Prólogo de “O Imbecil Coletivo”

PRÓLOGO DE O IMBECIL COLETIVO

PRÓLOGO DO PRÓLOGO

Quando comecei a redigir estas páginas, não esperava dar-lhes nem mesmo aquela unidade externa e corpórea, que duas capas e uma lombada conferem ao objeto denominado, neste caso mui impropriamente, “livro”, e que a rigor se chamaria antes “volume” ou “bloco”. Não obedeciam a um plano de conjunto nem tinham sido concebidas no intuito de casar-se umas às outras. Nelas se haviam anotado, ao acaso, minhas impressões ante acontecimentos culturais do dia, à medida que os acontecimentos aconteciam, sem que nem mesmo neles minha visão atinasse com a unidade de qualquer intenção demiúrgica, por mais secreta e sutil que fosse.

À medida que se acumulavam, porém, notei que refletiam a convergência impremeditada de meus focos habituais de atenção para um preciso ponto. Levado por algum demônio oculto, meu cérebro se tornara cada vez mais atento e sensível às tolices irritantes que em doses cada vez maiores eu encontrava nos jornais, ditas por homens de letras nesta parte obscura do mundo, e das quais o anjo bom, movido pelos cuidados que lhe inspirava o alarmante inchaço do meu saco escrotal, me aconselhava em vão guardar a máxima distância e devotá-las a um merecido esquecimento. Por efeito seja do acúmulo crescente, seja da minha atenção obsessiva, o besteirol letrado começou a tomar a meus olhos quase a forma de um gênero literário independente, bem diferenciado e caracteristicamente nacional. Sim, do mesmo modo que a Alemanha havia encontrado a sua máxima vocação literária na prosa filosófica, a Inglaterra na poesia lírica, a Itália no verso épico, a Espanha na narrativa picaresca, a Rússia no romance, a França no jornalismo de idéias, o Brasil encontrara a expressão perfeita da sua personalidade intelectual no jornalismo da falta de idéias. E, uma vez afeito meu espírito ao consumo desse gênero literário tal como Dom Quixote se habituara ao dos romances de cavalaria, nada mais podia deter-me na busca de novas e cada vez mais deprimentes vivências culturais.

Todas as manhãs, quando eu, entre volúpias de masoca, me atirava àquelas letras viciosas, o pobre anjo, em vão, tentava dissuadir-me, dirigir meu olhar a coisas mais higiênicas, que iam desde a Bíblia até a revista Amiga, passando pelos clássicos da literatura e pelas obras dos grandes filósofos, bem como pelas cotações da Bolsa, pelas aventuras dos Cavaleiros do Zodíaco e pelos anúncios de geladeiras a prazo. E eu, após uma breve vista d’olhos nesse material, voltava com redobrada sanha às obscenidades culturais em que me deleitava suinamente. Só faltou ele me oferecer literatura pornô, o que seria apelação indigna do seu alto ofício, mas creio que, se não o fez, foi menos por razões de moralidade do que por atinar de antemão com a inocuidade desse expediente, tendo em vista a diversa direção tomada, de maneira aparentemente irreversível, pelo meu furioso animus legendi. Sim, eu lia tudo, mas tudo o que era cultural, no sentido especial que esta palavra assumiu entre nós desde o advento de Antonio Gramsci e Michael Jackson: o Caderno Idéias do JB, as páginas literárias de O Globo, o Caderno de Sábado do Jornal da Tarde, o Suplemento Cultura de O Estado de S. Paulo, as revistas semanais Veja e Isto É, o Suplemento do Recife, as páginas de letras de A Tarde da Bahia e do Diário do Paraná (tudo, enfim. Tudo e o Mais!

O pretexto edificante que me movia, segundo eu imaginava no meu sonso auto-engano, era de índole patriótica. Sim, replicava eu ao anjo, leio estas coisas em busca de um vestígio de inteligência, de um aceno de esperança, de um sinal ao menos por que possa defender o meu país ante o trono do Altíssimo, mostrando-Lhe que não foi em vão que nos deu neurônios. O guardião de minh’alma perdia a paciência:

— Ma che brutta bestia! (Desculpem o idioma: Na infância fui educado por padres italianos, e fiquei com a impressão de que os anjos falam italiano. Doravante traduzo.) Ficas aí te fazendo de advogado do indefensável, e danas tua própria alma com alimentos venenosos? Vai trabalhar, vagabundo!

Não sei bem dizer quando se deu a virada interior, em que o intuito patriótico se converteu ou perverteu de vez em masoquismo assumido. Foi aí que comecei a colecionar e ordenar estas notas. Então disse-me o anjo:

— Se queres mesmo, então vai, sela teu destino: torna-te colecionador de asneiras. Mas, por Deus!, que não seja em pura perda. Dá a essas tuas dores auto-infligidas uma utilidade e um sentido. Faze um livro, não para mostrar a Deus, que já sabe de antemão tudo o que te faz enxergar, mas para aqueles mesmos que não se enxergam e por não se enxergarem se mostram, quando deviam ocultar-se. Faze o trabalho do espírito: mostra-os a si mesmos, para que os humilhe o que os lisonjeou um dia, e, tombando de quanto mais alto subiram, conheçam que humanos são. Junta teus papéis, compõe massuda escritura, se rude e tosca não vem ao caso, mas que não minta. E, para que não caias onde caíram aqueles de quem falas, toma tento: não te glories de ser a consciência de ninguém, pois o bem que acaso fizeres não será obra tua, e sim efeito da alquimia divina, que pode transmutar em bem até o vício de ler o que não presta.

Maio de 1996.

PRÓLOGO

Reuno aqui umas notas que fui tomando à margem do noticiário cultural brasileiro entre 1992 e 1996. Referem-se todas a um tema único: a alienação da nossa elite intelectual, arrebatada por modas e paixões que a impedem de enxergar as coisas mais óbvias. São observações esparsas, não pretendem traçar um diagnóstico de conjunto, mas indicam fortemente no sentido de uma suspeita: a suspeita de que algo no cérebro nacional não vai bem1.

Todas tomam como ponto de partida algum acontecimento cultural local — um espetáculo, a edição de um livro, as palavras de algum figurão ditas em entrevista — e procuram desentranhar as concepções de ordem geral que encerram, julgando-as em seguida do ponto de vista da coerência intrínseca, do confrontação com os fatos e das exigências de uma cultura superior. Compensando, porém, a homogeneidade dos temas e a unidade do critério que os interpreta e julga, é múltiplo o enfoque e variado o estilo, motivo pelo qual se encontrarão aqui desde breves ensaios filosóficos (“Rorty e os animais” e “Nota sobre Charles S. Peirce”) e de crítica cultural (“O imbecil coletivo” e “Christopher Lasch”) até esboços humorísticos (“Idéias vegetais” e Apêndices) e meras notas jornalísticas, de modo que o leitor, girando de posição, não sinta o desconforto do assunto.

Este livro completa a trilogia que, iniciada com A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci e prosseguida com O Jardim das Aflições. De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil, consagrei ao estudo da patologia intelectual brasileira no novo panorama do mundo. A função dele na série é mostrar, por meio de exemplos, a extensão e a gravidade de um fenômeno de que o primeiro deu o alarma e cuja localização na História das Idéias no Ocidente foi estudada no segundo2.

A seleção das amostras é fortuita. Encontrei-as na imprensa. Certo ou errado, achei que podiam compor um exemplário significativo do estado de espírito dos letrados brasileiros na presente fase da nossa História. “Letrado”, na maioria dos casos, é apenas um modo de falar: designa as pessoas que teriam a obrigação de sê-lo, em razão de cargo, ofício, fama ou pretensão.

O leitor talvez se espante de que alguns dos fatos aqui abordados não tenham por cenário o Brasil e sim os Estados Unidos3. Mas é que não falo da cultura norte-americana tal como a vêem os americanos do Norte, mas tal como ela aparece aqui, na nossa imprensa literária. O material é de lá, mas o recorte seletivo é nosso: revela nossos interesses e prioridades. Em segundo lugar, e como se vê por esse recorte mesmo, a confusão local consiste, quanto a alguns aspectos essenciais, num reflexo da crise da inteligência norte-americana. Cronicamente incapaz de qualquer pensamento independente, a intelectualidade brasileira compensa sua míngua de força criadora com um excesso de sensibilidade para as oscilações do mercado de idéias no mundo: ninguém, como os nossos letrados, tem um senso tão agudo da “atualidade” e uma pressa tão descarada de renegar da noite para o dia suas devoções da véspera, à menor suspeita de estarem “superadas”. Volúveis e inseguros, esfalfam-se por acertar o passo com as badaladas do relógio da moda, esse eco da História que tomam pela História mesma.

O desejo de segurança é um impulso normal do ser humano. Foi ele que impeliu os primeiros filósofos a buscarem uma verdade para além das flutuações da opinião. Mas esse desejo toma, entre os intelectuais brasileiros, um sentido caricatural e perverso. Em vez de buscar segurança numa intuição direta e pessoal, imaginam poder encontrá-la na adesão coletiva e epidêmica às tendências de prestígio mais recente no que chamam “os grandes centros produtores de cultura” — expressão que já revela toda uma concepção coisista e mercadológica do que seja cultura. Temerosos demais para tentarem atinar por si com o certo e o errado, encontram alívio e proteção no sentimento de estar em dia com a opinião mundial, ou com o que tal lhes parece4. Isto poupa-os de um esforço angustiante, reduzindo a atividade da inteligência a uma operação de aritmética elementar, dedicada a buscar, em vez da ordem das razões, a mera soma das opiniões. Foi assim que, de cópia em carbono da moda francesa, evoluímos para nos tornar uma reprodução em fax da mentalidade norte-americana. Quando, nas últimas três décadas, a crise do comunismo foi minando o prestígio das grandes divas intelectuais do marxismo europeu, como Jean-Paul Sartre, Althusser, Lukács, a bússola intelectual brasileira girou de Paris para Nova York5, onde despontavam duas poderosas correntes de modas culturais: a Nova Esquerda e a Nova Era, New Left e New Age. Desde a década de 60 o Brasil foi-se tornando cada vez mais dependente dos EUA em matéria de idéias. E aí somaram-se várias circunstâncias nefastas, para produzir o quadro presente da nossa miséria cultural.
        Primeira: A transferência da nossa matriz cerebral para Nova York deu-se justamente no momento em que os EUA entravam num declínio intelectual alarmante. Isto já mostra nossa radical desorientação, nossa dificuldade de selecionar as influências segundo uma escala de prioridades sensatas, nossa propensão a guiar-nos pelos sinais enganosos do brilho momentâneo. No romantismo preferimos Victor Hugo a Hölderlin. Em 22, quando havia no mundo um Rilke, um Yeats, seguimos a estrela cadente de Marinetti. Nos anos 50, ignoramos Husserl para seguir Jean-Paul Sartre, seu reflexo esmaecido. Agora deslumbramo-nos com a fosforescência de um Richard Rorty, de um Frederic Jameson, sem nos darmos conta de que é um desperdício importar novas maquiagens para filosofias defuntas, já que a produção local de cosméticos funerários é auto-suficiente6.
        Segunda: O descrédito mundial do marxismo coincidiu, no tempo, com a ascensão das esquerdas ao primeiro plano da política nacional; e justamente na hora de sua maior glória, elas se encontram mais desorientadas do que nunca, sem outros modelos a copiar senão os resíduos da decomposição intelectual norte-americana. E como a intelectualidade esquerdista ocupou todos os postos estratégicos da indústria de prestígios — dominando as universidades, as comunicações, o mercado de livros —, ela contaminou com a sua indigência a totalidade da vida cultural brasileira7.
        Terceira: Nosso declínio intelectual foi acompanhado de um notável progresso dos meios materiais de difusão da cultura: ampliação e modernização da indústria livreira, abertura de espaços para o noticiário cultural na TV e nas rádios, aumento prodigioso do número de vagas universitárias, multiplicação das verbas oficiais para a produção cultural, etc. Assim, quanto mais baixa a qualidade das idéias, mais largos os canais por onde se despejam na cabeça do povo — a latrina mental dos intelectuais. Pior ainda: premiando de supetão o intelectual jovem, despreparado e sem lastro interior, o sucesso atua como o sinal encorajador de que um imbecil precisa para tornar-se um imbecil arrogante.

Mas aconteceu — quarta circunstância —, que a arrogância palavrosa da intelectualidade encontrou, no ambiente de indignação popular contra a miséria e a corrupção, o mais potente dos estímulos que as almas insinceras necessitam para livrar-se do último vestígio de compostura: um pretexto moralizante. Quando a leviandade, a tolice, a arrogância pretensiosa são convidadas a subir ao palanque para discursar em nome da “ética”, não há mais limites para os progressos da inconsciência: a moralidade é o último refúgio dos imbecis8.

O quadro fecha-se no instante em que alguns espertalhões da geração mais velha, vendo ascenderem ao primeiro plano da vida pública esses batalhões de jovens desprovidos de juízo próprio e necessitados, por isto, de plantar no solo do apoio coletivo as mudas raquíticas de seus pensamentos, perceberam — quinta circunstância — que podiam canalizar o potencial desses meninos em proveito de uma estratégia política determinada, bastando carapintá-los um pouco. É de massas de jovens pseudoletrados que se compõe, precisamente, o “intelectual coletivo” do gramscismo: o aparelho partidário de agitação e propaganda, onde a distribuição de frases feitas, de preconceitos e de cacoetes mentais faz as vezes de vida intelectual. Daí o título deste livro.

Mas esse título é mais do que uma alusão satírica. Ele ilustra com um mínimo de imprecisão uma das propriedades essenciais daquilo que se convencionou chamar a intelligentzia. Esta palavra russa, convém lembrar, não abrange em seu significado todas as pessoas empenhadas em tarefas científicas, filosóficas ou artísticas, mas somente aquelas que falam com freqüência umas com as outras e se persuadem mutuamente de estar colaborando para algo que juram ser o progresso social e político da humanidade. Pensadores eminentes como Kurt Gödel ou Edmund Husserl, poetas de primeira grandeza como Blake e Saint-John Perse, homens espirituais de elevada estatura como Râmana Maharshi ou René Guénon não fazem parte da intelligentzia, seja porque estão pouco se lixando para o progresso social e político da humanidade, seja porque, ocupando-se preferentemente de assuntos intemporais, ficam à margem daquilo que seus contemporâneos entendem como “os grandes debates do nosso tempo” — a logomaquia universal que, se não produziu desde a Revolução Francesa nenhum resultado intelectualmente valioso, ao menos elevou de certo modo a um plano superior de existência uns duzentos milhões de seres humanos, alçando-os deste baixo mundo para o assento etéreo, já que esse é mais ou menos o número de vítimas das guerras ideológicas dos últimos dois séculos. Em nada tendo colaborado para este resultado, os seis personagens referidos não são portanto intelectuais no sentido em que o são Voltaire, Plekhanov, Sartre e D. Marilena Chauí.

Uma vez compreendido o que é a intelligentzia9, a expressão que nomeia este livro adquire plena clareza como designação de uma das atividades principais dessa categoria de seres. O imbecil coletivo não é, de fato, a mera soma de um certo número de imbecis individuais. É, ao contrário, uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras. Se é desejo consciente ou inconsciente não vem ao caso: o que importa é que o objetivo geralmente é alcançado. Como? O processo tem três fases. Primeiro, cada membro da coletividade compromete-se a nada perceber que não esteja também sendo percebido simultaneamente por todos os outros. Segundo, todos juram crer que o recorte minimizador assim obtido é o único verdadeiro mundo. Terceiro, todos professam que o mínimo divisor comum mental que opera esse recorte é infinitamente mais inteligente do que qualquer indivíduo humano de dentro ou de fora do grupo, já que, segundo uma autorizada porta-voz dessa entidade coletiva, “a psicanálise, com o conceito de inconsciente, e o marxismo, com o de ideologia, estabeleceram limites intransponíveis para a crença no poderio total da consciência autônoma, enfatizando seus limites” (sic)10. Assim, se um dos membros da coletividade é mordido por um cachorro, deve imediatamente telefonar para os demais e perguntar-lhes se foi de fato mordido por um cachorro. Se lhe responderem que se trata de mera impressão subjetiva (o que se dará na maioria dos casos, já que é altamente improvável que os cachorros entrem num acordo de só morder as pessoas na presença de uma parcela significativa da comunidade letrada), ele deve incontinenti renunciar a considerar esse episódio um fato objetivo, podendo porém continuar a falar dele em público, se o quiser, a título de expressão pessoal criativa ou de crença religiosa. Para o imbecil coletivo, tudo o que não possa ser confirmado pelo testemunho unânime da intelligentzia simplesmente não existe. Compreende-se assim por que o mundo descrito pelos intelectuais é tão diferente daquele onde vivem as demais pessoas, sobretudo aquelas que, imersas na ilusão do poderio total da consciência autônoma, acreditam no que vêem em vez de acreditar no que lêem nos livros dos professores da USP.

O presente livro, portanto, trata daquilo que não existe: daquilo que está fora do mundo tal como o concebe a intelligentzia, mas que está limítrofe à sua circunferência e pode ser enxergado com perfeita nitidez por quem quer que consinta em deixar de ser um intelectual por uns minutos e dê uma espiada fora, fazendo uso, mesmo discreto, dos poderes limitadíssimos da sua consciência individual.

Muitos verão neste livro um requisitório, uma diatribe furibunda e peçonhenta contra os intelectuais brasileiros. Pessoas nas quais os hormônios da emoção são mais ativos do que as luzes da inteligência11 são incapazes de compreender que às vezes temos de dizer coisas horríveis não porque elas brotem do nosso estômago, mas porque entram pelos nossos olhos; que não dizemos o que queremos, mas o que vemos — e que o fazemos sem nenhum prazer, muito menos o prazer hipócrita de um moralista de palanque, que se imagina bom quando consegue provar que alguém é ruim. Acusadoras compulsivas, pertinazes atribuidoras de suas próprias intenções a outrem, são ineptas para conceber que aquele que diz palavras amargas pode não ser movido pelo intuito de denunciar, de acusar, mas de descrever e advertir; e que se o discurso vem num tom de franqueza brutal, é porque o estado de coisas descrito ultrapassou os limites do tolerável e a advertência já vem tarde.

Não tenho a menor dúvida de que este livro terá, numa boa fatia dos ambientes letrados, a recepção-padrão dada a outros tantos livros brasileiros, alguns até bem melhores, que tinham por objetivo fazer pensar: o completo silêncio quanto ao conteúdo, uma floração majestosa de fofocas e calúnias quanto à pessoa do autor12. É característico da nossa baixeza intelectual que, quanto menos alguém compreende o simples enunciado de uma idéia, mais se julga capacitado a diagnosticar os motivos psicológicos profundos e até mesmo inconscientes que teriam levado o autor a produzi-la. Isso tem a indiscutível vantagem de desviar a discussão dos terrenos áridos da filosofia, da ciência, etc., para as férteis planícies da psicanálise-de-botequim, onde todo brasileiro se sente um expert tanto quanto em técnica de futebol, economia política e mecânica de automóveis. Os motivos diagnosticados são invariavelmente mórbidos ou sinistros — ódio à humanidade, complexo de Édipo, homossexualismo enrustido, machismo porco-chauvinista, egolatria demencial, inveja recalcada, ressentimento neurótico, desejo furioso de autopromoção etc. etc. —, de modo a encobrir a pessoa do autor com uma máscara suficientemente antipática para dissuadir qualquer leitor de fazer um esforço para compreendê-lo. Homens verdadeiramente grandes — um Mário Ferreira dos Santos, um Gilberto Freyre, um Otto Maria Carpeaux, um Oliveira Vianna — foram abundantemente submetidos a esse tipo de maquiagem caricaturante, de modo que, vendo-os reduzidos a estereótipos de fácil apreensão, cada leitor potencial crê já conhecê-los o bastante para poder dispensar-se de examinar de perto o que escreveram. Por que haveria eu de escapar a semelhante destino? A intriga e a calúnia — às vezes nada espontâneas, mas dirigidas com precisão e espírito de sistema desde os centros interessados — têm sido no Brasil a forma mais usual de crítica literária13. Parece que ninguém se dá conta de quanto o país todo — caluniadores inclusos — perde com isso. Pois a rede de temores vãos, desconfianças, preconceitos e prevenções supersticiosas que esse hábito lança sobre a nossa vida cultural aprisiona a inteligência brasileira num complexo neurótico e incapacitante, frustra o intercâmbio das inspirações, estanca o fluxo das idéias, sufoca as forças criadoras e nos condena à perpétua anemia espiritual14.

Mas há sempre muitos leitores bons, desejosos de compreender mesmo aquilo que à primeira vista os desagrade. Esses não me levarão a mal a priori, imaginando que atribuir intenções seja o mesmo que compreender; e notarão desde logo um fato que contradiz, na base, qualquer diagnóstico de hidrofobia literária que algum desafeto mais ousado pretenda me passar com a autoridade científica que lhe é conferida pelo décimo copo de cachaça: o fato de que, no país do corporativismo, onde cada qual só discursa pro domo sua, este que lhes fala é um raro e não despiciendo exemplo de brasileiro capaz de fazer graves censuras ao seu próprio grêmio, punindo, como recomenda a sabedoria milenar do I Ching, sua cidade natal antes de fustigar a alheia. Pois, tendo vivido trinta anos e picos de meu trabalho de jornalista, escritor, professor e conferencista, que raio de outra coisa sou senão um membro do clã dos letrados? O discurso anticorporativo está na moda, tem buena prensa, e um público ingênuo não se dá conta de que falar contra o corporativismo alheio é com freqüência apenas um jeito elegante de fortalecer o próprio. Invertendo essa fórmula maliciosa, critico aqui os meus. E, pela tiragem modesta deste livro que não será decerto lido pelas multidões incultas, ninguém dirá sem grave injustiça que lavei nossa roupa suja fora de casa. É claro que estabeleço uma distinção entre os homens letrados em geral e, como foi dito acima, a intelligentzia em especial, atribuindo exclusivamente a esta última a jurisdição do imbecil coletivo. Mas a intelligentzia está para a classe culta como a parte para o todo, como um ramo da família está para a família, e sua pretensão mesma de falar em nome da família inteira justifica que eu me dirija a ela como a gente do mesmo sangue — de igual para igual, no tom irritado de quem não fala de cima, julgando e condenando com neutra autoridade, mas se sente contaminado e envergonhado pelas culpas dos seus.

Quanto ao subtítulo, insere francamente este trabalho no gênero literário inaugurado por Osman Lins: estudos de problemas inculturais. Um gênero a que o ambiente nacional, a julgar pelos sinais dos tempos, não sonegará tão cedo nem temas nem motivos15. Sonegará apenas oportunidades de publicação. O lugar certo para trabalhos deste gênero é, manifestamente, a imprensa diária ou semanal, já que eles acompanham jornalisticamente o desenrolar dos fatos e se distinguem do puro noticiário apenas ao procurar, na retaguarda mais ampla da História cultural, a ligação entre o curso dos dias e o rolar dos séculos, tal como aparece aos olhos de uma consciência autônoma. Mas não creio que exista, na imprensa brasileira, uma atmosfera propícia à discussão dos temas aqui presentes, pela simples razão de que o jornalismo é o templo mesmo da intelligentzia e de que as pautas de redação constituem o traslado fiel do recorte minimizador acima referido, isto caso não constituam o seu molde. E se não há nas páginas de jornais um lugar para estes temas, muito menos há para a linguagem muito pessoal e direta, às vezes abertamente desaforada, em que me sinto mais à vontade para falar deles — não porque seja um sujeito explosivo ou ranheta por natureza, mas porque há décadas não escuto neste país senão a voz do imbecil coletivo e porque, tenham ou não sido confirmados pela psicanálise e pelo marxismo, existem limites intransponíveis para a extensibilidade do saco humano.

Até umas décadas atrás, o jornalismo brasileiro ainda não adquirira consciência do seu poder supremo e consentia em ecoar o pensamento vindo de fora, muitas vezes pessoal e direto no conteúdo e no tom. Depois, a padronização da técnica jornalística trouxe o império do pensamento mediano e da linguagem morna, escorado em toda uma tecnologia da precaução, em toda uma engenharia da dubiedade16. Bilinguis maledictus. Ao mesmo tempo, o jornalismo — junto com seu irmão siamês, o marketing — erguia-se de sua posição de servidor da cultura para se tornar seu modelo e senhor, rebaixando a produção cultural a um eco passivo do noticiário do dia.

Um outro obstáculo à publicação destes textos em jornal é o seu tamanho. As modificações “técnicas” introduzidas no nosso jornalismo a partir da década de 60 timbram em cortar tudo pelo molde da crônica, do suelto ou do “pirolito”, e um articulista de idéias é hoje um sujeito que dispara meia dúzia de frases de efeito sobre um leitor desatento e vai para casa todo envaidecido de sua habilidade de resumir a Bíblia em um parágrafo, quando Deus precisou de nada menos que dez. Afirmar é fácil, provar é difícil. O enunciado de um teorema espreme-se em uma linha; a demonstração pode requerer várias páginas. A norma jornalística vigente implica nada menos que uma proibição de provar, uma obrigação estrita de ater-se à afirmação peremptória, se possível proferida naquele tom de autoridade que, dissuadindo os possíveis objetores, abrevia razoavelmente a conversa. A preguiça de ler vem em auxílio da norma, condenando como “prolixo” tudo o que vá além da asserção pura e simples. Isto acaba por fazer do jornalismo aquilo que dizia Conrad: uma coisa escrita por idiotas para ser lida por imbecis.

Por isto estes artigos, escritos no estilo de um tipo de publicação que não existe mais, acabaram virando livro — um jornalismo sem jornal. Dos trabalhos aqui presentes, só uns poucos saíram na imprensa: um no mais modesto — ainda que não o menos valoroso — jornal carioca, a Tribuna da Imprensa, outro no Jornal do Brasil, outros dois num recém-fundado caderno literário de O Globo, e um numa revista para jornalistas, um ambiente de família onde estes profissionais se permitem o luxo da franqueza, que reprimem no exercício público de seu ofício com uma austeridade de santos ascetas.

Bons amigos recomendam-me que não fale assim, que modere o tom, que selecione os alvos e ataque um por vez de modo a não voltar todos contra mim de um só golpe. Inúteis precauções. A maledicência não é racional na escolha de suas vítimas. Posso cair em suas garras por uma frase infeliz, como posso escapar delas malgrado uma farta distribuição de verdades amargas. A fortuna é mais sábia do que a astúcia — e astúcia, ademais, não é o meu forte, notória que é entre meus conhecidos a minha demora em perceber quando alguém me faz de trouxa17.

Por fim, digo que só teria sentido contornar as suscetibilidades de grupos e facções caso meu livro se dirigisse a grupos e facções. Ora, ele dirige-se exclusivamente ao leitor individual, na solidão da sua consciência, naquele seu fundo insubornávelde que falava Ortega y Gasset, que todo homem tem e onde ele é capaz de admitir, entre quatro paredes, verdades que renega em público. Dirijo-me ao que há de melhor no íntimo do meu leitor, não àquela sua casca temerosa e servil que diz amém à opinião grupal por medo da solidão. Fazer o contrário seria um desrespeito. Portanto, iracundo leitor, não me censure em público antes de certificar-se de que não me dará razão na intimidade, quando, no coração da noite, as palavras que lhe brotarem de dentro não encontrarem outro interlocutor senão o silêncio imenso.

Maio de 1996

NOTAS

  1. Por que tomei como exemplo esse período? Por nada de mais: só porque o livro tinha de começar e terminar. Se eu não lhe impusesse arbitrariamente um fim, a colheita de amostras poderia continuar indefinidamente e tornar-se um objetivo em si, porque, se o imbecil coletivo não é eterno, parece ao menos ser infinito em sua capacidade produtiva. E este livro, para acompanhá-lo (o que não estava nos meus planos), teria de ser uma publicação periódica, uma seção de jornal como o Febeapáde Stanislaw Ponte Preta. Seria o Febeapá dos intelectuais…
  2. Não obstante formem uma trilogia, cada um dos três livros pode ser lido independentemente, sem prejuízo da compreensão.
  3. Como nenhuma das idéias que compõem a constelação mental do imbecil coletivo é de origem nacional, não escapará ao leitor atento que este livro, tomando como seu foco imediato de atenção o caso brasileiro, constitui uma crítica da cultura contemporânea em escala mundial, ou pelo menos euro-americana. O Brasil torna-se ilustrativo de certas tendências mais perigosas embutidas nessa cultura, justamente por sua posição de receptor passivo e indefeso de influências que, nos seus países de origem, são às vezes desafiadas, combatidas e vencidas pela oposição consciente de intelectuais de valor. O Imbecil Coletivopode ainda ser compreendido como um prefácio, informal e jornalístico, ao meu estudo maior O Olho do Sol. Ensaio sobre Inteligência e Consciência — que na sua primeira parte abordará de maneira mais sistemática, e com um panorama histórico mais amplo e uniforme, a luta da falácia coletivista para subjugar e perverter a consciência humana, e na segunda enfocará o mesmo assunto pelo prisma puramente teórico da gnoseologia. E, ao leitor que seja mais atento ainda, ficará patente por trás da forma de coletânea a unidade do presente livro — a unidade de um enfoque único lançado sobre amostras variadas e ocasionais.
  4. As reações cíclícas de nacionalismo epidérmico nada podem contra isso. Fundam-se na idéia de que a naçãodeve ter um pensamento independente antes que os pensadores nacionais o tenham. Chutam para um coletivo abstrato a responsabilidade que incumbe a indivíduos concretos. Substituem um coletivismo servil por um coletivismo xenófobo, que nos isola do mundo por uns tempos, até cairmos de novo no temor de ficar para trás. É um círculo vicioso.
  5. “A decisão do Itamaraty de retirar a língua francesa da prova de seleção para diplomatas trouxe como ponta de lança uma polêmica e, a reboque, uma constatação: a influência da cultura francesa no Brasil vive do passado… A atriz e cineasta Norma Bengell (…) disgnostica: ‘As novas gerações estão mais ligadas ao cinema americano.’ (…) O escritor Marcos Santarrita lamenta: ‘Parece que secaram as idéias na França. Os últimos pensamentos originais na França foram os de Sartre, Camus e Merleau-Ponty.’” (Berenice Seara e Elizabeth Orsini, “Outono de uma referência cultural”, O Globo, 30 de março de 1996.) Esses parágrafos mostram que 1º, o giro do eixo de influência se tornou consciente e assumido; 2º, os intelectuais brasileiros, de modo geral, só acompanham, da produção de idéias no Exterior, as partes mais vistosas; portanto, do empobrecimento da mídiacultural parisiense, deduzem um esgotamento da produção cultural francesa, e rapidamente voltam os olhos na direção de um foco mais atraente. Mas o fato é que nas últimas décadas a França nos deu um Pierre Boudieu, um Éric Weil, um André Marc, um René Girard — pensadores muito mais profundos e consistentes do que Sartre ou Camus —, e infinitamente mais valiosos do que todos os cérebros acadêmicos dos EUA somados e multiplicados. Só que estão fora do círculo de atençãolowbrow. V., adiante, o capítulo “O cisco e a trave”.
  6. E mesmo quando, movidos por um remanescente prurido nacionalista, escolhemos venerar de preferência, entre os autores norte-americanos, aqueles que são os críticos mais severos da cultura de seu país, acabamos por consolidar ainda mais nossa posição de consumidores passivos e sem critério de seleção; porque a produção de autocríticas é uma das mais potentes indústrias de uma cultura afetada de radical falta de assunto, e há décadas os norte-americanos não têm nada a comunicar ao mundo senão os ecos de seus conflitos domésticos. A esta discussão local um auditório mundial sensato deveria responder normalmente com o mais soberbo desinteresse, mas, por efeito do marketingeditorial, ela acaba parecendo universalmente importante, sobretudo aos olhos de povos incapazes de formular seus problemas em seus termos próprios, e necessitados portanto de moldar seu debate interno por uma pauta estrangeira. Assim, quanto mais a inteligência norte-americana se fecha num provincianismo egocêntrico e perde o sentido da medida universal, mais tendemos, nós outros de south of Rio Grande, a fazer dela o padrão da medida universal: trocamos o senso da História pelo senso da atualidade americana. De um só golpe, alienamo-nos de nós mesmos e do universo, deixando que o gigante enlouquecido nos arraste e nos aprisione em seu delírio de auto-análise. Imitando uma cultura que se perdeu de si mesma, perdemo-nos ainda mais, e já não somos capazes nem de julgá-la nem de julgar a nós próprios. Triste exemplo disto é a admiração exagerada que concedemos a certos críticos atuais da cultura norte-americana sem repararmos que nada nos dizem que já não tenha sido dito, e melhor, por alguém das gerações passadas.
  7. O mais curioso, aí, é que as pessoas deixam de ser marxistas mas não sabem ser outra coisa, porque tudo o que leram na vida foi com os olhos de Marx. O resultado é que esses ex-marxistas continuam raciocinando dentro de um quadro de referência demarcado pelo materialismo dialético, pela luta de classes e por todos os demais conceitos clássicos de um marxismo que já não ousa dizer seu nome…
  8. Já o velho Bernanos, um profeta, advertia que jamais se deve fazer — nem mostrar — o mal aos imbecis: primeiro, porque eles têm mais facilidade do que as outras pessoas em sentir-se indignados; segundo, porque têm a propensão incoercível de reunir-se em milhares, em milhões, para reforçar mutuamente sua cólera; terceiro, porque, uma vez encolerizados por motivo justo, eles perdem todo o senso das proporções na produção de injustiças reparadoras: o destino do mundo teria sido diferente se desde o começo do século as imagens da guerra, da miséria, da fome e da exclusão social não houvessem intoxicado de justa cólera os cérebros de milhões de jovens imbecis, predispondo-os a encontrar consolo nas promessas de Lênin, Stálin, Mao Tsé-tung, Benito Mussolini e Adolf Hitler.
  9. Caso não esteja compreendido, pode-se consultar N. Berdiaev, Les Sources et le Sens du Communisme Russe(Paris, Le Seuil, 1948, Cap. I). Mas se o leitor não encontrar o livro de Berdiaev pode recorrer ao seu exemplar doméstico da Bíblia (I Cor.,: I:26), onde, segundo aprendi em C. S. Lewis, se encontra a mais precisa definição da referida classe: sofoi kata sarka, sofoi kata sarka, “sábios segundo a carne”.
  10. Marilena Chauí, “Ética e Universidade”, em Ciência Hoje(revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), vol. 18, nº 102, agosto de 1994. A frase é um tanto esquisita, mas, no conteúdo, muito elucidativa. Ela nos informa que a psicanálise e o marxismo, apesar dos enganosos dizeres nas capas dos seus livros respectivos, foram descobertas coletivas, já que as consciências individuais dos srs. Freud e Marx, fechadas em seus limites intransponíveis, jamais poderiam atinar com esse gênero de coisas. A prova irrefutável é que todo mundo já era psicanalista antes de Freud e marxista antes de Marx, entrando na história estes dois senhores apenas nos papéis de maridos enganados — os últimos a saber.
  11. Um dos muitos capítulos faltantes neste livro trataria da festiva e equivocada recepção dada nesta parte do mundo ao livro do neurologista português Antônio Damásio, O Erro de Descartes(São Paulo, Companhia das Letras, 1996) e ao de Daniel Goleman, Inteligência Emocional (trad. Marcos Santarrita, Rio, Objetiva, 1996). Ambos esses livros enfatizam uma verdade óbvia, esquecida ou desprezada pelo establishment psicológico norte-americano: o processamento das emoções é mais decisivo para um bom desempenho intelectual do que o QI. Acontece que ambos os autores, para divulgar essa idéia, recorreram ao expediente publicitário de opor sua apologia da inteligência emocional ao “racionalismo” de Descartes e Kant. Mera figura de linguagem, é claro, que não se funda numa visão historicamente fidedigna das doutrinas desses dois pensadores, mas na sua imagem popular, brutalmente simplificadora e caricatural (Descartes, racionalista em metafísica, era em ética um voluntarista bastante “irracional”; e chamar Kant de racionalista é coisa de analfabeto). No Brasil, porém, Damásio e Goleman foram levados ao pé da letra, com ingenuidade caipira (v. caderno Idéias do Jornal do Brasil, 6 de abril de 1996), daí resultando uma grossa apologia da emoção contra a razão, fundada na confusão mais burra entre as emoções e seu processamento intelectual, bem como na total indistinção entre emoção direta e emoção estética, ou imaginativa. Tudo, é claro, para lisonjear o preconceito anti-intelectual de certas faixas de público e aproveitar o sucesso do filme Razão e Sensibilidadecomo excipiente para venda de livros. Coisa, enfim, de uma baixeza inominável, que reduz o jornalismo de idéias ao nível de divulgação científica para adolescentes.
  12. Um de meus livros anteriores — Uma Filosofia Aristotélica da Cultura— já teve esse mesmo destino, embora não falasse mal de ninguém e se ativesse a inofensivas especulações em torno da lógica de Aristóteles.
  13. V. adiante o capítulo “Carta a Oxfordgrado”.
  14. É também previsível que alguns se dispensem de entrar em comentários psicológicos, não por serem especialmente discretos, mas por imaginarem, não sem alguma razão, que para sujar de vez uma reputação a rotulagem ideológica é muito mais eficaz do que a difamação pessoal direta e possui ainda a vantagem de parecer coisa intelectualmente elevada. Uma boa parte do público não tem, de fato, a menor condição de conceber, sob o nome de “análise crítica”, nada mais inteligente do que o cálculo dos coeficientes relativos de progressismo e reacionarismo, do qual se obtém com precisão matemática o critério de admissão ou rejeição de um autor no círculo das pessoas de bem. , adiante, o capítulo “Fanatismo sem nome”.
  15. Osman Lins, Do Ideal e da Glória. Problemas Inculturais Brasileiros (2a. ed., São Paulo, Summus, 1977) e Evangelho na Taba. Outros Problemas Inculturais Brasileiros (São Paulo, Summus, 1978).
  16. Daí as reações de virginal escândalo dos nossos letrados às críticas mordazes — e, no conteúdo, nada mais que justas — feitas por Bruno Tolentino a uma tradução de Augusto de Campos. Comento isto mais adiante.
  17. Ademais, se O Imbecil Coletivo provocar irritação e desagrado, não será por muito tempo: não somente ele será esquecido em breve, como também passará, junto com ele, o interesse do público pelos miúdos personagens de que trata. E, para completar, nem eu mesmo voltarei ao assunto, de vez que, se a Providência não dispuser em contrário, encerrarei com este livro minha carreira de polemista, para dedicar-me doravante a trabalhos teóricos sobre temas que não despertarão neste país a menor comoção.

Descartes e a psicologia da dúvida

Olavo de Carvalho

Colóquio Descartes da Academia Brasileira de Filosofia
Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, 9 de maio de 1996

Descartes e a psicologia da dúvida1

La verdad es lo que es
y sigue siendo verdad

aunque se piense al revés.

(ANTONIO MACHADO)

Descartes assegura-nos que a seqüência das Meditações que o leva do questionamento do mundo exterior à descoberta do cogito não é apenas um modelo lógico, uma articulação hipotética de pensamentos pensáveis, mas uma experiência vivida, uma narrativa de pensamentos pensados. Mas terá sido boa a sua auto-observação? Podemos dar por suposta a fidedignidade do seu relato? Mais ainda, podemos dar por suposta a universalidade paradigmática dessa seqüência de pensamentos, admitindo que se dará de modo igual ou semelhante, com semelhantes ou iguais resultados, em todo homem que se disponha a reexaminar desde os fundamentos o edifício de suas crenças? Será possível a um homem realizar experiência similar, ou, ao contrário, foi Descartes quem experimentou de fato coisa totalmente outra, deixando-se enganar e tomando por descrição o que é pura invenção?

Que é possível duvidar das nossas sensações, das nossas imaginações e dos nossos pensamentos, é coisa que qualquer um de nós pode testemunhar. Que é possível, a rigor, colocar todo o orbe das nossas representações entre parênteses, reduzindo o “mundo” a uma hipótese evanescente, é também certo.

Mas, após ter feito essas operações, Descartes assegura-nos ter encontrado, no fundo, a certeza da dúvida: a dúvida é um pensamento, e, no instante em que a penso, não posso duvidar de que a penso. A autoconfiança na solidez metafísica do ego pensante surge como poderosa compensação psicológica para a perda da confiança na realidade do “mundo”.

Só que, tão minucioso em descrever os pensamentos que antecedem o estado de dúvida, Descartes é estranhamente evasivo quanto ao estado de dúvida mesmo. Na verdade, ele não o descreve: afirma-o, apenas, e, saltando imediatamente da descrição para a dedução, passa a tirar as conseqüências lógicas que a constatação desse estado lhe impõe.

Façamos nós o que não fez Descartes. Tentemos refrear o automatismo do impulso conseqüencialista, e detenhamo-nos por um momento na descrição do estado de dúvida. Em que consiste esse estado?

Em primeiro lugar, não é um estado — uma posição estática em que um homem possa permanecer inalteradamente, como permanece triste ou absorto, imóvel ou deitado. É uma alternância entre um sim e um não, uma impossibilidade de deter-se num dos termos da alternativa sem que o outro venha disputar-lhe a primazia. Pois o sim ou o não, tão logo aceitos como definitivos, eliminariam imediatamente a dúvida, que é feita de sua coexistência antagônica e de nada mais. Mas esse antagonismo não é estático: é móvel. A mente em dúvida passa incessantemente de um dos termos ao outro, sem encontrar um ponto de apoio onde possa repousar e “estar”. Só que, como cada um dos termos é a negação do outro, a mente não poderia deter-se nele sem, por um instante, negar o outro: e, precisamente nesse instante, não está em dúvida — está afirmando ou negando, afirmando uma coisa e negando a outra, ainda que não consiga perseverar na afirmação ou na negação sem que lhe ocorram mil e uma razões para abandoná-la. E, no instante em que nega ou afirma, a dúvida suprime-se a si mesma como dúvida, e luta para se estabelecer como afirmação ou negação; mas fracassa, e é só neste fracasso que consiste precisamente, a dúvida. Segue-se a conclusão fatal: é impossível uma dúvida que não se ponha em dúvida a si mesma, uma dúvida que, suspendendo a alternância, se imponha como “estado” e permaneça. Ao tomar a dúvida como um “estado”, omitindo que se trata de uma alternância entre dois momentos antagônicos, Descartes a coisifica e a toma como uma certeza: “Não posso duvidar de que duvido no instante em que duvido”, frase que Descartes toma como expressão da mais patente obviedade, manifesta no entanto um contra-senso lógico e uma impossibilidade psicológica. Mais certo é: ao duvidar, ponho tudo em dúvida, inclusive a dúvida mesma. A dúvida não é um estado: é uma sucessão e coexistência de estados antagônicos, é um não poder estar2.

O que leva Descartes ao erro é o fato de que confunde a dúvida com a negação, mais propriamente com a negação hipotética. Posso efetivamente produzir uma negação hipotética e repeti-la indefinidamente. Posso mesmo ampliá-la — hipoteticamente, é claro — até que abranja a totalidade do que julgo saber. Mas não posso “duvidar” do meu saber sem ao mesmo tempo afirmá-lo reiteradamente, na medida em que só assim poderei intercalar às suas afirmações sucessivas as sucessivas negações, e a estas as afirmações, cujo círculo vicioso constitui a dúvida.

Colocado nesses termos, o cogito cartesiano se reduz apenas a uma nova e aliás bastante nebulosa enunciação do antigo argumento de Sócrates contra o céptico, de que não se pode negar sem afirmar a negação, sem afirmar portanto alguma coisa. Mas, vistas as coisas assim, a bem pouco se reduz a descoberta cartesiana: longe de ter instaurado um novo fundamento, crítico ou negativo, para o mundo do saber, ela não fez senão demonstrar novamente, pelas vias tortuosas de uma falsa autodescrição psicológica, o primado lógico da afirmação sobre a negação. Só que o reconhecimento deste primado é, no mesmo ato, a negação da dúvida como ato fundante. A descoberta de Descartes é uma não-descoberta, é a descoberta da impossibilidade de descobrir o que quer que seja por uma via em cuja definição mesma está contida uma autocontradição intolerável3.

Mas, com isto, demonstrei apenas que a dúvida, como tal, não pode servir de fundamento crítico; não expus ainda os fundamentos que, por sua vez, possibilitam a dúvida. E este é o ponto decisivo, pois, se há um algo “por trás” da dúvida, é este algo, e não a dúvida, que constitui o ponto de apoio firme que Descartes buscava, e que acreditou ingenuamente ter encontrado na constatação da dúvida.

Descartes diz que a dúvida é uma certeza no instante em que é pensada. Mas isto é falso: o que é certeza é a reflexão posterior que afirma a realidade da experiência da dúvida. No instante mesmo da dúvida, o que há é, como vimos, uma alternância entre afirmação e negação, e portanto a impossibilidade mesma de afirmar um estado qualquer, se por estado entendemos, como se deve entender, a coincidência entre um juízo de fato e o sentimento que o valoriza negativa ou positivamente, como ocorre na tristeza, na raiva, na pressa, na esperança etc. A dúvida não é um estado, pela simples razão de que nela o sentimento, que pode ser de ansiedade, de esperança, de curiosidade, etc., não coincide com um juízo determinado, mas provém justamente da impossibilidade de afirmar ou negar um juízo. Ela é antes um momento de suspensão entre estados, um vazio agitado que contém em germe vários estados possíveis — pelo menos dois — e não se resolve em nenhum deles sem suprimir-se a si mesma. O homem portanto nunca “está” em dúvida: apenas passa por ela, precisamente como transição entre estados. É só quando a dúvida deixa de ser vivência presente para passar a ser objeto de reflexão que surge esta certeza puramente retrospectiva e narrativa: “Não consegui, até agora, estabilizar-me na negação ou na afirmação.” Existe, portanto, não só distinção lógica como também separação de fato entre a dúvida enquanto vivência presente e a dúvida enquanto objeto de recordação e reflexão — e é esta que é certa e indubitável,4 não aquela, embora Descartes tome uma pela outra e nos repasse como evidência intuitiva direta o que é fruto de reflexão posterior. É somente esta reflexão que, dando um nome à alternância vivenciada, confere artificialmente a unidade de um “estado” ao que é na verdade uma sucessão de estados que se suprimem mutuamente ou uma coexistência de estados puramente potenciais, dos quais cada um só se pode atualizar à custa da exclusão dos outros. Conferindo ao vazio da alternância a consistência positiva de um estado, no mesmo instante Descartes transforma a dúvida em mera negação hipotética, tomando então como estado psicológico efetivo o que é apenas o conceito lógico de um estado possível.

Para piorar ainda mais as coisas, na afirmação reflexiva da realidade da dúvida estão pressupostas duas crenças: a crença na continuidade da consciência entre a dúvida e a reflexão, e o conhecimento da distinção entre verdade e falsidade.

1º Aquele que reflete sobre a dúvida sabe que ainda é “o mesmo” que teve a dúvida; e se o ato de duvidar é formalmente distinto do ato da reflexão, o eu consciente, ao refletir, sabe que é sujeito de dois atos distintos — distintos logicamente e distintos no tempo —, donde se conclui que é esse eu é logicamente e temporalmente anterior aos dois atos e independente deles: não é o ato da dúvida que funda a certeza do eu, mas, ao contrário, a certeza da continuidade do eu é a garantia única de que a dúvida foi realmente vivenciada. Pois a dúvida, se não recebesse da reflexão posterior o nome que lhe confere a aparente unidade de um estado, acabaria por se reduzir a mera sucessão de negações e afirmações irrelacionadas, sucessivas alucinações de um sujeito esquizofrenicamente plural, destituído do império de si e dissolvido no fluxo atomístico dos seus estados. Para poder ser objeto de reflexão, a dúvida recebe a artificial unidade de um nome; e se logo em seguida a mente se esquece de que essa unidade é um mero ente de razão e a toma como unidade substancial, então se trata de um desses casos de auto-hipnose reflexiva em que o nome produz magicamente, a posteriori, a realidade do seu objeto.

2º Sendo formalmente distintos, os dois atos são distintos também empiricamente, isto é, no tempo: primeiro duvido (isto é, vou e venho entre sucessivas afirmações e negações), depois reflito que duvidei (isto é, unifico sob o nome “dúvida” essa multiplicidade de vivências antagônicas). Mas a unidade do eu, que está subentendida nessa reflexão mesma, e portanto na certeza da dúvida, é aquela continuidade no tempo, que se denomina memória e recordação: a memória, estando pressuposta na reflexão, é lógica e temporalmente anterior a ela: longe de poder fundar a nossa confiança na memória, é a dúvida que depende dela para ter um fundamento lógico e para tornar-se possível no campo dos fatos psicológicos.

Mas, se a dúvida depende da garantia que lhe é dada pelo eu e pela memória, então ela não tem nenhum poder fundante. É coisa fundada, é certeza secundária e derivada, é obra de um agente mais profundo e mais inquestionável.

3º Porém, a dúvida subentende algo mais. Como é possível duvidar? A possibilidade da dúvida repousa inteiramente no nosso poder de conceber que as coisas sejam de um outro modo que não aquele com que se nos apresentam num dado momento. A dúvida assenta-se numa suposição; ela requer e subentende o poder de supor. Ora, tendo as coisas se apresentado ao sujeito de um certo modo, e não de outro, este outro e suposto modo só pode apresentar-se à consciência como obra do sujeito mesmo, como produto de imaginação ou conjetura. Para saber que duvida, é necessário então que o sujeito saiba que supôs; que se reconheça portanto como sujeito não apenas de dois atos, como acabamos de ver, mas de três: o ato de duvidar, o ato de refletir a dúvida e, antes de ambos, o ato de supor ou imaginar. A imaginação é, somando-se à continuidade do eu e à memória, um terceiro requisito e um terceiro fundamento da possibilidade da dúvida.

4º Mas, se o sujeito não percebesse nenhuma diferença entre as coisas tal como se lhe apresentam e as coisas tal como as supõe, não poderia tomar consciência de que supôs, pois não haveria para ele diferença entre supor e perceber. Eis, portanto, que a consciência dessa diferença é, ela também, um requisito e um fundamento da possibilidade da dúvida. Para duvidar, necessito distinguir, na representação, o dado e o construído, o recebido e o inventado, aquilo que me vem pronto e aquilo que faço e proponho. Logo, está aí pressuposta a consciência da diferença entre o objetivo e o subjetivo e, portanto, a crença na objetividade do objetivo e na subjetividade do subjetivo.

5º Mais ainda: se o sujeito confundisse esses dois domínios, acreditando que supôs o percebido e percebeu o suposto, teria perdido a continuidade da consciência e da memória, que é, como vimos, condição de possibilidade da dúvida. Logo, a dúvida sobre a realidade do mundo não pode se apresentar como simples escolha entre duas possibilidades de valor igual e idêntica origem, mas sempre como escolha entre um dado e um suposto, entre o recebido e o inventado.

5º Não é possível portanto duvidar da realidade do mundo sem saber de antemão que esta dúvida, e a suposição que a fundamenta, são puras invenções do próprio sujeito, e que esta invenção é formal e temporalmente distinta do ato de perceber, bem como do conteúdo percebido. A dúvida é uma suposição de que um mundo inventado é mais válido que o mundo recebido, suposição que se funda por sua vez na consciência de inventar, de supor e de fingir. A dúvida quanto à realidade do mundo é sempre e necessariamente um fingimento, e quanto mais o fingidor se esforce para levar esta dúvida a sério, para torná-la cada vez mais verossímil, tanto mais o brilho mesmo da performance atestará a diferença entre o verossímil e o verdadeiro, assim como, no teatro, concedemos nossos aplausos ao ator precisamente porque sabemos que ele não é o personagem.

6º Mas esta consciência de fingir seria impossível se não se fundasse, a seu turno, na consciência da diferença entre pensar e ser, imaginar e agir. Pois, subentendida a consciência da diferença entre supor e perceber, paralelamente à consciência que o eu tem de suas próprias ações, não haveria como negar que o eu pensante tem consciência da diferença entre ação suposta e ação realizada, de vez que a ação realizada não é somente pensada, mas percebida fisicamente, exatamente como os seres do mundo sensível. Não posso portanto colocar em dúvida os seres do mundo sensível sem no mesmo ato colocar também em dúvida os atos físicos que me vejo realizando, como por exemplo os movimentos de minhas mãos e pernas. Mas, ao mesmo tempo, não os posso colocar em dúvida sem questionar, no mesmo instante, a continuidade e unidade do eu, a qual no entanto está pressuposta, como vimos, no ato mesmo de duvidar do que quer que seja. Eis aí outro motivo pelo qual a dúvida, sendo dúbia por sua natureza mesma, não poderia instalar-se senão pondo-se também a si mesma em dúvida, isto é, sabendo-se fundada numa suposição e num fingimento voluntário. Eis também por que a dúvida é tão rara e dificultosa: ela implica um movimento que se desmente a si mesmo, que coloca em questão as condições mesmas que o possibilitam5.

7º Finalmente, a dúvida só é possível quando se sabe que algo, seja no percebido, seja no suposto, é insatisfatório, que não atende a um requisito fundamental de veracidade. Mas como poderia o sujeito dubitante exigir veracidade de suas suposições ou percepções se não tivesse nenhuma idéia a respeito da veracidade? Esta exigência seria inconcebível sem uma idéia da verdade, ainda que como mero objeto imaginário de desejo. O desejo de fundamento pressupõe no sujeito ao menos a possibilidade de imaginar que seus conhecimentos possam ser mais seguros do que realmente ele sente que o são num dado momento, ou seja, a verdade como ideal e a opção pela verdade. Mas, ao mesmo tempo, vimos que o sujeito não conhecia esta verdade somente como ideal abstrato, mas já tinha idéia de pelo menos uma diferença efetiva entre verdade e falsidade: a diferença entre o dado e o suposto, acompanhada da consciência verdadeira de que o suposto não foi dado, nem dado o suposto.

A dúvida ergue-se, assim, sobre todo um edifício de dados e pressupostos: longe de ser logicamente primeira, ela é um produto requintado e elaboradíssimo de uma máquina de saber. Longe de ter um poder fundante, ela não é senão uma manifestação mais ou menos acidental e secundária de um sistema de certezas.

Só que, se assim é, se o primado da dúvida metódica é apenas o primado de um equívoco, então ficam sob suspeita, igualmente, o primado kantiano do problema crítico, o dogma positivista da impossibilidade de obter certezas metafísicas válidas, e muitas outras crenças que o homem de hoje toma, mesmo a contragosto, como verdades óbvias e patentes. Mas isto já é matéria para outras comunicações, que serão apresentadas em outras oportunidades. Muito obrigado.

 

NOTAS

  1. Primeira parte — resumida — do texto “Duvidar da Dúvida e Criticar o Criticismo: Preliminares de um Retorno à Metafísica Dogmática”, distribuído aos alunos do Seminário Permanente de Filosofia e Humanidadesem março de 1996.
  2. Ao dizer “sucessão e coexistência”, pareço estar pronunciando um monumental contra-senso. Mas o sim e o não que compõem a dúvida são coexistentes sob um aspecto, sucessivos por outro. Coexistentes logicamente como termos de uma contradição, são sucessivos psicologicamente, isto é, entram no palco da consciência de modo cíclico, rotativo: um entra, o outro sai, como o dia e a noite, que coexistem no céu e se sucedem num ponto da terra.
  3. Uma primeira versão desta análise da dúvida cartesiana encontra-se em meu livreto Universalidade e Abstração e Outros Estudos(São Paulo, Speculum, 1983), sob o título “O cogito cartesiano à luz da psicologia espiritual”.
  4. “Certo e indubitável” ou “incerto e duvidoso” são predicados que não se aplicam ao fato como tal, mas aos juízos que fazemos a respeito dele.
  5. Ela é uma torção do aparato mental humano, um gesto doloroso que se auto-suprime, e que raros homens têm condição de suportar por muito tempo sem grave risco para sua integridade psicológica. A possibilidade de assumir esse risco e vencê-lo repousa na existência de um corpo de crenças tão arraigado, tão sólido, que o homem possa se dar o luxo de sair dele numa viagem mental, seguro de reencontrá-lo na volta. Essa possibilidade, por sua vez, só se cumpre nas sociedades e nas culturas urbanas altamente diferenciadas e estáveis, que dão ao indivíduo pensante o espaço para inocentes vôos de imaginação que em nada afetarão sua conduta de cidadão ou de súdito honrado e cumpridor de seus deveres; que lhe dão, mais ainda, espaço livre para pensar uma coisa e fazer outra, para cultivar aquela hipocrisia defensiva que é notoriamente ausente entre os primitivos, e que, para o mal e para o bem, é uma sólida proteção da consciência individual contra a tirania do discurso coletivo. Daí a coexistência pacífica entre a audácia revolucionária da dúvida cartesiana e o conservadorismo da “moral provisória” que a possibilita.

 

APEIROKALIA  

Translated by Pedro Sette Câmara

The general understanding of the term ‘higher education’ is that it basically means the training for the well-paid professions. From this concept we may conclude, without the slightest chance for error, that every normal human being is able to receive it and that any elitism whatsoever would be unjust, even when the case is not one of intentional discrimination but of unequal distribution of luck. However, if we are to understand by the name of ‘higher education’ the overcoming of the intellectual limitations of the environment, the access to a universal perspective of things, and the realisation of the highest spiritual qualities a human being possesses, then we will find that many candidates have a personal impairment that, sooner or later, will end up excluding them and assuring that ‘higher education’ – in the strong and not in the administrative sense – continues to be, by their own right, a privilege of few.

This impairment, thanks be to God, is not of economic, social, ethnic or biological order. It is one of those human evils which, like cancer and matrimonial quarrels, is more or less fairly and equally distributed among classes, races, and genders. It is the only kind of imperfection that could justly be invoked as the cornerstone of an elitist selection. Anyway, that would be totally unnecessary, because it makes a selection by itself, and in such a natural and spontaneous way that the excluded cannot even imagine what they have lost, and are actually quite happy about their situation. Thus, perfect harmony reigns among the happy few and the unhappy many, safeguarded by the impassable distance which separates them.

The impairment to which I refer is not material, nor is it quantifiable. Statistics do not include it in their calculations, and the government completely ignores it. Nonetheless it exists, has a name and has been known for more than two millennia. A competent mind can recognise its presence immediately, by an intuitive act of perception as simple as differentiating day and night.

The Greeks called it apeirokalia. It means simply ‘the lack of experience of the most beautiful things’. By this term it was understood that the individual who, in certain stages of his development, had been deprived of certain interior experiences that woke on him the desire for beauty, goodness, and truth, would never be able to understand the conversations of the sages, no matter how much effort he put in learning Sciences, Letters and Rhetoric. Plato, for instance, would say that this man is a prisoner of the cave. Aristotle, in a more technical language, would say that rites are not intended for the transmission of specific teachings to men, but to cause on their soul a deep impression. Anyone who is aware of the importance Aristotle gives to the imaginative impressions will understand the extreme seriousness of what he means: these impressions performed upon the soul an illuminating and structuring impact. In their absence, intelligence obscurely drifts about the multitude of sensible data, without grasping the symbolic nexus which, bridging the gap between abstractions and reality, prevents our reasoning from dissolving into a maddening combinatory of empty syllogisms – the pedant expressions of the impotence to know.

Of course, the inner experiences which Aristotle refers to are not exclusively granted by ‘rites’ in the strict and technical understanding of the term. Theatre and poetry also can open souls to an inflow of the above. To music – to certain music – we cannot deny the power to generate a similar effect. The simple contemplation of nature, a providential happening, or, for more sensitive souls, even certain states of loving rapture, when associated with a strong moral appeal (remember Raskolnikov, before Sonia, in Crime and Punishment), can put the soul in a certain state of bliss that frees it from the cave and from apeirokalia.

However, it is much more likely that the most intense experiences a man may have during his life will drive him away from what Aristotle had in mind. For what characterises the life-giving impression the philosopher mentions is precisely the impossibility to separate, in their content, truth, goodness and beauty. From Plato to Leibniz, there was not a single philosopher worthy of the name who did not most emphatically proclaim the unity of these three aspects of Being. And here begins the problem: most men never had an experience in which beauty, goodness and truth did not appear separated by tremendous abysses. Such men are the victims of apeirokalia – and among them we may count some of the most influential intellectuals in the world of today.

Unhappily, the number of these victims seems to be destined to increase. Back in 1918, Max Weber already pointed the loss of the unity of ethical-religious, aesthetical and cognitive values as prominent traces of the time. Goodness, beauty and truth became more and more distant every day, and because of that

“the most sublime values have retreated from the public life, either to the transcendent world of mystic life, or to the fraternity of personal and direct human relationships… It is not by chance that today, only in the small and intimate circles, in personal human situations, there remains something that may correspond to the prophetic spirit (pneuma) which in ancient times would sweep large communities like a fire”.

The two fortresses of the sublime that Weber mentions did not last for long: mystic life, harassed by the tide of fake esoterism that stole its language and prestige, ended up recoiling to silence, off the mainstream, in order not to be contaminated by profane babble. Intimacy, assaulted by the media, violated by the State’s interference, turned into the object of hysterical exhibitionism and sadic sneaking, disowned of its language by the commercial and ideological exploration of its symbols, simply no longer exists.

The whole of literature in the twentieth century reflects this state of affairs: first the ‘incommunicability’ of the egos, then the suppression of the ego itself – ‘character dissolution’. But many things happened since Weber. Nearing the end of the millennium, what’s understood by ‘mystic’ is a cerebralism of philologists; by love, the carnal contact people unknown to each other have through a piece of rubber. The three supreme values, at this point, are not only independent, but antagonistic. Beauty isn’t just disconnected from goodness: it is definitely bad. Goodness in its turn seems to be hypocritical, fakely sentimental and stupid. Truth is ugly, meaningless and depressing. Aesthetics celebrate vampires, the death of the soul, cruelty, the man who shoves his arm up to the elbow inside another man’s anus. Ethics is reduced to an accusatory discourse of each one against their own dislikings, sided by the most cynical self-indulgence. Truth is nothing but the statistic consensus of academe corrupted to their hearts.

Under these conditions, it is truly a miracle that an individual can escape for instants from the led dome of apeirokalia, and another miracle that, upon his return to the nightmare he calls “real life”, these instants do not seem to him like a dream that he should better not mention in public.

But nothing will prevent a writer from speaking, in his own works, to the survivors of the spiritual doom of the twentieth century, hoping that they exist and that they are not so few. Overwhelmed by the combined harassment of banality and brutality, they can still suspect that in their hidden dreams and hopes there is a truth more certain than everything the world today imposes upon us with the label of ‘reality’, guaranteed by Science and the Food and Drug Administration. It is for those that I speak, aware that they will not be found in larger numbers among the educated than among the poor and the forsaken.

 

NOTES

 

  1. Weber, Max. Org. H. H. Gerth and C. Wright Mills. Trans. Waltensir Dutra, rev. by Fernando Henrique Cardoso, 5th ed. “A ciência como vocação”. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982. p.182