteses inconciliáveis, mas uma colaboração organizada e profícua.

No que diz respeito a Aristóteles, esses momentos foram apenas dois, se nos limitarmos ao campo Ocidental: o século XIII e nosso próprio século. No primeiro, a síntese de aristotelismo e cristianismo inaugurada por Sto. Alberto Magno e Sto. Tomás de Aquino abriu o campo a um prodigioso florescimento dos estudos aristotélicos, que se prolongou até Leibniz. No nosso século, a redescoberta de alguns temas aristotélicos no seio da física e da biologia modernas, assim como o retorno do tema das relações entre ética e política, nos dá a promessa de extraordinários aprofundamentos na nossa compreensão da filosofia do Estagirita.

O que há de comum entre essas duas notáveis séries de acontecimentos intelectuais separados por sete séculos são duas coisas:

  1. Nem uma nem a outra foram obras de historiadores.
  2. Em cada uma delas não se tratava de aprofundar o conhecimento da filosofia de Aristóteles, de obter uma descrição mais completa ou uma interpretação mais rigorosa dela, mas de estudar as questões do dia à luz de Aristóteles. Não se tratava de interpretar Aristóteles, mas de se deixar interpretar por ele.

Hoje em dia está bem claro que o resultado e a verdadeira novidade dos esforços de Sto. Tomás não foi o de cristianizar Aristóteles, o que era aliás perfeitamente dispensável uma vez que Tomás se persuadira do acordo essencial entre aristotelismo e cristianismo, mas, bem ao contrário, o de aristotelizar o cristianismo, dando à expressão do dogma a forma de um sistema dedutivo, o que nada na evolução do cristianismo até então deixava prever, e que iria produzir na história subseqüente da Igreja as mais prodigiosas conseqüências.

Quanto ao renascimento aristotélico que presenciamos hoje em dia, não é surpreendente que ele seja em grande parte obra de físicos e de biólogos, que não abordam os textos do mestre em busca de uma visão histórica do pensamento antigo, mas de uma visão aristotélica de sua própria ciência.

Mas, enquanto essas coisas acontecem diante dos nossos olhos, que se passa com Aristóteles no campo dos estudos de história da filosofia propriamente dita? Durante quase todo o século, historiadores se bateram em vão em torno das hipóteses genéticas e das questões de método levantadas em 1928 por Werner Jaeger, sem encontrar um ponto de acordo. Hoje como em 1928, os dois partidos, o “genético” e o “sistemático”, têm combatentes de valor que se desdobram em esforços dialéticos de uma grande elegância que não chegam jamais a persuadir o partido contrário3.

Por que isso acontece? A resposta é de uma evidência quase escandalosa: os historiadores buscam a imagem de um Aristóteles grego, de um Aristóteles do seu tempo, de um Aristóteles descritível e mais ou menos fechado, de um Aristóteles tornado coisa, enquanto os biólogos e os físicos buscam um interlocutor vivente, capaz de vir em sua ajuda, portanto de julgá-los e de julgar o estado de sua ciência.

Invertendo os termos – mas não o sentido – de uma sentença célebre do Profeta árabe, devemos tirar desses fatos uma conclusão inexorável: Só quem pode nos prejudicar pode nos ajudar. Aquele que não nos oferece o menor perigo não pode nos servir senão com fins decorativos.

Peço que não me interpreteis às avessas. Não censuro de maneira alguma os esforços dos historiadores, que estão perfeitamente no seu lugar. O que digo é que a imagem geral que nossa cultura atual faz do passado busca sua inspiração, de maneira quase exclusiva, no modelo dos “historiadores do aristotelismo”, nunca no da “biologia aristotelizada”.

Seja na educação, seja na imprensa, seja nos debates ideológicos, seja na linguagem cotidiana, não nos referimos ao passado da humanidade senão como a algo do qual se deve fugir o mais rápido possível, como a algo que deve ser abandonado e fechado para sempre no seu quadro temporal imutável e mudo como num esquife cronológico, para evitar a todo preço que volte à vida e, de pé diante de nós, nos julgue e nos condene.

Não é uma coincidência que a primeira e talvez a mais célebre reação contra os abusos do historicismo com relação à Grécia tenha sido obra de um pensador que em seguida se tornaria a vítima do germe de historicismo que, sem saber, trazia em si. Refiro-me ao próprio Werner Jaeger. Tentando restaurar a comunicação com o passado da nossa cultura, ele procurou fazer do ideal pedagógico dos gregos um modelo de valor permanente, subtraído aos desgastes do tempo. Mas isso exigia também, no seu entender, que ele fornecesse alguma prova da unidade da cultura Ocidental, e lhe pareceu que podia encontrá-la por intermédio da teoria aristotélica (mas também goetheana) da “forma interna”. O ideal do homem da filosofia de Platão seria, segundo Jaeger, a “forma interna” subjacente a todo o desenvolvimento histórico da nossa cultura. Eis um remédio que logo em seguida se revela mais perigoso do que a doença mesma. Aplicar às culturas o conceito de “forma interna” é dar-lhes uma unidade biológica, substancial, o que teria muito surpreendido ao próprio Aristóteles; é dar ao seu desenvolvimento um modelo similar ao do curso linear do crescimento e envelhecimento dos organismos animais, onde não existe jamais um retorno ao passado. Essa contradição do ideal pedagógico de Jaeger nos mostra até que ponto a absolutização do histórico se tornou um mal profundo da nossa cultura.

  1. A retroprojeção histórica

A partir dessas considerações, busquei formular há alguns anos um método de investigação que me pareceu pertinente chamar retroprojeção histórica. Ele consiste em fazer do presente o objeto do julgamento dos homens do passado, em enfocar portanto o passado não enquanto objeto, mas enquanto agente consciente que nos vê e nos compreende pelo menos tanto quanto nós mesmos o vemos e compreendemos.

Pode-se perguntar, é claro, se meu apelo a uma mudança de atitude do historiador em face do passado não se baseia na hipótese absurda de uma ressurreição ou de um diálogo quimérico com os mortos, como numa sessão de espiritismo.

Mas é evidente que, com uma grande margem de sucesso, e sem emprego de meios divinos ou paranormais, podemos facilmente confrontar nossa interpretação do passado com o julgamento possível que dela teriam feito os viventes desse passado, e fazê-lo por três meios:

  1. O prolongamento lógico das conseqüências de suas opiniões, até que possam ser aplicadas ao caso específico da nossa interpretação delas.
  2. A sondagem das expectativas de futuro implícitas nos atos e palavras dos homens do passado.
  3. A investigação da potência de autoconsciência que podemos desenvolver, agora, a partir das idéias e dos valores dos tempos passados.
  4. Os quatro discursos de Aristóteles

O que me levou mais diretamente a esse empreendimento foi a necessidade de uma nova estratégia para a investigação que eu estava fazendo a propósito de Aristóteles, daquilo que denomino sua “teoria dos quatro discursos”.

No meu livro Aristóteles em Nova Perspectiva, levantei a hipótese de uma unidade teórica implícita que desse sustentação à emergência das quatro ciências aristotélicas do discurso humano. A Poética, a Retórica, a Dialética e Analítica proviriam de uma mesma fonte unitária: uma doutrina geral da credibilidade e da prova, que está subentendida em todo o sistema aristotélico. Essa doutrina, por sua vez, teria uma rigorosa homologia estrutural com a gnoseologia e a psicologia de Aristóteles. Uma vez explicitada, tal doutrina lançaria as bases de toda uma nova filosofia da cultura, portanto de uma nova teoria (e técnica) geral da interdisciplinaridade.

Não cheguei a essas conclusões através de uma “releitura” dos textos do mestre de Estagira, à luz dos conhecimentos e métodos histórico-filológicos atuais. Ao contrário, tentei imaginar o que teriam podido ser as respostas do próprio Aristóteles a certas questões precisas da atualidade, concernentes, no caso, a esse ideal típico dos nossos tempos ao qual denominamos interdisciplinaridade. Como teria Aristóteles enfrentado, digamos, o problema colocado pelo dualismo bachelardiano que afirma a coexistência de um universo das imagens poéticas e de outro das leis racionais? A obra de Scott Buchanan, Poetry and Mathematics, lhe teria parecido mais próxima da verdade ao afirmar a identidade essencial do poético e do matemático? A mim me pareceu que para Aristóteles nem o dualismo bachelardiano nem a fusão operada por Buchanan teriam parecido suficientes. Sua visão não teria podido ser senão a de uma conversão progressiva da Poética em Analítica através da mediação inevitável da Retórica e da Dialética, tal conversão estando na natureza mesma do processo cognitivo tal como concebido por ele, o qual pressupõe a transformação das percepções em esquemas plásticos e destes em esquemas eidéticos, bases dos conceitos. Para ele, a aparente dualidade teria se resolvido numa quaternidade.

Em seguida eu iria ter a alegria inesperada de ver minhas conclusões confirmadas, por métodos muito diversos, nos estudos, ambos igualmente notáveis, de Deborah L. Black e Salim Kemal sobre o “silogismo imaginativo” no aristotelismo árabe4.

Então se tornou para mim evidente a fecundidade do método que eu me havia audaciosamente permitido empregar. A inversão do olhar, que eu propunha, surgia como um utensílio delicado mas poderoso, ao mesmo tempo, para o historiador e o filólogo. Já não se trataria apenas de ver o passado no espelho da história das idéias segundo a imagem que fazíamos delas e de nós mesmos, mas sim também, e sobretudo, de supor por trás desse espelho a existência de um outro olhar, vivente e ativo, capaz de nos dar, caso necessário, uma resposta diferente daquela que decorria necessariamente da idéia que tínhamos de nós e do passado.

Um “passado vivente”, por justa e precisa que pudesse ser sua imagem segundo o historiador mais agudo e escrupuloso, não seria no entanto propriamente vivente na simples leitura que dele fizéssemos; para ser vivente de fato e de direito, ele teria de fazer sua própria leitura de nós – sua leitura de nossas leituras dele. O caráter vivente do passado se encontra menos no realismo de sua imagem, por mais completa e fiel, do que na sua capacidade de ver – e de nos fazer ver – a nossa imagem. Onde os melhores historiadores conseguiram fazer o passado vir a nós, restaria a tarefa de nos levar até ele, de nos submeter ao seu exame. Sabemos muito desse passado. Resta-nos conhecer o que ele sabia de nós, o que ele sabe de nós.

Em suma, se nossa preocupação de objetividade é algo mais que um simples desejo de reificação do passado, não se trata só de saber o que pensamos de Platão ou de Descartes, mas também o que Platão e Descartes teriam pensado de nós. O historiador deve tornar-se objeto, o historiado sujeito. Esse método funda-se no pressuposto de que todo pensamento ou ato humano não tem sentido senão no quadro de um futuro projetado, desejado ou temido, e de que por isto é sempre possível julgar o presente ante um tribunal dos tempos passados, tal como um adulto se põe em julgamento ante o tribunal de seus sonhos de infância e de seus projetos de juventude, e por eles mede quase que infalivelmente seu fracasso ou sucesso. Trata-se, com isso, de corrigir os excessos e as distorções inerentes a uma confrontação onde um dos antagonistas se encontra protegido sob a carapaça de uma confortável invisibilidade. Sem nos submeter a um tal julgamento, sem nos expor aos olhos dos mortos tanto quanto eles estão expostos aos nossos, nossa pretensa objetividade histórica não será jamais senão uma ilusão lisonjeira.

Muito tempo e muito esforço foram despendidos para que a ciência e a cultura modernas se libertassem de um etnocentrismo ingênuo – ou talvez malicioso, mas de malícia ingênua – que tomava por absolutos e incondicionados certos valores que a evolução dos fatos históricos não tinha produzido senão como adaptações do homem ocidental a situações transitórias. No entanto, a neutralidade axiológica a que as ciências humanas se habituaram desde Max Weber, e o relativismo metodológico que se tornou o primeiro mandamento da pesquisa antropológica desde Margaret Mead, produziram, a longo termo, a queda num relativismo doutrinal, paradoxalmente dogmático e absolutista, o qual, fazendo de si mesmo a única visão aceitável do mundo, não resulta senão em restaurar retroativamente o mesmo etnocentrismo, sob pretextos inversos, uma vez que só o Ocidente moderno tem por crença oficial o relativismo e que todas as culturas, quando se revoltam contra ele e defendem a absolutidade de seus valores e de suas verdades, são imediatamente condenadas como “atrasadas”, “radicais”, “fanáticas”, “fundamentalistas”. Não lhes resta, ante a autoridade absoluta do relativismo, senão o protesto absolutamente impotente do dominado ante o dominador.

Por outro lado, o relativismo dos antropólogos e dos sociólogos não tomou sob a proteção de seu comedimento axiológico senão alguma comunidades privilegiadas existentes ainda hoje – os índios, por exemplo –, recusando similar benefício às comunidades extintas, às épocas passadas de nossa própria cultura e às comunidades “fundamentalistas” de nosso próprio tempo – isto é, aos mortos de morte física e aos mortos de morte metafórica, todos condenados juntos a permanecer mudos e inermes ante a voz onipotente e onipresente do relativismo erigido em verdade absoluta. A revogação do etnocentrismo deixou intacto o cronocentrismo, que é o germe do qual ele renasce perpetuamente. E não é por acaso que em geral as comunidades excluídas do diálogo sob pretexto de fundamentalismo são justamente aquelas que conservam o sentido de um diálogo com o passado, por exemplo os muçulmanos, os judeus ortodoxos, os católicos tradicionalistas – pessoas para as quais a revelação corânica, o encontro de Moisés com Yaveh no Monte Sinai, o sacrifício do Calvário não são relíquias de uma época extinta, mas atualidades viventes à luz das quais se julgam os atos do dia. Eis como o relativismo moderno, que professava derrubar os muros do preconceito e da discriminação, termina por se constituir ele mesmo como a fortaleza da exclusão. E se é verdade que cada uma dessas comunidades tem hoje em dia o dever de buscar uma via de conciliação entre seu amor das tradições e seu desejo de ocupar um lugar num mundo pluralista, não o é menos que este mundo tem o dever de fazer de seu relativismo alguma coisa de melhor que um dogmatismo modernista hipócrita e intolerante.

Mas é claro que o único proveito que se pode obter do relativismo, quero dizer, de um relativismo sério que se atenha aos limites da metodologia sem pretensões a uma autoridade dogmática, seria precisamente o de nos libertar de todo provincianismo, tanto espacial quanto temporal, o de alargar nossos horizontes e nos fazer subir a uma visão mais exata do quadro das relações onde nosso olhar se insere como um ator na cena, jamais como um puro espectador. O destino ideal de todo relativismo é o de ser provisório, é o de se transcender, de se transformar em outra coisa, de morrer como dúvida para renascer como certeza mais nuançada e verdadeira. Tão logo o relativismo deixa de ser um simples ponto de partida e se afirma como ponto de chegada, tão logo ele deixa de ser um método e se afirma como doutrina, ele se torna o mais opressivo e tirânico dos dogmatismos, o mais injusto dos juízes, um magistrado invisível e onipresente que julga e condena sob o pretexto de se abster de julgar, e que portanto não é jamais responsabilizado por seus temíveis veredictos5.

  1. Conseqüências éticas e políticas da exclusão dos mortos

A recusa de um diálogo de igual para igual com os viventes de outrora é o resíduo de um historicismo perempto em teoria mas investido de uma força nova enquanto ideologia e pressuposto inconsciente da imagem do mundo dominante neste fim de século. As conquistas políticas e sociais, a constituição de um mercado global com todas as mudanças psíquicas e sociais que o acompanham, tudo isto é de natureza a nos encerrar cada vez mais no presente, a estreitar nossa consciência histórica, a fazer-nos ver o passado humano como um cemitério do irrelevante, portanto a nos colocar, por assim dizer, fora do tempo, isto é, fora de nós mesmos, num estado de delírio hipnótico.

Mas, à medida que o passado se afasta de nós, vai ficando cada vez mais difícil tomá-lo como termo de comparação, e uma época que não pode ser comparada senão consigo mesma está reduzida a um estado de autismo. Eis a origem dos abismos de inconsciência que sulcam o espaço de nossos debates públicos. Para não dar senão um exemplo, que me parece pertinente ao tema deste colóquio:

Nossos contemporâneos, imbuídos de ilusão igualitária, crêem que o mundo caminha para o nivelamento dos direitos, sem se perguntarem se esse objetivo pode ser realizado por outros meios senão a concentração de poder. Essa ilusão torna-os cegos para as realidades mais patentes, entre as quais a da elitização, sem precedentes, dos meios de poder. O imaginário moderno concebe, por exemplo, o senhor feudal como a epítome do poder pessoal discricionário, e não se dá conta de que o senhor feudal estava limitado por toda sorte de laços e compromissos de lealdade mútua com seus servos, e que ademais não tinha outros meios de violência senão uns quantos cavaleiros armados de espada, lança, arco e flecha; homem entre homens, era visto por todos no campo e na aldeia, caminhava ou cavalgava ao lado de seu servo, às vezes trazendo-o na garupa, de volta da taberna onde ambos se haviam embriagado, e podia portanto, em caso de grave ofensa, ser atingido, inerme, nas campinas imensas onde o grito se perde na distância, por uma lâmina vingadora. Pela foice do camponês. Por uma faca de cozinha.

Em comparação com ele, o homem poderoso de hoje está colocado a uma tal distância dos dominados, que sua posição mais se assemelha à de um deus ante os mortais. Em primeiro lugar, os poderosos estão isolados de nós geograficamente: moram em condomínios fechados, cercados de portões eletrônicos, alarmes, guardas armados, matilhas de cães ferozes. Não entramos lá. Em segundo lugar, seu tempo vale dinheiro, mais dinheiro do que nós temos; falar com um deles é uma aventura que demanda a travessia de barreiras burocráticas sem fim, meses de espera e a possibilidade de sermos recebidos por um assessor dotado de desculpas infalíveis. Em terceiro, os ocupantes nominais dos altos cargos nem sempre são os verdadeiros detentores do poder: há fortunas ocultas, potestades ocultas, causas ocultas, e nossos pedidos, nossas imprecações e mesmo nossos tiros arriscam acertar uma fachada inócua, deixando a salvo o verdadeiro destinatário que desconhecemos. Perdemo-nos na trama demasiado complicada das hierarquias sociais modernas, e temos razões para invejar o servo-da-gleba, que ao menos tinha o direito de saber quem mandava nele. Após dois séculos de democracia, igualitarismo, direitos humanos, Estado assistencial, socialismo e progressismo, eis a parte que nos cabe deste latifúndio: os poderosos pairam acima de nós na nuvem áurea de uma inatingibilidade divina.

O servo-da-gleba também tinha o direito de ir e vir, sem passaportes ou vistos e sem ser revistado na alfândega (o primeiro senhor de terras que resolveu taxar a travessia de suas propriedades desencadeou uma rebelião camponesa e pereceu num banho de sangue; o episódio deu tema a uma novela de Heinrich von Kleist: Michel Kolhaas). Tinha ainda o direito de mudar de território, caso lhe desagradasse o seu senhor, e instalar-se nas terras do senhor vizinho, que era obrigado a recebê-lo em troca de uma promessa de lealdade. E, por fim, se caísse na mais negra miséria, tinha as terras da Igreja, onde todos eram livres para plantar e colher, por um direito milenar; a Revolução encampou essas terras e as rateou a preço vil, enriquecendo formidavelmente os burgueses que podiam comprá-las em grande quantidade, e criando a horda dos sem-terra que foram para as cidades formar o proletariado moderno e trabalhar dezesseis horas por dia, sem outra esperança senão a de uma futura revolução socialista (que os reverteria a uma condição similar à de escravos romanos). E, se através de lutas e esforços sobre-humanos o movimento sindicalista obtém finalmente para essa horda a jornada de trabalho de oito horas e a semana de cinco dias, ela ainda está abaixo da condição do camponês medieval, que não trabalhava, em média, senão uns seis meses por ano. Eis como o progresso dos direitos nominais não se acompanha necessariamente de um aumento das possibilidades reais. 6

A distância que separa, nos nossos debates correntes, os conceitos e os fatos, dá às vezes à vida intelectual contemporânea o ar de um diálogo de loucos. A causa mais profunda disto é a absolutização do tempo, que causa a perda da perspectiva histórica e a incapacidade de nos medirmos. Após haver calado os homens de outros tempos, nossa época, prisioneira de sua singularidade absoluta, termina por se tornar invisível e incompreensível a si mesma, uma vez que, como o dizia o aristotelismo medieval, individuum est ineffabile.

Reencontrar o diálogo com o passado é reconquistar o sentido da unidade da espécie humana, e seria loucura pretender reintegrar na humanidade este ou aquele grupo que estejam hoje entre os excluídos e os discriminados, sem antes revogar a discriminação de toda a humanidade que nos precedeu.

O homem que, não podendo falar nem tendo quem fale por ele, não está à altura de por em questão o que dizemos dele, está para nós como os mortos estão para os vivos. Mas tão logo nos damos conta de que esta analogia é algo mais que analogia, que ela traduz a relação real e efetiva que temos com os mortos, é justo perguntar se a exclusão que reduz metaforicamente os excluídos à condição de mortos não se funda numa prévia exclusão, literal e efetiva, dos mortos da assembléia dos falantes. Se não fôssemos surdos às vozes dos mortos, dificilmente o seríamos às vozes daqueles que reduzimos a uma condição similar à dos mortos. Se o afastamento físico total e definitivo não fosse suficiente para sufocar o grito dos homens, também não o seriam as barreiras de raça, de sexo, de crença, de nação.

Que importam no fim das contas, a discriminação e a exclusão de tal ou qual grupo, se o cronocentrismo de nossa cultura exclui e discrimina quase toda a humanidade? Não seria talvez excessivo perguntar se as discriminações parciais que este colóquio discute não são porventura expressões menores e localizadas de uma geral discriminação do homem mudo pelo homem falante. Dos ausentes pelos presentes. Dos mortos pelos vivos.

O primado do momento que passa sobre toda a história humana não é somente um erro de perspectiva, uma falta de realismo; ele é também o primado do eu sobre o outro, dos interesses imediatos sobre as exigências da razão e do amor ao próximo. De um próximo que um artifício cronocêntrico torna distante. Se em nossa vida pessoal o imediatismo está intimamente associado ao egoísmo e à repressão da consciência moral, porque não o estaria também no plano maior da história e dos milênios? Com tanto mais razão, as exclusões e discriminações não sendo senão outros nomes de uma espécie de egoísmo social, não é razoável pretender mover-lhes combate e ao mesmo tempo preservar ao abrigo de todo ataque esse egoísmo temporal que é o cronocentrismo.

NOTAS:

  1. “Lesplus exclus des exclus: Le Silence des morts comme modèle des vivants defendus de parler”, conferência no simpósio internacional Forms and Dynamics of Exclusion, UNESCO, Paris, 22-26 de junho de 1997. Tradução de Carla Vital.
  2. Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, 23a. ed., São Paulo, Saraiva, 1996, p. 51.
  3. Enrico Berti, Aristóteles no Século XX, trad. Dion Davi Macedo, São Paulo, Loyola, 1997.
  4. Deborah Black, “Le ‘syllogisme imaginatif’ dans la philosophie arabe: contribution médiévale à l’étude philosophique de la métaphore”, em M. A. Sinaceur (org.), Penser avec Aristote, Toulouse, Ères-UNESCO, 1991; Salim Kemal, “Aristotle’s Poetics in Avicenna’s Commentary”, Oxford Studies in Ancient Philosophy, VIII: 1990, 173-210.
  5. “O Antropólogo Antropófago: Considerações sobre o Relativismo”, conferência pronunciada na Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, a ser publicada proximamente pela Faculdade da Cidade Editora.
  6. Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. edição, V, IX, §32: pp. 267-269. São Paulo, É Realizações, 2000. ISBN 85-88062-01-1. (Nota original, referente à 1a. edição: O Jardim das Aflições, IV, IX, §32: pp. 350-351.)

 

Recordar é viver, ou: “Quem sofreu sob o teu jugo te conhece”

Olavo de Carvalho

12 de junho de 1997

Singela homenagem deste website a Luiz Pinguelli Rosa e ao secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares

Cinco anos atrás, ambos já demonstravam ter todos os requisitos corporativos e subintelectuais necessários para chegar aonde chegaram. Olhem para o passado deles e terão uma imagem do futuro deste país.

I. O pajé

Este artigo, publicado no Jornal da Tarde de São Paulo, 12 de junho de 1997, foi depois reproduzido em A Longa Marcha da Vaca Para o Brejo: O Imbecil Coletivo II. — O. de C., 31/12/02.

Antigamente ” afirma-se ” os homens eram muito ignorantes e, na treva, deixavam-se guiar por algum pajé, que supunham detentor do conhecimento e operador de milagres. Ele talvez operasse alguns, mas o maior de todos era o de fazê-los acreditar nisso. E de tal credibilidade desfrutava, que mesmo o chefe guerreiro ” o cacique ” se submetia às suas ordens, por entender que a macumba de um discurso complicado é mais temível arma do que flechas e tacapes.

Transcorridos não sei quantos séculos, o Prof. Luiz Pinguelli Rosa ressurge do fundo das eras, exigindo do Exército a obediência milenar que os guerreiros devem à casta sapiencial, encarnada, para os fins da presente controvérsia, nele mesmo.

O pivô do debate é o reator atômico que os homens de armas pretendem construir com seus conhecimentos próprios, passando por cima dos sumos entendedores da matéria, que segundo o prof. Pinguelli Rosa se encontram todos nos órgãos acadêmicos, como a Coppe ” entidade da qual não sai um tostão sem o aval roseano, ou pinguélico.

O projeto, denuncia Pinguelli, é “altamente suspeito”. Suspeito de que? Em apoio do professor, esclarece Cláudio Camargo, da Comissão Nacional de Energia Nuclear, que o reator de farda, soi disant concebido com o propósito de produzir radio-isótopos para consumo industrial, não tem capacidade para tanto ” deixando subentendido que por trás da finalidade alegada deve haver outras, ocultas, de natureza propriamente militar e infalivelmente sinistra. O jornal do Rio que divulga a denúncia coloca-a, de maneira eloqüente, no verso da página concedida ao Imperador do Japão, que discursa sobre o morticínio de Hiroxima e Nagasaki. Com esse envoltório gráfico, a tese do prof. Rosa prescinde de provas, pois se apóia num dos mais persuasivos lugares-comuns da retórica visual contemporânea: a ciência contra a violência, o saber contra o poder. Já vimos isso mil vezes no cinema: o audacioso acadêmico pacifista que desafia o establishment militar.

Como o prof. Pinguelli não ofereceu nenhum argumento científico contra o projeto militar, vejo-me, com alívio, dispensado de enunciar algum a favor, coisa que aliás não saberia fazer. Digo apenas que a persuasividade do lugar-comum a que ele recorre se apóia num equívoco: a suposição de que o progresso do saber é mérito da casta acadêmica, enquanto os militares só se ocupam de truculências retrógradas. Na verdade, os militares muitas vezes põem a ciência para andar e fazem coisas úteis, enquanto a casta acadêmica despende imensas verbas públicas com pesquisas bizantinas que não raro só servem para o deleite de seus caprichos, para a satisfação de sua vaidade ou para alimentar o discurso mistificador em cujo fascínio se assenta o seu poder. Quase todos os confortos com que a tecnologia nos ajuda na vida diária ” do leite condensado aos computadores, do celular à Internet ” foram criações da pesquisa militar. Enquanto isso, os universitários se ocupavam precipuamente de criar e fomentar as ideologias que produzem guerras. Da Revolução Francesa até hoje ” com a notória exceção do expansionismo bismarckiano “, não se fez uma só guerra por exigência de militares, mas todas para realizar alguma doutrina acadêmica, fosse de Karl Ritter ou de Karl Marx, de Georges Sorel ou de Vilfredo Pareto, de Carl Schmitt ou de Régis Débray. Os militares sempre dizem que não dá, mas acabam se rendendo, como os caciques da Idade da Pedra, à mágica das palavras. Isso não quer dizer que, nos tempos modernos, as atribuições das castas tenham se invertido. Ao contrário: é da natureza das coisas que os homens de idéias inventem os pretextos de matar, obrigando os homens de armas a inventar os meios de sobreviver ” os quais acabam, por inescapável conseqüência, melhorando a vida dos sobreviventes. O estereótipo cinematográfico que vem em socorro do Prof. Pinguelli é falso, como é falso que o Prof. Pinguelli ou seu fiel escudeiro estejam em posição insuspeita para lançar suspeitas sobre o Exército brasileiro. Afinal, sobre a comunidade acadêmica que eles representa ainda paira, silenciada mas irrespondida, a denúncia formulada por Wanderley Guilherme dos Santos: “O dispêndio governamental com o ensino superior constitui vastíssimo desperdício, a universidade brasileira é em grande medida um embuste e é enorme a variedade de parasitas que a habitam” (prefácio ao livro de Edmundo Campos Coelho, A Sinecura Acadêmica, Rio, Iuperj, 1987). Sendo o Prof. Pinguelli um dos grão-operadores da torneira estatal, é de se supor que numa imaginária CPI da safadeza acadêmica ele seria bastante atormentado por algum Roberto Requião ou equivalente. Isto só não vai acontecer porque as CPIs existem apenas para lisonjear a opinião pública, cujos construtores ” jornalistas, artistas, etc. ” são membros menores da casta sapiente e protegem a fama de seus maiores com devotado esprit de corps, como se viu na singular diagramação do jornal carioca.

Já do ponto de vista intelectual, acredita-se, o Prof. Pinguelli é insuspeitíssimo para falar sobre reatores. Ao menor sinal de dúvida, ele fará divulgar a lista ponderável de seus trabalhos sobre o assunto ” que eu, em pessoa, nunca vi em nenhuma revista científica internacional, talvez porque não as leia, mas que devem estar lá, ah, se devem! Ademais, ele tem em seu currículo o fato de ter sido presidente da SBPC ” aquela entidade que nomeia um semi-analfabeto para avaliar um trabalho científico e, denunciada, faz desaparecer o acusado sob o manto do anonimato. Portanto, guerreiros, acautelai-vos: o pajé tem poderes.

II. Resposta a um Cordovil adivinhão

Infelizmente, não encontrei entre os meus escritos
nenhum que tivesse o dr. Luiz Eduardo Soares
como personagem principal. Mas neste, que saiu no Jornal do Brasil
em 14 de dezembro de 1997, ele aparece como destacado coadjuvante
do jornalista Cláudio Cordovil
na perpetração de um dos mais notáveis feitos de vigarice intelectual
já registrados nos anais do Imbecil Coletivo II.

Salvo engano, sou autor de doze livros publicados e profiro, na Faculdade da Cidade, um curso aberto ao público e bem documentado em centenas de apostilas. Tenho o direito de julgar que meu pensamento não é secreto nem de difícil acesso.

Não obstante, o Sr. Cláudio Cordovil prefere adivinhá-lo à distância, com base em frases soltas captadas de dois alunos que freqüentam meu curso há não mais de quatro meses e de cujas idéias não sou, malgrado o que diz o Sr. Cordovil, nem pai nem tutor.

Será o Sr. Cordovil um rapaz tímido, que ama e odeia de longe? Ou será simplesmente um tremendo adivinhão que se faz de repórter? Ou será ainda, na pior das hipóteses, um fanático esquerdista disposto a mentir até à exaustão, até à náusea, até ao desespero, tudo pela causa, como sempre mentiram os seus antepassados ideológicos, capazes de ocultar durante um século, com a ajuda de Cordovis, uma centena de milhões de mortos?

Qualquer que seja o caso, o Sr. Cordovil criou, pelos seus métodos telepáticos, uma visão de minhas idéias bem diferente daquela que poderia obter se consentisse em averiguá-las de corpo presente, seja ante os livros, seja nas aulas.

Vale a pena examinar o caso? Vale, mas somente por um dever de consideração para com o próprio JB, do qual tenho sido colaborador e no qual saíram vários artigos depois reunidos em O Imbecil Coletivo. Pois, da matéria do Sr. Cordovil, o jornal emerge trazendo na testa a acusação de dar espaço a odiosas pregações extremistas. Desde logo, deve-se portanto perguntar ao Sr. Cordovil: o senhor acha mesmo que, se meus escritos tivessem o conteúdo que o senhor diz que têm, a direção do JB já não o teria percebido? Acha que ela aguardaria, para vetar a publicação de vulgares propagandas fascistas, o sinal de alerta agora disparado pelo tirocínio infalível de Cláudio Cordovil? O senhor acha mesmo que é o homem mais inteligente do JB?

Das duas uma: ou a direção do JB não compreendeu os meus artigos, ou não os compreendeu o Sr. Cláudio Cordovil.

Para avaliar a compreensão do Sr. Cláudio Cordovil, basta medir, numa reportagem destinada a conjeturar os “pressupostos ideológicos” do jornal O Indivíduo, o nível dos conhecimentos que ele possui sobre o assunto.

1. Ele qualifica de “ultraconservador” o filósofo José Ortega y Gasset ” deputado eleito por uma coligação de esquerda sob o patrocínio de García Lorca e um dos primeiros exilados do governo franquista.

2. Qualifica a metafísica de “ferramenta filosófica que não permite a reflexão sobre a ação, o movimento, a política e, logo, sobre a liberdade”. Só há um lugar do mundo onde o termo “metafísica” tem essa acepção: a vulgata marxista (por exemplo, o grotesco Manual de Marxismo-Leninismo de Otto V. Kuusinen, Academia de Ciências da URSS, várias edições). Nota-se que o jornalista desconhece outras acepções, caso contrário não ignoraria que ação, movimento e liberdade são temas essenciais de toda metafísica, por exemplo em Maurice Blondel (ação), em Aristóteles (movimento) ou em Schelling (liberdade). Quanto à afirmação de que a metafísica impede a reflexão sobre a política, é realmente difícil avaliar a profundidade da ignorância requerida para proferi-la. Qualquer manual de história da filosofia informará aos interessados que a reflexão política no Ocidente começa com Platão e Aristóteles ” isto é, com os dois fundadores da metafísica ocidental. Se o Sr. Cordovil não insistisse em gritar que ignora essas coisas, eu teria alguma dificuldade em acreditar.

3. Ele identifica escolástica e conservadorismo, ignorando que a famosa e aliás desastrada “abertura para a esquerda” do Concílio Vaticano II foi inteiramente obra de escolásticos, entre os quais Maritain. Desconhecendo todos os escolásticos, ele ignora também que os há de direita e de esquerda, que o confronto entre conservadores e progressistas, na Igreja, é na origem e em essência uma quizília de escolásticos.

4. Ele inclui entre os ultraconservadores o filósofo Éric Weil, que não terei a generosidade de lhe dizer quem é.

5. Quando um dos meninos entrevistados, Álvaro de Carvalho, afirma que a função do intelectual não é transformar o mundo, mas compreendê-lo, o Sr. Cordovil, fazendo pose de superior, diz que o entrevistado “desconhece os rudimentos do conceito moderno de intelectual”. Qual o conceito moderno a que se refere? Naturalmente, o conceito gramsciano do intelectual ativista ” o único que o Sr. Cordovil conhece, o único que é moeda corrente nos ambientes provincianos onde ele fez sua cabeça, e que, com a presunção típica do ignorante, ele imagina ser consenso mundial. O conceito defendido por Álvaro é o de Julien Benda, coisa que qualquer homem letrado reconheceria à primeira vista. Mas Benda é mais um autor do qual o Sr. Cordovil nunca ouviu falar, e que vem sendo bastante estudado nos últimos anos por autores que o Sr. Cordovil também desconhece.

Com essas qualificações, imagina-se a compreensão profunda que o Sr. Cordovil poderia obter de meu pensamento num simples olhar de relance, ou, melhor dizendo, de esguelha, aliás dirigido não a mim, mas a um espelho miniaturizado e não muito fiel.

Partindo dessa compreensão profunda, o Sr. Cordovil informa ao público que o conteúdo de meus cursos se compõe de “uma mistura de Sto. Tomás de Aquino e darwinismo social”. Por uma simples questão de polidez para com os leitores, devo, de minha parte, informar:

1 ” Sto. Tomás, em meus livros, só é citado uma vez, em Aristóteles em Nova Perspectiva, como autor de certas indicações, corretas mas parciais, concernentes à relação entre poética e lógica em Aristóteles. Nas minhas aula, nenhum texto ou doutrina de Sto. Tomás foi estudado, exceto de passagem, entre outras dezenas de autores, no curso História Essencial da Filosofia. Em contrapartida, aprofundamo-nos por meses ou anos em textos de Husserl, Leibniz e Lavelle, que o Sr. Cordovil não cita e que, aliás, ignora como a todos os demais. Não há vergonha nenhuma em ser tomista, mas também não há em não sê-lo.

2 ” A única menção ao darwinismo social em minhas obras está em duas páginas de A Nova Era e a Revolução Cultural, e é sumariamente contra. Mas o Sr. Cordovil não leu.

3 ” Do mesmo modo ele não leu o restante de minhas obras, motivo pelo qual pode estar persuadido de que “desferem ataques raivosos a teóricos que abordam a justiça social”. Mas não precisaria lê-las para notar a tremenda falsidade do que diz. Bastaria que lesse o Jornal do Brasil do dia 6 de janeiro de 1996, onde, no caderno Idéias, os grosseiros “ataques raivosos” são assim qualificados: “Se a obra de O. de C. se distingue da prosa empolada e vazia dos philosophes de plantão, é sobretudo por seu texto humorado, pela busca permanente de clareza e honestidade intelectual.” Caso o Sr. Cordovil se recuse a ler jornais que o aceitem como empregado, poderá em vez disso consultar o Jornal da Tarde de São Paulo, do dia 7 de janeiro de 1995, onde o crítico Luís Carlos Lisboa diz que, nas obras como nos cursos do hidrófobo autor de A Nova Era “predominam o equilíbrio e a coerência”.

Na verdade, não me lembro de ter discutido, exceto de passagem num artigo publicado aliás no JB, nenhuma teoria da “justiça social”. Não sei de que teóricos o Sr. Cordovil está falando, a não ser que ” valha-me Deus! “, qualquer esquerdista, ao dizer qualquer coisa sobre o que quer que seja, sobre os faraós do Egito ou sobre o consumo do Santo Daime, sendo em seguida criticado por Olavo de Carvalho, se torne ipso facto um teórico da justiça social.

No que diz respeito à “veneração fundamentalista” que eu inspiraria a meus alunos, é juízo de valor que vale quanto vale quem o emite. Não sei dizer quanto vale o Sr. Cordovil, pois não domino a técnica do cálculo infinitesimal.

Quanto aos intelectuais estatais consultados, é significativo que jamais tenham tido a coragem de discutir comigo, mas, vendo à solta dois aluninhos meus com apenas quatro meses de experiência, logo tenham esfregado as mãos, imaginando que maravilhosas vitórias intelectuais não poderiam obter contra adversários mais comproporcionados às suas forças. Quanto mais com a ajuda do Sr. Cordovil!

Não é de estranhar que, excitados como lobos diante de carne tenra, tenham se precipitado e, na ânsia de puxar da cartola toda sorte de insultos ideológicos, acabassem usando, de atropelo, carimbos mutuamente contraditórios. De fato, acusam os meninos de individualistas e de anti-individualistas, e os rotulam, ora de apóstolos da ordem estatal rígida, ora de ultraliberais e anarquistas adeptos da redução do poder de Estado.

Acostumados a lidar com categorias ideológicas padronizadas, sentiram-se desorientados ante a aparente indefinição do jornalzinho e, não conseguindo catalogá-lo, projetaram em cima dele toda a confusão mental histérica de suas pobres cabeças.

Não vou analisar em detalhe o que dizem. Destaco apenas o seguinte:

1 ” Um tal Sr. Birman, que se imagina psicanalista e talvez o seja, pois no mundo de hoje tudo é possível, põe à mostra, como numa sessão de psicoterapia, sua compulsão de ver no jornalzinho de umas centenas de exemplares a ponta de um iceberg, de imaginar por trás dele um grupo militante de extrema-direita, um vasto movimento organizado, internacional, temível como a peste e Hitler. Com isto ele denuncia apenas o estado patético de sua imaginação que, possuída pelo medo, infla até às nuvens, suando de pavor e de ódio impotente, a força dos três meninos que o apavoram. E depois, levando a farsa ao extremo limite do auto-engano, ainda inventa um jeito de posar de herói: Birman, o denunciador do complô direitista internacional, Birman, o escavador de exércitos secretos. É de fato muito lisonjeiro para esse poltrão atacar meninos e chegar em casa garganteando batalhas contra potências misteriosas. Se eu estrangulasse um bebê de três anos, inventaria uma história dessas: diria que por trás dele havia um baita Schwarzenegger que, por ser essencial, era invisível aos olhos. Esse Sr. Birman é um rapaz muito doente.

2 ” O Sr. Luís Eduardo Soares, cientista político ” o que não é lá muita recomendação, pois no mais das vezes designa apenas um político frustrado que teve de se contentar com um palanque acadêmico ” , assegura-nos que O Indivíduo segue o modelo um “anarquismo de direita”, bebido em Locke (liberal clássico) através de Robert Nozick (neoliberal), e ao mesmo tempo se inspira em Metternich e Joseph de Maistre (apóstolos da autoridade estatal), e René Guénon, (que o Sr. Soares cita sem saber quem é, imaginando-o talvez algum teórico da Action Française, mas que, informo aos leitores, foi muçulmano mais anti-ocidental que Louis Farrakhan). Santa misericórdia! Haverá em O Indivíduo tamanha riqueza de matizes ideológicos, provenientes sobretudo de autores que os rapazes nunca leram e que só poderiam tê-los influenciado por meios esotéricos desconhecidos? Ou o Sr. Soares é que na sua fúria catalogante gasta de uma vez todos os seus carimbos, não reparando que projeta em O Indivíduo apenas os fantasmas terroríficos de seu próprio subconsciente? Como diria Cláudio Moura Castro, o Sr. Soares padece do mal brasileiro de não ler o que um autor escreveu, mas o que ele acha que o autor quis dizer no fundo, muito no fundo ” tão no fundo que até o autor o ignora por completo. Ademais, que é que sabe o Sr. Soares das leituras dos meninos, exceto o que possa lhe ter informado o incrível ” no sentido etimológico ” Sr. Cordovil?

4 ” O Sr. Soares assinala em O Indivíduo “ecos de um conservadorismo anti-individualista que sonha com a comunidade”, enquanto o Sr. Birman diagnostica, no mesmo jornal, um individualismo radical que “recusa da noção de comunidade”. Sugiro aos editores a realização de um debate no próximo número.

Cada um desses senhores, evidentemente, se atrapalha, se embrulha, se mela todo no afã de dizer às pressas alguma coisa bem feia contra O Indivíduo. O leitor que julgue, que diga qual a hipótese mais provável, mais sensata, menos doente: o jornalzinho é misteriosamente movido pelas influências ocultas de autores que os meninos nunca leram, ou, ao contrário, os Srs. Soares e Birman é que, atônitos diante de um objeto difícil de catalogar, projetam nele a esmo reminiscências de leituras soltas? A mixórdia ideológica que enxergam em O Indivíduo é rebuscada demais, artificiosa demais, “intelectual” demais: é uma fantasia de acadêmicos, projetada sobre meninos que jamais poderiam encarná-la.

Isso não quer dizer que os Srs. Soares e Birman tenham lido muito. Quer dizer apenas que manejam mal, como em geral o fazem os mini-intelectuais do seu calibre, as fontes de que dispõem. Em vez de usá-las como pontos de referência, catalogam-nas em boazinhas e malvadas, e usam-nas como matéria-prima em sua fábrica de carimbos.

Quanto a Hilton Japiassu, professor de filosofia do IFICS, o que deve alta recomendação em Nova Iguaçu, ele também lê no jornalzinho, como seu colega Soares, várias coisas que não estão lá ” inclusive uma apologia do “conformar-se, consumir, ganhar dinheiro” que, se lá eu a encontrasse, muito teria me escandalizado. Mas não me escandaliza que o Sr. Japiassu veja o que não existe, ou jure que viu o que não viu. Intelectual estatal é para isso mesmo.

Mas o Sr. Japiassu vai mais longe no exercício de sua alta missão deseducativa. Esse autor de um livro de epistemologia recai na velha confusão entre origem e valor da consciência, confusão tão primária, tão boba, já tantas vezes desfeita desde que Leibniz respondeu a Locke no século XVIII, que deveria dar a um professor de filosofia, em caso de cometê-la, demissão por justa causa. Do fato de que a consciência só se forma em sociedade, ele deduz que, uma vez formada, ela não pode se opor ao consenso da sociedade. A consciência individual a que se refere O Indivíduo não é obviamente a do “menino-lobo” de que fala o Sr. Japiassu, isolado e privado de educação, mas, ao contrário, a do spoudaios, do homem maduro capaz de se opor, mesmo sozinho, ao consenso da massa, como o fizeram Sócrates e Jesus, coisa que aliás o Sr. Japiassu, que por mal dos pecados é também padre, não tem o direito de ignorar. Os meninos de O Indivíduo, na sua tenra juventude, já dão a amostra, ingênua e canhestra o quanto se queira, mas corajosa, do que poderão ser na maturidade. Eles já são, na sua bravura solitária, O Inimigo do Povo, de Ibsen. Mas, na cabeça de um professor de subserviência, tal perfeição humana deve ser inimaginável. Para o Pe. Japiassu só há dois caminhos: ou do unanimista que diz amém à massa e segue Barrabás, ou o do menino-lobo que não segue nada porque de nada sabe. Tertium non datur. Que coisa abominável, um padre que ignora a solidão de Santa Teresa em seu templo interior, “sola con El Solo”, a “noche oscura” do solitário São João da Cruz, ou mesmo a simples solidão do crente sincero que faz seu exame de consciência diante do “Deus que sonda os rins e corações”! Que temível sinal dos tempos, um sacerdote de Barrabás a pregar no templo de Cristo!

Mas não falemos só de coisas tristes. Divertido é o show de ignorância presunçosa que se exibe no manifesto do Coletivo Cultural da PUC-Rio, uma entidade à qual sou muito reconhecido pela propaganda gratuita que sua denominação faz de meu livro O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras. Essa notável produção literária coletiva, que é por si uma amostra do estado de coisas no ensino universitário nacional, alerta gravemente a população contra “as conseqüências da chamada teoria do darwinismo social, que legitimou a escravidão”. Dito isto, passo à aula de História:

1 ” A aplicação do darwinismo à história social foi invenção de Herbert Spencer, nos seus First Principles, de 1862. O darwinismo social como ideologia política apareceu em 1892, com a conferência de Thomas H. Huxley, “Evolução e ética”. Nasceu e tornou-se ideologia dominante no Império Britânico, onde a luta aberta contra a escravidão era política oficial desde muitas décadas, adotada em escala mundial pela Coroa, em parte por autêntico humanitarismo, em parte para debilitar o colonialismo luso-hispânico.

2 ” Nos Estados Unidos o darwinismo social também não foi de nenhuma ajuda para os escravistas do Sul, pela circunstância de ter vindo à luz 28 anos depois do término da guerra civil que eliminara a escravidão.

3 ” No Brasil do século passado houve muitos darwinistas e spencerianos. Mas foram todos, sem exceção, abolicionistas ” a teoria de Huxley chegou depois da Abolição.

4 ” Depois da data da conferência de Huxley, só existiu escravidão nos países islâmicos, em cuja cultura não há o menor traço de darwinismo social ou coisa similar, sendo a idéia evolucionista, em geral, repudiada como materialismo ocidental.

Eu poderia recomendar aos signatários alguns livros a respeito, mas não vou fazê-lo: seus professores são pagos para isso, embora achem mais lícito gastar dinheiro público para lisonjear estudantes em vez de educá-los. Em contrapartida, vou perguntar: será justo e decente que o órgão incumbido de encarnar a personalidade cultural de uma universidade saia fazendo manifestos sobre coisas das quais ignora tudo? Será lícito e ético usurpar o nome de “cultura” para adornar com ele as inépcias fulgurantes de politiqueiros estudantis?

Tudo o que se pode alegar em favor dessas criaturas é que também são vítimas: vítimas da injeção de ignorância que, paga por suas famílias de parceria com o Estado, recebem diariamente sob o rotulo de “ensino”. São, é verdade, vítimas culpadas: colaboram alegremente com o estelionato cultural que as emburrece. Mas seu castigo é certo: se continuarem assim, todos se tornarão futuros Japiassus, Birmans, Soares e ” misericórdia! ” Cordovis.

Para encerrar, noto que o Sr. Cordovil saiu da redação imbuído do propósito de retratar a “identidade ideológica” dos editores de O Indivíduo. Mas por que três meninos que decidem fazer um jornal de estudantes têm de possuir obrigatoriamente uma identidade ideológica pronta, padronizada, facilmente reconhecível no catálogo de dois itens que constitui todo o universo mental do Sr. Cordovil? Por que não podem ter opiniões sobre este ou aquele fato em particular, sem reduzi-las tão precocemente a um sistema já catalogado?

No entanto, o Sr. Cordovil já saiu da redação com seu carimbo, com seu ferro em brasa atiçado para marcar os meninos com o estigma do preconceito, para fazer deles, mediante a marca infame, objetos do ódio universal. E fez isso com frieza, com premeditação, mesmo sabendo que uma de suas vítimas era menor de idade.

Tanto foi essa a sua decisão, tanto foi esse o seu ato, que, ouvindo citar autores dos quais nunca ouvira falar, e confessando que pouco entendera das declarações, nem por isto achou melhor adiar sua sentença. Citassem quem citassem, dissessem o que dissessem, os entrevistados já estavam de antemão marcados com o nome do execrável: “extrema-direita”.

Que é, exatamente, extrema-direita? É fascismo? É nazismo? É conservadorismo? É hinduísmo? É liberalismo? Para o Sr. Cordovil, é tudo isso ao mesmo tempo, é qualquer coisa de que a esquerda não goste. Ele joga sobre os meninos todos os rótulos, sem perceber que se desdiz no ato, que revela com isso apenas sua intenção de insultar a todo preço, mesmo ao preço da mais flagrante contradição.

Os meninos dizem coisas ingênuas, algumas das quais eu não endossaria de maneira alguma, mas que jamais poderiam, com honestidade, ser interpretadas no sentido maligno que lhes dá o Sr. Cordovil. Eles fazem a apologia da sociedade hindu, e ele conclui que são perseguidores de povos inferiores. Eles fazem a apologia da liberdade, e ele conclui que são sacerdotes da autoridade estatal. Eles falam dos direitos e garantias individuais da Constituição, e ele conclui que são perigosos inimigos do Estado de Direito.

E o mais edificante de tudo é que a acusação inicialmente brandida por acusadores vociferantes ” racismo! ” já não vem aqui explícita, mas velada, como que envergonhada de sua própria mentira, embrulhada na capa de um substitutivo genial ” “extrema-direita” ” improvisado para continuar ferindo a quem já não se pode acusar na justiça.

Tudo isso é tão absurdo, tão perverso, tão obviamente farsesco, que não dá vontade de responder nada. Dá vontade de guardar silêncio. Tentar falar com o Sr. Cordovil é coisa vã como falar com um jumento, um tatu, uma porta, um muro. Ele não ouve, não quer ouvir, talvez nem mesmo possa ouvir. Não falo, portanto, para ele.

Devo então falar à opinião pública? Mas como? Por que canais hei de atingi-la, se ela é deformada em massa pelo mais poderoso noticiário de TV, que não dá a seus três difamados nenhum direito de resposta?

Posso reagir no varejo, aqui e ali, dispondo às vezes de um espaço de três laudas para refutar centenas de mentiras. E quanto aos milhões de telespectadores que já foram ludibriados, quem lhes dirá a verdade? Quem lhes contará que a novelinha anti-racista é montada por farsantes que, vociferando na mídia, não têm sequer a hombridade de denunciar na justiça o crime que, no fundo, sabem inexistente? Quem revelará a esses milhões que a própria reitoria da PUC já vacila nas acusações, que o reitor Jesus Hortal já declarou que os meninos “não fizeram nada de tão grave”? Quem mostrará aos brasileiros que, enquanto a acusação falsa é estampada em oito colunas, o desmentido, já discreto em si, vem escondido e diluído no meio de uma reportagem, para não dar na vista, para não por a nu a maldade e a mentira de tantos e tantos caluniadores?

De outro lado, por que tanta mobilização, tantas assembléias, tantos cochichos, todo esse zunzum dos diabos por causa de três meninos que deram uma opinião? Por que essa santa aliança de professores, jornalistas, burocratas, líderes estudantis, militantes, intelectuais, atores e cantores ” todos contra três, apenas três estudantes, por trás dos quais não há sequer a proteção de uma família, de um círculo de amigos, de um clube de futebol de botão? Por que tanta força de ataque reunida para dar combate a tão modesto adversário? Por que tanta violência, tanta crueldade travestida de mansuetude, por que tantas calúnias transmitidas em massa na TV sem direito de resposta? Por que, enfim, essa grotesca assembléia de luminares do nada, reunidos pelo Sr. Cordovil para pontificar sobre o que ignoram, todos sem a menor curiosidade de investigar antes de opinar, todos sem o menor cuidado de pesar suas palavras antes de dispará-las, como bombas, sobre três vidas que mal começam? Por que esse cinismo de atribuir “intenções de violência” logo às três vítimas inermes da difamação política mais injusta e sádica que já se viu na história nacional? Isso já não diz tudo da psicologia dos nossos intelectuais de esquerda? Isso já não mostra até que ponto essa gente é covarde, prepotente, raivosa, disposta a esmagar sob o peso da gritaria universal a mínima voz divergente? Isso já não mostra o tipo de sociedade que querem implantar neste país?

Apêndice

Resposta a três Cordovis

O sr. Cláudio Cordovil, que iniciou esta contenda, pretende dar nela a última palavra, falsa como a primeira. Odeio voltar a este assunto, mas, desde o início de minha carreira literária, desgostoso com o ambiente de presunção hipócrita que me rodeava, prometi a mim mesmo jamais me fazer de orgulhoso, jamais me abrigar num silêncio falsamente aristocrático, jamais recusar uma resposta nem mesmo ao mais Cordovil dos difamadores.

Tomo portanto um engove e anoto:

1. O sr. Cordovil diz que a minha iniciativa de lhe responder “não foi lícita”, porque meu nome fora citado apenas três vezes ” notem bem: apenas três vezes ” na sua matéria. Infelizmente, a licitude do exercício de um direito constitucional não é matéria na qual o JB costume consultar o saber jurídico do sr. Cordovil. Quando redigir a próxima Constituição Brasileira, o sr. Cordovil estatuirá que qualquer calúnia espalhada por ele só dará direito de resposta depois de proferida quatro vezes. Pela Constituição atual, basta a primeira.

2. O sr. Cordovil informa que guardou para si as mais bombásticas revelações contidas na fita gravada com os meninos, divulgando só as mais inócuas, a título de “aperitivo” (sic). Quando li estas palavras, fiquei atônito, pois nunca, em trinta e dois anos de jornalismo, vira um repórter gabar-se de esconder a notícia, e, pior ainda, fazê-lo nas páginas mesmas do jornal ao qual sonegara as informações. Só vim a entender o paradoxo quando, linhas adiante, li que o sr. Cordovil receitava a leitura de um livro sobre a tal “retórica da intimidação”. Não li esse livro, mas compreendi instantaneamente por que o sr. Cordovil o recomenda com tanta ênfase: é não apenas o seu livro de cabeceira, mas o seu manual de redação. Só que no meu tempo esse tipo de coisa não se chamava retórica. Chamava-se blefe .

3. O sr. Cordovil diz que sou um escritor raivoso. Ele é mau leitor e mau psicólogo. Mau leitor: confunde a raiva que um escritor sente com a raiva que ele desperta. A diferença é elucidada pela estilística, hoje quase uma ciência exata: o estilo raivoso é duro, crispado, cheio de afetações, sem naturalidade ou senso de humor. É o estilo do sr. Cordovil. Já Rivarol e Voltaire, Chesterton e Shaw, muitas vezes foram lidos entre espasmos de ódio precisamente porque escreviam rindo.

Mau psicólogo: Diagnostica projetando-se no diagnosticado, em vez de observá-lo. Raivoso, eu? Bobagem. Sádico, talvez. Pois embora procure ater-me às mais elevadas intenções morais, não posso, como não o pôde jamais qualquer escritor humorístico, negar o fundo de prazer maligno que sentimos ao espremer piolhos intelectuais.

4. Ele diz que se recusa a me exibir suas credenciais intelectuais. Recusa-se, mas exibe-as já na mesma frase, ao colocar o pronome oblíquo com a destreza daquele menino da piada que, para mostrar o incremento de seu QI, meteu o sorvete na testa. Erro típico de quem escreve com raiva.

5. Ele diz que não pretende polemizar comigo. É verdade. Prefere fazê-lo com garotos de 17 anos. Nada mais justo. Vejamos, portanto, como ele se sai contra esse que publica uma cartinha ao lado da sua resposta. Chama-se Sérgio de Biasi, não é meu aluno, só o vi por algumas horas, não tenho idéia do que ele pensa ou deixa de pensar e suponho até que não goste muito de mim. Pois bem: esse menino, que aparece na matéria do sr. Cordovil como defensor de tais ou quais opiniões, informa que nunca escreveu em O Indivíduo sobre os assuntos mencionados e que jamais foi entrevistado pelo Sr. Cordovil. Knock-out aos três segundos do primeiro round. Sugiro ao Sr. Cordovil que teste suas forças contra uma velhinha com Alzheimer.

6. O sr. Cordovil acusa-me de mobilizar contra ele uma “máquina de guerra”. A única máquina de guerra de que disponho é este meu velho e cansado cérebro, o cérebro de um homem pobre e sem recursos, que nada pode, materialmente, contra a formidável frente única que reúne a reitoria da PUC, o movimento Cambralha, o Diretório Central dos Estudantes, o “Jornal Nacional”, a revista Veja-Rio, o sr. Cordovil e enfim toda a intelligentzia esquerdista, representada no caso pelos srs. Birman, Japiassu e Soares ” e bem representada, aliás, pois dificilmente os atributos da mediocridade, na gama variada que vai da presunção à tolice, passando pelo histrionismo e pela falsa moral, estiveram tão bem dosados, por igual, em três… direi indivíduos? Não. Três exemplares, três cópias, três reimpressões fiéis de um só discurso, que é aliás o mesmo do sr. Cordovil e de todo o seu pugilo de bravos.

No meu tempo, mais de três contra um era covardia. Hoje, juntam-se cem contra um e alegam lutar valentemente contra uma “máquina de guerra”. É lisonjeiro, mas cansativo. Sinto-me um pittbull bicado por cem galinhas. Nessas criaturas, o senso das proporções parece funcionar às avessas: em vez de regular o medo pela gravidade relativa do perigo, avaliam o tamanho do adversário pela intensidade do medo que lhes inspira.

7. O sr. Cordovil alardeia coragem, mas dá inequívocas demonstrações de covardia. A mais bonita é esta: ele procura amenizar ex post facto suas palavras, dizendo que no seu texto apareci apenas como “pai intelectual” dos meninos, coisa inocente já informada pelo JB uma semana antes. Mas o que o sr. Cordovil afirmou em sua matéria não foi isso: foi que oriento um grupo de extrema-direita infiltrado na PUC. Grupo de extrema direita quer dizer exatamente: grupo militante que prega a destruição do Estado de Direito e o uso de meios violentos para instaurar uma ditadura. Não é bem a mesma coisa. A diferença é a que vai da simples fofoca ao crime de calúnia.

8. O sr. Cordovil diz que tem uma fita gravada à disposição do público. Pois bem. Tenho setecentas, além de umas trezentas apostilas e mais doze livros publicados ” tudo isso à disposição do sr. Cordovil ou de quem quer que seja, para verificar se algum dia preguei algo que se parecesse mesmo de longe a uma ação política qualquer, extremista ou moderada, direitista ou esquerdista. Posso ser acusado, isto sim, de pregar o absenteísmo político, a vida interior, o desprezo ao esquema amigo-inimigo que se tornou, para todos os intelectuais ativistas, a chave suprema do saber humano.

É curioso que o Sr. Cordovil pretenda denunciar minhas idéias e ações políticas sem ter examinado nada, absolutamente nada desse material, sem ter me entrevistado, sem ter assistido a uma única de minhas aulas, sem ter investigado o que quer que fosse acerca de meus ditos e feitos. O qualificativo mais brando que encontro para isso é: irresponsabilidade, leviandade, falta completa de ética jornalística.

Vamos agora aos Srs. Soares e Birman. Tal como o sr. Cordovil, eles alegam que sua conversa não era comigo, que eu não tinha nada que lhes responder. Mas como é possível que, de uma matéria onde se fala quase nada a meu respeito, eu saia carimbado com o rótulo de mandante de um crime contra a segurança do Estado?

Deveria eu agüentar isso calado, repetindo estas consoladoras palavras: “Não é comigo”?

A mim me parece, ao contrário, uma sublime cara-de-pau da parte de todos eles emitirem com tanta leviandade uma acusação tão porca e ainda achar que responder-lhes é falta de educação. Desejariam que eu me deixasse polidamente carimbar, caluniar e condenar? Desejariam que eu deixasse minha vida resumir-se no verso de Rimbaud: Par délicatesse j’ai perdu ma vie?

Quanto cinismo em três cabeças tão miúdas! Vejam só o ar santarrão com que essas pessoas, assumindo a defesa dos cem agressores que cobriram de tapas e cuspidas os editores de O Indivíduo, pregam o “respeito” e o “diálogo”, como se não acabássemos de ter aí mesmo a amostra do tipo de diálogo respeitoso que desejam.

O sr. Soares, então, chega ao cúmulo da desfaçatez ao declarar-me carente de credenciais “para o debate acadêmico”. Que coisa mais linda! Tapas, cuspidas, censura, falsas denúncias de um crime contra o Estado ” e o doutorzinho chama a isto “debate acadêmico”! É precisamente para este tipo de debate ” e somente para isso ” que uma universidade que tem no corpo docente um Soares ou um Birman pode credenciar. Se eu tivesse tais credenciais, haveria de jogá-las na privada o quanto antes, para que meus filhos não as vissem.

A polêmica deve ser civilizada, pontifica o sr. Soares. A polêmica exige respeito, diz o sr. Birman. É preciso manter a dignidade do tom, perora o sr. Cordovil. Quem não percebe que a única dignidade que essa gente conhece é um tom, um ar, uma afetação exterior?

Haverá algum respeito, dignidade, vida intelectual civilizada em acusar publicamente um inocente de conspirar para a destruição das instituições democráticas, para a instalação de uma ditadura reacionária, sobretudo quando quem faz essa acusação jamais viu de perto o acusado, jamais leu um de seus livros e nada sabe de suas atividades particulares ou públicas? Respeito vem de re-spicere, que quer dizer olhar duas vezes antes de falar. O “respeito” que essa gente alardeia é apenas a fala mansa dos Iagos, dos intrigantes, dos caluniadores sorrateiros.

Da minha parte, não posso fingir respeito por esse tipo de comportamento, pois seria desrespeitar-me a mim próprio.

Ademais, de que adianta argumentar polidamente, ou mesmo aos berros, com quem não sabe sequer o que é um argumento? O Sr. Birman, por exemplo, diz não ter encontrado, em minha carta, nenhum argumento, “só impropérios”. Já eu, na carta do Sr. Birman, encontrei vários argumentos, no sentido birmaniano do termo. Ei-los, por ordem de entrada e citadas ipsis litteris: “vociferações raivosas”, “bobagens e tolices”, “sopa de fel”, “bestiário de mau gosto”, “maneira feroz”, “babando na gravata”, “medo da sua saliva”, “violência verbal”, “adjetivos ofensivos”. Com isto chegamos à metade da carta; daí por diante o Sr. Birman nada mais diz a meu respeito. Por esse mostruário da sua dialética, aliás de uma originalidade estilística sem par, entendemos por que ele não viu na minha resposta nenhum argumento. Temos também uma amostra da sua cultura lingüística: ele qualifica a minha resposta de “bestiário” (livro sobre animais) querendo dizer “bestialógico” (coleção de besteiras). Mas não posso assegurar que haja nisso uma prova de incultura: talvez tenha sido um “ato falho”, expressão do juízo secreto que, no fundo, o sr. Birman faz de si mesmo, e que não cabe a mim confirmar ou impugnar, já que não sou nem me imagino psicanalista.

Mas, já que o sr. Birman padece da natural dificuldade de encontrar o que desconhece, facilitarei aqui as coisas para ele, reproduzindo, mais detalhado e visível, um dos argumentos que ele encontraria na minha carta se soubesse o que é argumento:

1. O Sr. Birman diz que os meninos constituem um grupo de extrema direita que é apenas a ponta visível de uma imensa organização subterrânea.

2. O Sr. Birman desconhece (ele próprio o declara) tudo da atividade dos meninos e das minhas, sendo portanto sua assertiva mera conjetura.

3. Ele não a apresenta como conjetura, mas como certeza inquestionável e auto-evidente.

4. Logo, o Sr. Birman acredita piamente que sua conjeturação é prova apodíctica da verdade do conjeturado.

5. Isso não é muito certo, logicamente, nem muito normal, psicologicamente.

6. Logo, há algo de errado com o pensamento do Sr. Birman.

Que raio de outra coisa é isso, senão um argumento? Identificá-lo é fácil, quando não se é o sr. Birman. Difícil é respondê-lo, quando se é precisamente isso e a natureza cruel não nos deixa ser nada mais. Talvez por essa razão o sr. Birman tenha preferido mudar de assunto, disfarçando após o fato consumado a gravidade de suas acusações conjeturais. Assim, onde ele jurava enxergar com certeza absoluta a ação concreta de “um grupo de extrema direita”, procurando com isto alarmar o público ante a ameaça de conspirações para a derrubada do Estado de Direito, agora ele diz apenas sentir um vago “cheiro de conservadorismo”. O que pretendia ser visão tornou-se cheiro, a pretensa evidência mostrou-se nada mais que suspeita difusa e rala. O sr. Birman também se pavoneia de altas coragens, mas como explicar esse súbito acesso de prudência no ousado denunciador de conspirações? Prudência, aliás, que espertamente muda o tom sem se desmentir de maneira explícita. Prudência que antes mereceria o nome de malícia, por jogar habilmente com uma linguagem escorregadia, que diz sem dizer e se desdiz sem desdizer. Bilinguis maledictus.

Quanto ao sr. Soares, comete a safadeza intelectual de praxe: ao comparar as idéias dos meninos da PUC com certas correntes de pensamento, não distingue entre a intenção consciente do texto e as semelhanças fortuitas que seus detalhes soltos apresentem com tais ou quais ideologias. Depois disso, fica fácil alegar que estas ideologias se contradizem umas às outras e acusar os meninos de “confusão”, aliás sem perceber que esta mesma acusação se incompatibiliza com a de extremismo, que pressupõe a coerência do compromisso com uma opção ideológica unilinear.

Por exemplo, ele vê no pensamento dos meninos elementos de individualismo e de anti-individualismo, e os acusa de contradição. Nem de longe lhe ocorre que qualquer estudante no pleno gozo de seus neurônios e não fanatizado por um compromisso sectário pode ” e deve ” admitir parcelas de verdade em doutrinas opostas, consideradas em planos distintos, e buscar, mediante um exercício do pensamento pessoal, uma solução dialética da oposição, que não cabe a um professor lhes dar pronta. É precisamente colocando os alunos diante de oposições desse tipo que se desenvolve neles o pensamento crítico, vacinando-os ao mesmo tempo contra todo simplismo fanático. Já o Sr. Soares só conhece um tipo de ensino: a doutrinação em bloco segundo uma ideologia compactamente coerente.

Mas a coerência em bloco de uma ideologia é com freqüência apenas a unidade exterior de uma vontade política forçada, cheia, por dentro, de toda sorte de paralogismos e contra-sensos. Coerência ideológica é muitas vezes sinônimo de incoerência lógica. O próprio sr. Soares nos dá um exemplo disso, quando, após afirmar que “o pensamento dos meninos é articulado sistematicamente pela filosofia ultraliberal”, assinala neles “o entusiasmo por René Guénon e pela tradição conservadora mística… que considera o individualismo liberal o paroxismo da degradação”. Ora, se os meninos admitem algo de verdade na crítica de Guénon ao liberalismo, é óbvio que seu pensamento não se “articula sistematicamente” segundo a filosofia ultraliberal, mas apenas aceita criticamente alguns aspectos dela, devidamente relativizados pelo confronto com as objeções de Guénon e de outros pensadores (entre os quais alguns esquerdistas, como Max Horkheimer, bastante valorizado no meu curso). Isso é tão simples, tão banal no ensino de filosofia, que somente um microcéfalo intoxicado pelo preconceito pode não enxergá-lo, ou um rematado farsante fingir que não o enxerga.

O gênero de intoxicação que entope os canais neuronais do sr. Soares é no entanto bastante óbvio: ele é um daqueles fanáticos que, jamais tendo examinado sem preconceito as doutrinas que lhe repugnam, toma as suas próprias como pressupostos auto-evidentes e as usa como premissas de “demonstrações” que, na sua cabecinha, devem parecer muito conclusivas. Mas se o sr. Soares acha que todo ataque à affirmative action é racismo, cabe a ele prová-lo, e não tomar essa premissa arbitrária como princípio inquestionável para, com base nela, “provar” mediante escandalosa petitio principii que os meninos são racistas porque atacaram a affirmative action. Já expliquei, em artigos de imprensa, que a affirmative action tem esse nome precisamente porque é uma teoria que não se demonstra mediante argumentos, mas mediante a ação voltada à destruição política de seus adversários: para provar que há muitos racistas, acusa-se de racista quem conteste a teoria e logo o mundo fica povoado de racistas. Isso é fraude intelectual da mais descarada.

Com o mesmo simplismo autêntico ou fingido, o sr. Soares toma como coisa certa e provada a afirmação de que “toda celebração do pensamento puro tem sido celebração da raça branca” ” desastrado chute fora, pois o que de mais significativo sabemos do “pensamento puro” nos veio de hindus e mouros como Shankaracharya e Ibn-Arabi, isto para não mencionar aquele cúmulo de purismo abstracionista que são os trigramas do I Ching. Mas basear-se nessa falsa premissa para condenar os meninos como racistas já deixa de ser simplismo: é jogo difamatório, porque eles nem sequer falaram o que quer que fosse acerca de “pensamento puro”, e este conceito entra no debate como autêntica contribuição do próprio Sr. Soares.

O sr. Soares voa longe do objeto, no seu empenho de ler por atribuição de intenções e adivinhar por associação de imagens. É um pobre cérebro que imagina pensar, quando apenas expressa, com mal disfarçado rancor contra o que não entende, sua tosca confusão interior.

Quase todos os alunos que vêm ao meu curso, vindo das escolas onde lecionam Soares e Birmans, chegam nesse estado e têm de ser levados para a UTI intelectual. Para que cheguem a ter uma experiência efetiva do que é “pensar”, é preciso exercitá-los muito e muito no confronto dos contrários em vários planos e em acepções diversas, método dialético tradicional que tanto escandaliza o simplório Sr. Soares e cuja prática, de fato, não lhe recomendo, por estar manifestamente acima das suas forças.

Também não lhe recomendo que continue tentando jogar contra os meninos a comunidade gay, mediante o expediente barato de marcá-los com o rótulo de “homofóbicos”. O máximo representante dessa comunidade no Brasil, o antropólogo Luiz Mott, homem honesto, acaba de enviar a O Indivíduo um e-mail no qual afirma que, embora discordando das opiniões ali expostas acerca do homossexualismo, não viu nelas nada de ofensivo. Ou pretenderá o Sr. Soares posar de mais gayzista que os gays?

Para encerrar, digo que há muitas maneiras e tons de apresentar uma argumentação. Cobrando de mim o tom sereno e polido de um debate acadêmico, os srs. Soares, Birman e tutti quanti só fazem lisonjear-se a si mesmos, fingindo seriedade de cientistas para dar ares de alta cultura ao que é, na verdade, um ataque grosseiro, sórdido e calunioso a pessoas inocentes. É aliás também por mera auto-lisonja que fingem imaginar que os chamei, a eles ou a qualquer de seus companheiros de militância, para uma polêmica de idéias. Posso tê-lo feito outrora, quando se tratava de discutir questões de cultura brasileira. Aqui e agora, o caso não é discutir idéias: trata-se de denunciar um crime de calúnia, vulgar e estúpido como todos os crimes.

Polemizar em tom acadêmico com esse tipo de gente seria entrar no jogo do fingimento, como os parentes do Henrique IV de Pirandello, que, para não irritar o louco, admitem fazer de conta que são cortesãos de Henrique IV e terminam por acreditar que são mesmo.

Nem vejo sentido em prosseguir a denúncia no plano de uma disputa meramente verbal. As palavras dessa gente contra mim e contra os meninos da PUC não são apenas palavras: são atos. Atos respondem-se com atos. E atos criminosos respondem-se com medidas judiciais, não com bate-bocas na imprensa. A polêmica jornalística está, portanto, encerrada: já encaminhei o caso à justiça, que é a arena certa onde lidar com esse tipo de criatura.

***

Esta resposta foi enviada ao Jornal do Brasil em 19 de dezembro de 1997. Não foi publicada.

Por que, não sei. O que sei é que a imprensa brasileira se acostumou a abrir e fechar polêmicas a seu belprazer, aproveitando-se das partes em litígio como de títeres a serviço de objetivos mercadológicos e políticos que são dela, não deles. O jornal convida um sujeito a falar mal de outro; provoca uma discussão, atiça-a até um certo ponto e, quando imagina que “está cansando o leitor”, interrompe bruscamente a conversa, pouco importando o que os debatedores achem que ainda têm a dizer.

Mas o direito de resposta foi estatuído pela Constituição para servir à defesa dos cidadãos, não ao marketing jornalístico. Se, por uma feliz coincidência, publicar uma determinada resposta é bom para vender jornal, então ótimo: o jornal cumpre a lei e ganha dinheiro. Viva o capitalismo! Mas se o jornal condiciona a publicação ao lucro, se ele seleciona as respostas conforme lhe ofereçam vantagem e não em obediência incondicional à Constituição Federal, então usa em benefício próprio os direitos de um outro, sem o consentimento do titular ” e isto é mais que imoralidade: é um desrespeito à norma constitucional. Admito que, no ambiente de turva inconsciência que reina hoje na nossa imprensa, os jornalistas podem fazer isso sem dar-se conta da gravidade do seu procedimento. Mas pode o criminoso alegar sua insensibilidade como atenuante do crime?

No caso desta polêmica em especial, o escândalo é mais grave ainda, porque foi desrespeitada a paridade de acusação e defesa, que está implícita na lógica mesma do direito de resposta: um ataque, uma defesa; dois ataques, duas defesas. O segundo a falar deve ser também o último: o contrário seria privilegiar abusivamente a acusação.

Ora, o JB publicou primeiro a acusação; depois, a resposta; depois, três tréplicas. Depois, silêncio. Além de me forçar a responder simultaneamente a quatro atacantes, ainda lhes deu o confortável privilégio da última palavra. Feito isso, decretou que a polêmica estava “cansando o leitor”. Como se o direito de resposta fosse condicionado ao prazer da leitura. Como se a honra do cidadão, para ser respeitada, tivesse de ser também atraente, interessante e, para o jornal, lucrativa.

Até o momento em que eu e José Mário Pereira fechávamos a edição deste livro, minha resposta aos novos ataques de Cordovil, Soares e Birman não tinha sido publicada. Não é impossível que o seja nas próximas semanas, quando o livro estiver rodando e for tarde para alterar estes parágrafos. Caso isto venha a acontecer, as considerações acima continuarão valendo como advertência à imprensa brasileira em geral e poderão ser úteis a muitos leitores cujos direitos tenham sido explorados da maneira descrita.

OLAVO DE CARVALHO

Ser e conhecer

Seminário de Filosofia, Rio de Janeiro, 11 de junho de 1997

Gravação transcrita por Fernando Manso; editada por Alessandra Bonrruquer.

§ 1. A fenomenologia em geral

O ceticismo nasce da fragmentação da mente. É a postura do covarde ou do preguiçoso que, por não querer fazer o esforço de saber, tenta provar que é impossível saber. Com esse objetivo, a mente cética produz impasses de difícil refutação, não tanto pelos esquemas argumentativos que os suportam, mas principalmente pelo estado de ânimo de desconfiança que os produz. A desconfiança suscita objeções e mais objeções, e quando todas foram respondidas, sua insegurança não se aplaca e ela continua a apresentar novas objeções, sem se dar conta de que são apenas variações das já respondidas. A discussão com o cético não tem fim — não por causa da força de seus argumentos, que em si são fracos, mas por causa do medo abissal que os produz, e que não pode ser curado mediante argumentos.

No entanto, enfrentar as objeções céticas é o começo do aprendizado filosófico. A capacidade humana de formular dúvidas é inesgotável, assim como a capacidade de aprofundar, enriquecer e tirar conseqüências do que sabe. O caminho da dúvida, entretanto, é mais fácil, porque mecânico e automático: basta deixar a mente pensar sozinha que a dúvida se autopropaga como se fosse um vírus – daí o prestígio barato do ceticismo e do relativismo. Já a certeza e a evidência não se autopropagam, não podem ser obtidas a contragosto. Exigem atenção. Exigem a convergência de várias faculdades intelectuais em torno de um objeto, o que requer esforço.

A fenomenologia de Husserl é uma tentativa de dar fundamentos apodíticos ao conhecimento. A fenomenologia não se interessa por argumentos, mas sim pela descrição precisa de fenômenos, do que aparece, do que acontece ante a consciência cognoscitiva. Por exemplo, como descrever este gato? Como é que você, ao vê-lo, sabe que é um gato? O que se passa precisamente neste ato de conhecimento? O que é que está subentendido nesse reconhecimento, pelo qual podemos dar a um fenômeno particular o nome de uma essência geral? O que se passa precisamente quando se formula um juízo, quando se diz que isto é aquilo, que a “é” b? A fenomenologia só se ocupa das essências, entendidas como o objeto do ato de conhecimento.

A fenomenologia trata da descrição de fenômenos, entendidos como atos de conhecimento, no sentido puramente cognitivo e não psicológico. As descrições que se utilizam de recursos psicológicos deixam de fora o objeto do conhecimento, ou o admitem como pressuposto. A imensa complicação das exposições fenomenológicas vem da dificuldade de se descrever os fenômenos em si mesmos, tais como aparecem, independentemente de explicações psicológicas do ato de conhecimento.

Por exemplo, o que é uma dúvida? A resposta provavelmente descreverá o estado psicológico de dúvida, e não aquilo que faz com que a dúvida seja dúvida em vez de certeza, probabilidade ou conjetura. Na verdade, qualquer explicação de um estado psicológico pressupõe saber do que está se falando, isto é, pressupõe o conhecimento das essências do que se fala. A explicação psicológica é, neste sentido, segunda ou derivada, e não primeira e fundamental como a descrição fenomenológica.

Que é um juízo de identidade? Que é quantidade? ou melhor, quando você pensa quantidade, “em quê” está pensando? Não “como” está pensando, mas “em quê” está pensando? Qual o conteúdo intencional a que se refere o pensamento? Onde está a “redondidade” do redondo? Que é círculo? Há uma definição geométrica de círculo, mas esta definição é apenas uma convenção que nomeia um conceito intuitivo prévio. Qual é o conteúdo deste conceito intuitivo de circularidade no qual se baseia a definição geométrica?

Dito de outra forma, a fenomenologia se ocupa da pergunta: “o que é?”, quid est?, independentemente de saber se o objeto que se investiga “existe” ou “não existe”. Essa pergunta é decisiva em todo o processo filosófico. A experiência da fenomenologia mostra que muitas vezes se discute por séculos um assunto sem se perguntar “o que é”.

Cabe assinalar que a filosofia começou com essa pergunta. Era a pergunta de Sócrates. Por exemplo, o que é a justiça? Sócrates criou o que entendemos hoje por definição. Passados no entanto 2500 anos, a fenomenologia verifica que a definição no sentido socrático-lógico não é suficiente, pois se baseia num conteúdo intuitivo prévio, que precisa ser descrito tal como se apresenta, antes que se possa formalizar o esquema verbal que o define.

A definição no sentido socrático – gênero próximo e diferença específica – delimita uma intuição prévia, marcando seus limites no quadro geral da classificação dos gêneros e espécies, mas não descreve plenamente o conteúdo da intuição pelo qual o conhecemos.

Platão e Aristóteles aperfeiçoam a definição, mas apenas no sentido técnico. Platão introduz o método da divisão. Aristóteles transforma a conceituação na demonstração, na prova. No entanto, esses métodos não resolvem a questão do conteúdo intuitivo prévio. Qual é o conteúdo intuitivo no qual se baseou a definição, a divisão, a conceituação, etc.? Ou, mais simplesmente: de que estamos falando?

Sob certo aspecto, a fenomenologia dá um passo “para trás”, ao exigir muito mais rigor e riqueza nos conteúdos, no sentido de preencher os conceitos com conteúdos intuitivos. A crítica que se pode fazer da fenomenologia é que ela se apresenta como uma coleção de monografias de conceitos isolados. Por exemplo, Max Scheler trata da inveja, do rancor, etc. Mas não chega a constituir uma filosofia, no sentido sistemático. Por outro lado, acostumando-se a descrever meticulosamente o que está implícito nos atos cognitivos, a discussão filosófica tem um aprofundamento extraordinário, como pode se depreender, por exemplo, da Fenomenologia da Consciência de Tempo Imanente de Husserl.

A maior parte das pessoas ignora isso e não imagina a importância dessa riqueza descritiva. Imaginam que descrição é assunto da arte e se enganam, pois a arte só produz análogos. A arte apenas refere, alude. Por exemplo, em toda a literatura universal não há nenhuma descrição de um estado psicológico humano, mas apenas referências analógicas a tal ou qual estado, não em si mesmo, mas tal como foi vivenciado por tal ou qual personagem em particular, sem levar em conta que o mesmo estado, exatamente o mesmo, poderia se apresentar num outro personagem sob vestes analógicas diferentes, sem deixar de ser “o mesmo”. O ciúme de Otelo não é igual, artisticamente, ao do Paulo Honório em S. Bernardo, de Graciliano Ramos. Qual é, então, o esquema invariante que permite reconhecermos, por trás das diferenças entre suas respectivas simbolizações literárias, o mesmo estado?

Colocado de outra forma, a fenomenologia se ocupa em abrir o ato intuitivo e mostrar o que há dentro dele, ou, de outra forma ainda, em descrever o conteúdo da intuição e não apenas se referir simbolicamente a ele. Para tanto, a fenomenologia usa a linguagem de forma diferente das formas quotidianas, científicas, literárias ou filosóficas. Mas é um uso que pretende desdobrar as implicações lógico-racionais de um conteúdo que, no entanto, na prática é captado de maneira intuitiva e imediata. Ou seja, é a tomada de consciência do que se passa no ato cognitivo. Neste sentido, a fenomenologia é uma auto-reflexão e um autoconhecimento. É o autoconhecimento da consciência, enquanto capacidade cognitiva. É saber o que é saber, saber o que se passa, efetivamente, no ato de intuição. Que isso tem um tremendo poder curativo é algo que os psiquiatras e terapeutas perceberam há tempos, daí a quantidade de terapias baseadas na fenomenologia.

O tema tem outros desdobramentos. Por exemplo, o que se passa precisamente na percepção sensível? O que significa “ver”? Agora, estou vendo um isqueiro. Mas no mesmo ato há também o reconhecimento da forma de uma essência, e portanto não se trata de um ato puramente visual. Como é que no mesmo ato se vê e se reconhece, sem ser necessário pensar para isso? Em que consiste este re-conhecimento, que está mais ou menos subentendido em todo ato de conhecimento?

Husserl diz que a atitude do fenomenólogo é diferente da atitude natural, a qual acumula atos cognitivos sem se ocupar com os mesmos nem com a consciência, mas apenas com os conceitos dos objetos intuídos. Esse retorno à consciênciamarca a atitude fenomenológica. Por exemplo, o que se passa no reconhecimento do sentido de uma palavra? E quando são palavras de outro idioma? E quando são apenas aglomerados de sons que não são palavras? Como é que as reconhecemos de forma imediata? Raramente paramos para examinar estes atos e descrever “o que” nos apresentam. Uma coisa é realizá-los, outra conhecê-los.

Husserl diz que a fenomenologia descreve o modo de apresentação dos objetos. Por exemplo, um hipopótamo e uma crise econômica se apresentam a mim de formas diferentes. Em que consiste precisamente esta diferença? Mais ainda, a crise econômica é um mero ente de razão ( com fundamentum in re), mas não do tipo de um dragão alado; logo, também há uma diferença entre os modos de apresentação destes dois objetos. Colecionando todos os modos de apresentação que existem para o ser humano, chegaremos aos vários tipos de seres ( ou essências ) que podem se apresentar, e temos então uma ontologia geral subdividida em ontologias regionais. A ontologia tem de ser bem ampla e bem amarrada em todos os seus pontos para poder abarcar todas as chaves que se intercalam entre um hipopótamo e uma crise econômica.

§ 2. A coisa-em-si kantiana

Quando não se têm os modos de apresentação bem classificados, os modos podem ser trocados acidentalmente. Imagine alguém falar do hipopótamo como se fosse uma realidade do mesmo tipo de uma crise econômica. É de uma confusão dessa ordem que vai surgir a famosa coisa-em-si kantiana, que é a coisa “independente do conhecimento que temos dela”. É a coisa “fora” do sujeito, de todo sujeito cognoscente possível. Para a fenomenologia isto é uma bobagem: supor que a verdade de uma coisa apresentada é uma outra coisa que jamais pode se apresentar. Ora, se ela jamais pode se apresentar ela não existe para ninguém, não afeta ninguém e não age. E como pode ser que essa parte que não afeta nem age seja mais real que a parte que afeta e age? Está aí uma forte objeção à coisa-em-si kantiana, baseada na consciência do modo de apresentação.

Segundo Kant, a coisa-em-si é o segredo que está dentro da coisa, que é a coisa na sua consistência interna, independentemente do nosso conhecimento. Ou seja, é a coisa na sua pura objetividade, desligada de qualquer subjetividade. Ora, essa noção é inconsistente e autocontraditória. Coisa é aquilo que tem a capacidade de ser fenômeno; se não a tem, não pode se mostrar de maneira alguma para ninguém, e não pode, portanto, transmitir nenhuma informação de si a qualquer outro ser. É uma coisa absolutamente irrelacionada e irrelacionável. Quantos seres poderiam atender a esse requisito? Só o nada. Logo, a noção de coisa-em-si corresponde exatamente ao nada. Nenhum ser atende ao requisito da coisa-em-si, porque sendo ela o totalmente irrelacionado, só pode existir como suposição negativa. Tão logo se lhe atribua alguma característica real, a coisa deixa de ser a coisa-em-si e passa a ser algo para algum outro. Mas esta capacidade de existir para o outro é a existência mesma. O que existe é aquilo que tem alguma relação com outras coisas que existem e o totalmente irrelacionado só pode não existir, ou existir como conceito vazio, ou seja, nada. Não faz sentido, portanto, dizer que a coisa-em-si é mais real do que o fenômeno.

Cabe observar que quando Kant enuncia o conceito da coisa-em-si, ele parece fazer algum sentido porque expressa uma impressão subjetiva que temos, de que conhecer efetivamente as coisas seria conhecê-las “por dentro”. Agora, supor que o gato por dentro seja mais gato que o gato por fora não faz sentido. Virar o gato pelo avesso esclareceria alguma coisa sobre ele?

A fenomenologia se pauta pelo respeito ao modo de apresentação das coisas. Em vez de suposições, as coisas são tomadas como estão. O que interessa não é o “gato-em-si”, mas a presença do gato, aquilo que aparece e que se faz reconhecer como gato. Esta é a essência do gato. Esse é o em-si do gato, que consiste em aparecer como gato para quem seja capaz de percebê-lo como gato.

Uma pedra, por exemplo, não reconheceria o gato. Mas faz parte da essência do gato não ter a capacidade de notificar a pedra de que é um gato. Assim como faz parte da essência da pedra não ter a capacidade de reconhecer um gato. Ou seja, os modos da apresentação coincidem com os modos de ser das coisas. O que significa que não existe nada cujo modo de apresentação seja falso, ou que seja apenas uma aparência com relação à essência, porque o modo de apresentação é a própria essência. Não sei se Husserl, ao dizer isso, tinha idéia de que fazia eco a Plotino, mas Plotino diz taxativamente que a essência de um ente, em vez de ser um misterioso x oculto no fundo dela, é o seu aspecto mais evidente, porque é a forma manifestada.

Kant diz que só percebemos através das formas a priori, que são independentes e prévias à experiência, como por exemplo as formas a priori da sensibilidade: espaço e tempo. Ou seja, tudo o que se percebe se dá dentro do quadro das formas a priori do sujeito. Kant pára por aí. Mas e o objeto, para se mostrar? Não precisa deste ou de algum outro quadro? Hartmann, fenomenologista, diz que existem também as formas a priori da apresentação do objeto.

Imagine se não fosse assim. Então o tempo e o lugar em que eu vejo esta pedra seriam formas subjetivas minhas. Fora isso existiria uma “pedra-em-si” que não está em tempo algum e em lugar algum, e que necessita do espaço e do tempo apenas para se mostrar a mim, e não para existir. Bella roba! Uma pedra intemporal e inespacial que se temporaliza e espacializa só para mim. Ora, então não é pedra! Porque a verdadeira pedra é aquela que está no tempo e no espaço, para que eu a perceba no tempo e no espaço. Portanto o em-si da pedra é exatamente essa capacidade de se apresentar a mim desta maneira. Logo, o que chamei de fenômeno é, na verdade, a essência da pedra, ou seja, a coisa aparentemente mais superficial é a mais profunda. A capacidade máxima da pedra é de apresentar-se como pedra a quem seja capaz de apreendê-la como pedra.

Mas Kant diz que do mundo exterior só recebemos informações caóticas, que ordenamos nas formas do espaço e tempo. Ele está supondo, então, que podemos receber dados de uma pedra caótica para depois lhe dar uma unidade projetiva no espaço e no tempo. Mais uma vez, enganou-se. Não é o sujeito que ordena. A pedra se apresenta na forma de pedra, que inclui sua própria ordenação no tempo e no espaço. Não fosse assim, não seria uma pedra. A “pedra-em-si”, sem as formas de apresentação, é inconcebível como pedra. Pode ser uma idéia pura platônica, um pensamento de Deus, mas não uma pedra. A pedra tem um em-si que independe do sujeito, que é exatamente a sua capacidade de apresentar-se como pedra, capacidade que o sujeito não poderia dar a ela. Depende do sujeito a capacidade de percebê-la, mas a visibilidade da pedra está nela, e não no sujeito. Se estivesse no sujeito, ele é que seria pedra, com visibilidade de pedra. Um sujeito cego não anula esta visibilidade: é importante que não se confundam as formas a priori do sujeito com as formas do objeto. As formas do sujeito não determinam as formas do objeto.

Além disso, é uma bobagem dizer que os dados se apresentam soltos, isolados, e que nós é que os sintetizamos. Hume, por exemplo, pretendia que, ao ver uma bola de bilhar bater em outra e causar seu movimento, vemos apenas o movimento da primeira seguido do movimento da segunda, e que sintetizamos os dois mediante a idéia de causa. Bobagem. Vemos um fenômeno único, coeso, e em seguida o decompomos em duas fases. Entre o movimento da primeira bola e o da segunda não há um intervalo: somos nós que, por abstração mental, separamos dois movimentos que na verdade se apresentaram unidos. A noção de causa não é “projetada” pela mente sobre os objetos para colar partes separadas. É obtida por separação, por abstração, por análise daquilo que se apresentou junto e coeso. Os dados vêm juntos, nós é que os separamos — exatamente ao contrário do que diz Hume, endossado por Kant.

A fenomenologia, em vez de perguntar, como Kant, se o conhecimento é possível, pergunta antes o que é o conhecimento, o que é o ato de conhecer, o que se passa precisamente quando se conhece alguma coisa. Estas perguntas, uma vez colocadas, já resolvem muitos dos problemas levantados pelos filósofos críticos e céticos.

§ 3. A identidade de ser e conhecer

Ao lado e sobre isso, eu acrescento a seguinte perspectiva, que é um dos pontos essenciais da doutrina metafísica que defendo: não faz sentido definir o conhecimento como uma relação entre o sujeito e o objeto, uma vez que isto pressuponha a existência do sujeito e do objeto fora e independentemente da potência do conhecer. Ora, é exatamente esta potência de conhecer e de ser conhecido que define sujeito e objeto. Portanto, a realidade em si não é nem objetiva, nem subjetiva, porque ser realidade é ter a capacidade de se desdobrar nesses dois aspectos. O conhecer, como potência, é prévio ao sujeito e ao objeto. Ser realidade é ter a capacidade de se apresentar a alguém, o qual também tem de ser real. Portanto, essa dicotomia sujeito-objeto faz parte da estrutura da realidade. Só é real aquilo que admite esta distinção.

Deus, por exemplo. Deus conhece a si mesmo. Mas há, obviamente, uma distinção entre o que é conhecido e o que conhece, ainda que esta distinção seja só relacional. Uma coisa é Ele ser, outra coisa é Ele conhecer-se. Estes atos são formalmente distintos, embora não sejam distintos no tempo nem no conteúdo. Se não houvesse a possibilidade de distinguir entre esses dois aspectos — ser e conhecer —, não haveria sentido em dizer que Deus se conhece. Mas, por outro lado, esta distinção também é conhecida, e faz portanto parte do ser, e portanto é real.

Só pode ser conhecido o que é real, sob algum aspecto, e só pode ser real aquilo que pode ser conhecido. Suponhamos algo que não pode ser conhecido de maneira alguma, essencialmente. Ora, se não pode ser conhecido de maneira alguma então este algo não se relaciona com nenhum outro ser. Não transmite informação a nenhum outro ser. Existir é transmitir informação, logo esse algo não existe.

Esta informação pode ser transmitida do ser para ele mesmo, como por exemplo aquilo que cada um sabe a seu próprio respeito. A essência do ser, então, consiste em conhecer-se, logo não há distinção entre o ser e o conhecer, mas apenas uma distinção relacional: são dois aspectos do ser. E essa distinção só existe do ponto de vista subjetivo humano.

O ser, verdadeiro, real, consiste em conhecer-se. Mas se é verdadeiro é porque é conhecido, e se é conhecido é porque é verdadeiro. Isto se aplica tanto a mim quanto à coisa da qual estou falando. Se não sou real, não posso conhecer. E se a coisa da qual estou falando também não é real, ela não pode ser conhecida. Ora, de onde tirei essas distinções? Do próprio conceito de conhecer. Logo, o conhecer é prévio a tudo isto. O conhecer é receber informação, o ser conhecido é emitir informação. Esta capacidade de receber e emitir informação é simultânea. Só o que emite informação pode receber informação. Emitir informação é relacionar-se de algum modo com outro ser, da mesma forma que receber informação também é relacionar-se de algum modo com outro ser. A capacidade de emitir e e a de receber informação não se separam, apenas se distinguem. Não pode existir uma sem a outra.

O tempo todo se verifica esta identidade do ser e do conhecer. Já a distinção sujeito-objeto é meramente funcional, descritiva. Num determinado ato de conhecimento, um dos entes atua como receptor de informação e o outro com emissor. Mas o que é receptor é emissor também, e vice-versa. Uma pedra, por exemplo, recebe várias informações: lei da gravidade, pressão atmosférica, e as informações químicas e cristalográficas que a compõem. Ela apenas não as recebe conscientemente, o que significa que essas informações estão na pedra como elementos constitutivos do seu modo de apresentar-se, não do seu modo de conhecer.

Ou seja, o conhecer é uma relação de troca de informações. Há, no entanto, uma diferença para o caso humano. Nós humanos podemos refletir sobre a informação recebida, ou seja, não apenas recebemos a informação como também sabemos que a recebemos. Logo, além do conhecimento que recebemos da pedra, recebemos também um conhecimento a nosso respeito, que é o conhecimento de que recebemos o conhecimento da pedra. Este segundo momento, que existe apenas para os humanos, constitui a diferença humana.

Uma pedra, por exemplo, recebe informação de fora, mas não de si própria. Há conhecimento nela, mas ela não emite informação para si própria, ou seja, ela está imune a si mesma. Ela não pode ser afetada por ela mesma, não pode fazer nada para si. Ela é inerme com relação a si. Logo, há uma limitação em seu modo de ser, que corresponde a uma limitação em seu modo de conhecer. A pedra existe deficientemente porque conhece deficientemente.

Do mesmo modo, a existência do ser humano se mostra mais rica, mais plena, mais verdadeira na exata medida em que mais conhece. O ser humano de pouca consciência existe de maneira tênue e fantasmal, afeta pouco o mundo circundante e age pouco sobre si mesmo. Já os que conhecem muito, como por exemplo Aristóteles, Platão, Lao-Tse, são mais reais, porque conhecem mais, e em conseqüência atuam sobre uma esfera maior durante mais tempo.

Os fenomenologistas estavam nesta pista. Não sei por que, não chegaram a estas conclusões metafísicas. O próprio Husserl, após passar a vida desenvolvendo o método, se dirige a uma filosofia da consciência que é uma espécie de idealismo filosófico. No entanto, esta não é a única direção possível a partir da filosofia. Isto é afirmado taxativamente por Roman Ingarden, o grande discípulo polonês de Husserl. Eu próprio teria preferido dar esse passo: existe uma forma de realidade que abrange sujeito e objeto, que se chama conhecer, e esta forma é coextensiva ao ser, ou seja, a distinção entre o sujeito e o objeto é superada no ato de conhecer. O conhecer não é somente uma relação entre um sujeito dado e pronto e um objeto dado e pronto. A potência de conhecer está na natureza do sujeito assim como a potência de ser conhecido está na natureza do objeto, porém não há o sujeito puro nem o objeto puro, que são meras suposições e conceitos funcionais.

Dito de outra forma, os conceitos de sujeito puro, que só conheceria e nunca seria conhecido, e de objeto puro, que só seria conhecido e nunca conheceria, são negações da realidade. São obtidos por negação das condições que permitem que a realidade seja realidade. A verdadeira realidade é o conhecer, nunca um puro sujeito ou um puro objeto. Sujeito e objeto são decorrentes do conhecer, fundados no conhecer. Então o conhecer é o próprio ser, que tem a capacidade de ser sujeito e objeto ao mesmo tempo.

Mas, se a realidade consiste fundamentalmente no ato de conhecer, precisamos cortar do verbo conhecer todo seu aspecto subjetivo. O conhecer não é algo que se passa no sujeito, apenas. O conhecer se passa no sujeito e no objeto ao mesmo tempo; o objeto não é fisicamente alterado pelo ato, mas ele participa do processo. Se o conhecer, entendido como relação, como unidade dual de sujeito e objeto, é a própria natureza do ser, então essa mesma dualidade una tem de existir no próprio ser; e de fato existe, como aspectos de relações que ele pode ter consigo mesmo. Se assim é, então a gradação do ser é a mesma gradação do conhecer. Ser mais ou menos é conhecer mais ou menos.

Na verdade, a pedra conhece algo de mim. Eu passo alguma informação a ela. No momento em que a vejo, passo a ela um recibo da sua visibilidade, atualizo sua potência de ser vista, respondo a uma informação que ela me transmite. Só que ela não pode repetir essa informação para si e aprofundá-la, então ela tem pouca informação a meu respeito, assim como tem pouca informação a respeito dela mesma. Ela faz mais parte do meu mundo do que eu faço parte do mundo dela, embora eu a afete. Neste sentido, ela é menos real do que eu. E pelo fato de ser menos real, ela tem algo de fantasmagórico. Quem quer que já tenha ficado sozinho e quieto por muito tempo entre objetos inertes compreende o que estou dizendo.

Essa impressão pode facilmente ser apreendida quando se está sozinho no meio de objetos inertes. Usualmente, quem se encontra nesta situação tende a criar um diálogo interno, ou fica com uma certa impressão de irrealidade, porque as coisas em sua presença são passivas. Elas não existem com a intensidade das coisas verdadeiramente reais. Elas são deficientes. Podemos concluir daí que o que chamamos de alma ou de espírito é a verdadeira substância da realidade. O espírito é o próprio conhecer. A verdadeira natureza da realidade é de ordem espiritual, cognitiva.

Se se compreende o que estou dizendo, compreende-se também que isto nada tem a ver com idealismo filosófico, seja idealismo subjetivo, seja idealismo objetivo. A distinção de idealismo e materialismo é posterior e derivada logicamente em relação a esta minha doutrina, que tanto pode ser usada para fundamentar um quanto o outro, dependendo de julgarmos que o ato espiritual, cognitivo, é material ou imaterial – duas hipóteses que, para mim, não têm a menor importância, aliás nem têm muito sentido.

Todo o universo é um imenso intercâmbio de informações, que circulam e que vão infinitamente além da própria presença espacial dos objetos. Uma pedra, por exemplo, é tudo o que ela já sofreu, é a sua história. Não uma história projetada, mas a história que está nela. Só que para ela, subjetivamente, esta história só existe como resíduo físico, como marcas, pois ela não tem reflexão sobre este passado. Embora traga nela a informação, para ela subjetivamente esta informação não existe, não obstante exista em seu “corpo”, digamos, para ser vista por outros seres.

Ora, nós trazemos todas essas marcas, só que não apenas para mostrar a outros seres, mas para nós mesmos. Somos, portanto, duplamente reais: para os outros e para nós mesmos. A pedra não, só é real para os outros. Neste sentido, ela é menos real. Ela acumula informação que circula do mundo para ela e dela para o mundo, mas não dela para ela, sendo que esta última, a informação de si para si, é a que dá a dimensão de interioridade ou consciência.

Basta essa constatação para verificar o quanto é estúpida qualquer tentativa de negar a consciência. Consciência é a simples transmissão interna de informações, transmissão que se realiza da periferia para o centro, do inferior para o superior, das partes para o todo. Minha definição de consciência não tem nada a ver com a distinção entre mente e corpo, que é a base de infinitas confusões das quais um Richard Rorty, por exemplo, se aproveita para negá-la.

Ora, se a verdadeira presença dos objetos consiste em emitir e receber informação, então aquele que acumula mais informação emitida, recebida e processada de si para si é mais real. Tem uma dose maior de realidade porque tem uma dose maior de circulação de informações, mais contato entre as partes e o todo, entre centro e periferia. Neste sentido, este desenvolvimento a partir da herança fenomenológica seria, se fosse preciso nomeá-lo com nomes de categorias tradicionais que a ele não se aplicam bem, um verdadeiro “idealismo materialista”.

Na verdade, as próprias noções de matéria e mente ficam subordinadas a essa noção de emitir e receber informação. Qual seria o maximamente real? Aquele que emitisse e recebesse toda informação. Este seria o universo considerado como um em-si, não apenas como um objeto – o universo que me inclui e dentro do qual eu exerço minha consciência. Logo, esta minha consciência é um atributo deste mesmo universo, a minha e todas as outras consciências particulares, das quais o universo toma consciência em si mesmo, através dessas mesmas consciências particulares que, estando nele, são dele. Ou seja, toda consciência humana é consciência que o universo tem de si mesmo – apenas restando saber se elas são recolhidas num centro, se somos nós mesmos o centro ou se o universo é apenas coisa, com um para-si tênue ou inexistente – um caso que não precisamos resolver aqui de imediato. Nossa consciência seria a dose de consciência que existe nesta parte do universo, sem contar que podem existir outras. Logo, o universo considerado, não como presença física atual, mas como toda a massa de informação, é a máxima realidade, desde que esse universo tenha um centro capaz de tornar essa massa um para-si — ainda que esse centro sejamos nós mesmos.

E Deus? Se imaginarmos um Deus transcendente ao universo, um Deus que não fosse o próprio Universo, mas que estivesse fora dele, estaria Ele fora necessariamente e sempre, ou seria um aspecto transcendente do próprio Universo? Ora, é claro que Ele é um aspecto do Universo que não pode se reduzir a nenhuma de suas partes e que é de certa forma transcendente a si mesmo, porque inclui toda a possibilidade ainda não realizada no universo físico. Essa possibilidade existe, e ela tem de se autoconhecer. Imagine se assim não fosse: a possibilidade transcendente que desconhece a si mesma e que só nós, seres humanos, conhecemos. Um materialista compreenderia assim. Mas se só nós a conhecemos ela é conhecida, ainda que apenas em nós. Teríamos então o conhecimento desta possibilidade, sem a possibilidade de realizá-la. O Universo teria a possibilidade e não poderia conhecê-la, havendo dentro dele quem a conhecesse sem ter a possibilidade de realizá-la. Se entendemos que essa omnipossibilidade inclui as possibilidades de consciência, entendemos também que essa hipótese materialista é absurda.

Logo, é claro que o Universo se conhece. A parte dele que se conhece mas que não está realizada ainda, e que talvez não se realize nunca, nós chamamos de aspectos transcendentes de Deus. Para ser transcendente, não é preciso ser transcendente a tudo.

Se existe consciência dentro do Universo, existe consciência noUniverso. Fatalmente, esta consciência transcende todas as consciências particulares que estão lá dentro, porque senão haveria apenas consciências particulares e não sua conexão, e não obstante elas estão conectadas realmente, pelo fato de estarem no mesmo lugar, ter a mesma história, etc. Assim sendo, não podemos admitir que exista alguma conexão central real dentro do universo que não seja autoconhecida também, embora não por esta ou aquela consciência particular. Daí se conclui a necessidade absoluta de uma consciência não apenas cósmica, mas supracósmica, porque se fosse apenas cósmica estaria limitada àquilo que o universo já é e não teria nenhuma possibilidade acima de si. O universo não teria a capacidade de superar-se, coisa que sabemos que ele tem: geração de novas estrelas, galáxias, etc.

Ou seja, a necessidade de uma consciência supracósmica e de um poder supracósmico de realizá-la é absoluta. A existência de Deus é uma evidência para quem encara a coisa da maneira certa, é absolutamente necessária e é absolutamente inconcebível que seja de outra maneira. Cada frase que se pronuncia, cada sentença de qualquer ciência exige isto.

As pessoas não percebem essa necessidade porque não relacionam uma coisa com outra, ou porque têm a ingênua pretensão de que sua ciência vai encontrar o mistério do universo que seja desconhecido pelo próprio universo. Ora, quando você começou a formar sua ciência, você já está dando por subentendido que a explicação do universo está no universo, e não apenas dentro do departamento onde o cientista trabalha, magicamente isolado do universo. A própria possibilidade de fazermos ciência está dentro do universo. Ninguém sai do Universo para fazer ciência ou o que quer que seja. Essas idéias confusas vêm de uma noção equivocada de objetividade, que a entende como se colocar fora do problema, quando a verdadeira objetividade consiste em saber onde precisamente se está, dentro do problema. Do contrário, seria como se Hamlet, para conhecer o rei ou Ofélia, precisasse sair da peça. A objetividade consiste na descrição exata das posições recíprocas, e não em sair de todas as posições e observar como se estivesse de fora.

Estando de fora, sem nenhuma relação com o objeto observado, não há sequer como observá-lo. A idéia do “puro observador” é uma autocontradição, porque sem relação não há conhecimento. O conhecimento é a relação, e esta relação, entendida não como junção posterior de termos já dados, mas como reciprocidade necessária de termos coexistentes, é a estrutura mesma do ser, que consiste em autoconsciência e nada mais, independentemente de questões inócuas como a de saber se é material ou mental.

Eis os princípios da metafísica que defendo.