O Milagre da Solidão

Olavo de Carvalho

Bravo! nº 13, outubro de 1998, edição de primeiro aniversário

Lima Barreto foi, com Cruz e Sousa e Machado de Assis, um dos meus heróis carlylianos de juventude — “the hero as man of letters” —, o tipo do sujeito que pela força da auto-educação se eleva acima do meio opressivamente burro e se torna um educador de seus opressores.

Que os três fossem pretos era coisa que não me comovia especialmente. A discriminação que você sofre como parte de um grupo tem sempre o contrapeso da solidariedade entre a multidão de coitados: quanto mais o expelem de um grupo, tanto mais você se sente integrado no outro, e sempre resta a esperança coletiva de que os oprimidos de soje sejam os opressores de amanhã. Ruim, mesmo, é a discriminação que você sofre sozinho, sem o consolo da palavra nós e das ideologias salvadoras, rejeitado, graças ao estima da diferença, mesmo pelos seus companheiros de raça, de religião, de bairro, de geração. Aí você não tem para onde correr. Você é o próprio Cristo na cruz, abandonado por todos, desprovido de semelhantes. Nenhuma ONG vai fazer lobby em seu favor, nenhuma assembléia da Unesco vai denunciar que você é vítima de uma grossa sacanagem, a rainha da Inglaterra não vai estipendiar nenhuma fundação para socorrê-lo, nenhum editorial do The New York Times vai dizer que você é lindo e maravilhoso como o João Pedro Stédile. Para todos os efeitos, você está excluído até mesmo da classe dos dscriminados. Você é aquela mancha de meio milímetro no canto de uma foto do Sebastião Salgado.

Só o sujeito que passou por essa situação sabe que existe, no mundo, um tipo de mal que supera tudo o que a mídia denuncia, e que pensando bem, é a raiz da porcaria universal.

Explico-me. O herói do primeiro romance de Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, não sofre somente porque é preto e pobre. Ele sofre porque é um sujeito honesto num meio de vigaristas, um autêntico homem de letras num meio de farsantes, um gentleman no meio de carreiristas vorazes e grosseiros. Enquanto preto e pobre, consolava-se olhando a multidão de seus companheiros de infortúnio. Mas quantos semelhantes teria ele nas qualidades excelsas que o destacavam e o isolavam? Quantos irmãos tinha Cristo na cruz? A parte de Isaías que mais dói não é sua inferioridade social: é sua superioridade moral.

Mas Isaías traz ainda a marca do ressentimento racial. Ao escrevê-lo, Lima Barreto sente-se ainda o membro de uma determinada comunidade excluída e fala em nome dela. O livro resvala às vezes para o desabafo direto e, quanto mais se aproxima de uma cópia literal da realidade empírica, mais perde em altitude. O próprio Isaías também é de pouca estatura: ele é melhor que os outros, não mais forte: débil e tímido, reduz-se a uma vítima passiva das circunstâncias, tudo se resolve numa horizontalidade deprimente e, como dizia Antonio Machado, “cuán dificil es/ cuando todo baja/ no bajar también”!

No romance seguinte, Lima Barreto abdica de toda referência a uma injustiça social presente. O major Quaresma não pertence a nenhum grupo discriminado.

Não tem nenhum handicap que o identifique a esta ou àquela multidão de vítimas. Ele é auto-suficiente na luta pela vida. É mais forte, mais inteligente e mais valente que seu antagonista, o presidente Floriano. Quaresma não é discriminado porque algo lhe falte, mas porque tem força de sobra e a generosidade de querer ajudar a seu povo. Este segundo herói de Lima Barreto adquire assim uma altitude que faltava a Isaías. Ele já não é o personagem de um mero drama social, mas o herói de uma tragédia. Segundo Aristóteles, é essencial que o herói trágico seja um homem poderoso e especial: fora disso suas desventuras assinalariam apenas uma conjunção acidental de circunstâncias, suprimível e sem o alcance de uma fatalidade cósmica inexplicável.

Mas a derrota do major ainda é parcialmente explicável. Ele é um gênio criativo, mas, convenhamos, suas idéias são bem esquisitas. Ele tem esse resíduo de fraqueza, a meia loucura que o coloca a meio caminho entre o herói e o anti-herói. É por esse flanco que o inimigo consegue feri-lo. A morte de Quaresma nos deprime, mas não nos escandaliza como um absurdo completo. Há nela algo de razoável: o ideal do reformador era incompatível não só com o ambiente mesquinho da República florianista, mas com a reaidade tout court.

Esse último pretexto da injustiça é enfim abolido num romance seguinte de Lima Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Gonzaga é um Policarpo Quaresma sem demência, um Isaías sem o handicap da juventude e da timidez. É um grande homem em toda a extensão da palavra — e sua vida termina no isolamento e na resignação, mas não na derrota. Solitário entre seus livros, o sábio desenganado observa o mundo com um olhar sem ressentimento nem sentimentalismo, cheio de uma compreensão serena que lembra, por mais de um aspecto, a do conselheiro Aires, mas livre daquele resíduo de negativismo schopenhaueriano que foi até o fim a marca registrada de Machado de Assis.

A trilogia barretiana mostra-nos a evolução do ideal do humano do grande escritor, retratada na gradação espiritual dos heróis: o jovem talentoso esmagado pelo mundo, o combatente exaltado e semilouco, o sábio estóico soberano e calmo que permanece de pé enquanto o mundo em torno cai. De personagem a personagem, há uma progressiva depuração e interiorização do ideal, que vai se afastando da situação empírica imediata para se tornar cada vez mais universalmente humano e, na mesma medida, se desliga de todo ressentimento coletivo para encontrar o sentido de uma vida não na vingança, mas no perdão.

O perdão, aqui, não deve ser entendido na acepção beata e sentimental, mas no sentido etimoçógico de per-donare, completar o dom: o mundo não nos persegue porque é mais forte que nós, mas porque é mais fraco. Ele nos persegue porque algo lhe falta: a sabedoria. Como no verso de Santayana: “O world, thou choosest not the better part!” . Ao superar o ressentimento coletivo, o sábio “escolhe a melhor parte” e é o único que, no fim das contas, é rico o bastante para ter o que dar. Gonzaga não é verdadeiramente derrotado. Expelido do mundo, prossegue a busca da verdade, sempre disposto a compartilhá-la com o discípulo que o procure. “The hero as man of letters”: o oprimido tornou-se educador do mundo opressor.

Juntas, as três obras maiores de Lima Barreto formam um poderoso Bildungsroman — o romance da vitória de uma alma sobre si mesma e, por meio disto, sobre o mundo(*).

A transfiguração do oprimido em benfeitor é um milagre que se repete incessantemente na história. Raramente houve um sábio, um santo, um mestre cujos prodígios de generosidade não brotassem dos extremos de discriminação e solidão padecidos na infância, vencidos e superados pela alquimia da maturidade. É a mensagem final do Rei Lear: “Ripeness is all”.

Mas isso só acontece àqueles que sofreram a discriminação sozinhos, sem ter uma raça, um partido, uma ideologia, uma ONG e fundações internacionais a que se agarrar. Quem tem essas coisas não precisa atravessar o caminho da ascese interior. Pode encontrar alívio e reconforto na ilusão de que o ódio dos vencidos é um sentimento moralmente superior ao orgulho dos vencedores. Pode escapar da solidão fundindo-se na massa vociferante dos comparnheiros de partido, sonhando morticínios justiceiros que serão, na sua cabecinha imunda, a apoteose do bem. Foi dessa ilusão sangrenta que a leitura da trilogia de Lima Barreto me libertou, mais de trinta anos atrás.

A diferença entre povo opressor e povo oprimido é apenas quesão de ocasião, e a “solidariedade com os primidos” é apenas o véu ideológico que bsuca embelezar e legitimar, de antemão, os massacres de amanhã. Esse reconforto “ético” é, no fundo, uma fuga da consciência: todo povo orpimido esconde os lances vergonhosos de sua própria história, para poder acreditar-se melhor que os opressores. Não há um só movimento de libertação e de direitos que não se funde nessa mentira essencial, em que se afiam os espetos de futuros holocaustos. Durante um milênio faraós negros arrancaram sangue do lombo semita, para terminar sendo vendidos como escravos e hoje tentar comover o mundo com seu discurso contra os judeus comerciantes de escravos. Os alemães encontraram na humilhação coletiva a inspiração para perseguir os judeus, e a fumaça do holocausto ainda santifica o fuzil isralense a cada tiro que dispara sobre um palestino armado de pedras.

Reihold Niebuhr assinalava a diferença de nível ético, estrutural e intransponível, entre o indivíduo e a comunidade. Para o indivíduo, o sofrimento pode ser o princípio da sabedoria. Para a comunidade, é o motor da violência, que puxa o carro da história na direção da fornalha ardente em cuja beirada um cartaz anuncia: “Justiça e Paz”. Em face disso, a serenidade de M. J. Gonzaga de Sá é a resposta final aos padecimentos do jovem Isaías Caminha, e o heroísmo semilouco de Policarpo é uma etapa, a ser vencida, no caminho do entendimento.


(*) É a única obra desse gênero na nossa literatura, se descontarmos a novela de Guimarães Rosa A Hora e Vez de Augusto Matraga, a que o filme de Roberto Santos deu interpretação inversa, injetando-lhe aquela mistura de negativismo brasileiro e marxismo de botequim que torna a redenção de Matraga um gesto inútil por não se enquadrar, como ato isolado, na estratégia geral do Partido.

Copiado, para a posteridade, deste blog que pode desaparecer a qualquer momento e é a única fonte deste grandioso texto em toda a internet.

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Link: O Milagre da Solidão

Escalada neofascista

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 1o de outubro de 1998

Desde a extinção da URSS, o programa da esquerda mundial resume-se nas reivindicações de homossexuais, abortistas, feministas, pedófilos e racistas do anti-racismo. Tais reivindicações podem parecer modestas em comparação com os objetivos revolucionários francamente prometéicos do velho movimento comunista, mas, quanto mais concessões essa gente obtém de uma sociedade infinitamente complacente, mais irados se tornam os seus gritos, mais vastas as suas ambições, mais profundas e temerárias suas exigências.

Os homossexuais, por exemplo, que começaram choramingando pelo direito de não ser presos pela prática da sodomia entre adultos em recinto privado, agora falam grosso em defesa da pedofilia, exigindo que não apenas seja tolerada pelo Estado, mas ensinada nas escolas. Já existe, nos Estados Unidos, uma “Associação dos Homens que Amam Meninos”, e ninguém ousa acusar os seus membros de apologia do crime, pois todo mundo sabe que, se o fizer, correrá o risco de ser espancado, preso, ou no mínimo esmagado sob as patas do lobby midiático homossexual.

Os ativistas negros, que começaram reivindicando a oportunidade de desfrutar em paridade com os brancos dos direitos e benefícios criados pela civilização ocidental, agora que os obtiveram exigem que, nas escolas, essa civilização seja abertamente condenada, e exaltadas aquelas culturas africanas que desprezavam a vida humana e lutaram de armas em punho para preservar o sistema escravista quando a Inglaterra começou a reprimir o tráfico negreiro.

Os ecologistas, que começaram bradando alertas em favor das espécies animais em vias de extinção, hoje cobram do governo a proibição de matar mesmo espécies em irrefreável crescimento quantitativo, como os coiotes, cuja proliferação apocalíptica ameaça de extinção os rebanhos de ovelhas do Estado norte-americano de Utah. Os filmes de ideologia ecológica, que começaram com idílios arcadianos entre vacas e leões para o deleite de velhinhas e criancinhas, hoje apresentam como supremo ideal moral a destruição sangrenta da humanidade por lobos e leopardos, elevados à condição de anjos vingadores a serviço de não sei qual divindade justiceira das trevas, contrafação technopop do Jeová bíblico.

Quanto às feministas, que começaram reivindicando simplesmente o direito de votar, nada revela melhor o fundo de suas ambições atuais do que esta declaração de uma amiga de Lorena Bobbit: “Cortando o pênis do marido e depois chamando uma ambulância para socorrê-lo, Lorena tornou-se um símbolo da mulher ideal do nosso tempo.” Non raggionam di lor, ma guarda e passa.

Qualquer pessoa adulta que, consciente da absurdidade grotesca desses discursos, se limite a ridicularizá-los como a meras extravagâncias inofensivas, ri apenas da desgraça de seus próprios filhos, condenados a viver num mundo onde tais caprichos delirantes serão lei e terão a maciça força policial do Estado para garanti-los. Uma amostra dos critérios morais que determinarão a vida no Estado futuro já foi dada pelo presidente Clinton, que, concedendo direito de asilo a todos os homossexuais que se sintam incomodados nas suas pátrias de origem, negou idêntico direito às mães chinesas que se neguem a abortar seus filhos, bem como aos médicos ameaçados de fuzilamento por se recusarem a praticar as cirurgias de aborto impostas pelo governo chinês: nossos filhos viverão sob a guarda de um Estado onde as fantasias do erotismo mais frívolo terão proteção oficial e a consciência moral será, no mínimo, reprimida como um desvio de comportamento.

Todo riso, aí, é no fundo apenas o risinho histérico de uma convulsão de pavor. Por toda parte, escorados numa retórica de ódio cada vez mais feroz e insano, no apoio cada vez mais global e avassalador do grande capital e da mídia milionária, bem como na cumplicidade cada vez mais cínica de autoridades oportunistas, esses movimentos espalham uma atmosfera de medo e auto-repressão obsessiva, onde o mero pensamento de desagradá-los infunde na alma do cidadão os mais sinistros presságios.

Essa atmosfera é inconfundivelmente fascista, e sua disseminação se torna tanto mais fácil quanto mais se apóia num discurso fingidamente alarmista voltado contra a ameaça de ressurgimento dos regimes nacionalistas de direita extintos 50 anos atrás – ressurgimento que tanto mais se denuncia como iminente quanto mais se tem a certeza de que as atuais condições de economia globalizada o tornam completamente impossível: açoita-se o cavalo morto para que o coice do cavalo vivo seja aceito como uma carícia.

Que é o direito?

Olavo de Carvalho

Seminário de Filosofia, 22 de setembro de 1998.

Esta aula faz parte da série Ser e Poder: Os Problemas Fundamentais da Filosofia Política, que, lecionada entre 1997 e 1998 no Rio e em São Paulo, foi transcrita das fitas gravadas e está desde então sendo preparada para publicação em livro, aos trancos e barrancos, nos intervalos de uma carreira que, porca miséria!, não se assemelha em nada à imagem do pacato estudioso entre seus livros, imagem que é precisamente a daquilo que eu sonhava ser quando crescesse e ainda, aos 54 anos, continuo sonhando. Ser e Poder constitui-se de dois blocos de investigações complementares: o primeiro consagrado à elucidação da essência e das formas do poder – a meu ver o conceito nuclear da filosofia política –; o segundo à aplicação dos resultados do primeiro para a solução de várias questões derivadas, que tomam sempre a forma da pergunta filosófica por excelência: Quid est?, “Que é?” – “Que é o dinheiro?”, “Que é a polícia?”, “Que é um banco?”, “Que é o crime?”, ao longo das quais vou elucidando cada um dos conceitos que, de maneira assimbrosamente confusa e enganosa, se usam diariamente nas discussões políticas em toda parte.

Alguns desses estudos serão estampados nesta homepage antes da publicação em livro, que se anuncia para data incerta e não sabida.

A presente lição, sem mencionar o filósofo John Rawls, mostra por que é inviável sua concepção de que o sistema democrático pode ser construído inteirinho em cima do conceito de “igualdade”. Das análises aqui apresentadas, o leitor concluirá facilmente que a igualdade jurídica, política ou social não pode ser concebida senão como a resultante acidental e aproximativa da atuação das várias forças que compõem o “sistema”. Nem é preciso dizer que a redação deste capítulo é provisória e que, até à publicação em livro, deverá sofrer acréscimos e correções.

Eu gostaria de que esse livro estivesse pronto faz tempo, pois creio que ele seria de grande utilidade para trazer um pouco de ordem e racionalidade às discussões políticas correntes, nas quais predominam cada vez mais o nonsense, a fantasia mórbida e a linguagem dupla dos manipuladores e demagogos, prenunciando aquele completo obscurecimento das inteligências que antecede as grandes crises revolucionárias. Chamado a outras tarefas mais urgentes, de ordem jornalística e pedagógica, que as condições políticas do momento impõem como deveres indeclináveis, não abandonei este trabalho, mas tive de passá-lo para a marcha lenta. Outro tanto aconteceu com Ser e Conhecer, cujos rascunhos já alcançam 700 páginas e aguardam, em estado de mixórdia, que o autor tenha tempo de os corrigir. Alguns de meus amigos dizem que sacrificar assim a obra maior em favor de urgências do dia é um pecado contra a santidade da vocação. Mas o contrário seria um pecado contra a caridade. Afinal, como dizia Yeats, há momentos em que o escritor tem de escolher entre buscar a perfeição da vida ou a da obra: se escolha a da obra, faz um pacto com o diabo. Felizmente, há também ocasiões em que essa oposição dilacerante se resolve no acordo feliz de vocação e circunstância (para usar os termos de Julián Marías). Vivo na esperança de que uma dessas ocasiões se apresente logo. – O. de C.

 

          Se o poder, como se viu na Primeira Aula, é possibilidade concreta de ação, que pode ser o direito senão a garantia que alguém, de fora, oferece ao exercício de um poder? “Tenho o direito” de expressar minha opinião quando alguém me dá ou ao menos me promete as garantias necessárias a que eu possa expressá-la. Suprimir essas garantias é cercear o direito à livre expressão, o que mostra que a distinção corrente entre direitos e garantias é apenas um formalismo elegante destinado a ilustrar o fato de que nem todo direito que se proclama é direito efetivo. Direito e garantia não são espécies realmente distintas, mas uma só espécie acompanhada de dois acidentes: quando a garantia é ainda uma promessa, um compromisso, um dever assumido, ela se chama “direito”; passa a assumir o nome de garantia propriamente dita quando essa promessa se invista dos meios concretos de ser cumprida. A noção de “direito” não tem nenhuma substancialidade exceto como promessa de garantia, a garantia nada significa se não é garantia de cumprir um compromisso anteriormente firmado. Por isso, o legislador que baixe uma lei que não tem meios de ser cumprida já a revoga no ato mesmo de assiná-la: ad impossibilia nemo tenetur.

          O direito é, pois, uma espécie de garantia – de garantia do exercício de um poder – e nada mais.

          No entanto, a recíproca não é verdadeira: nem toda garantia é um direito. Suponham que eu abandone estes afazeres filosóficos e me torne assaltante de bancos. Enquanto, armado de gazua, arrebento e esvazio o cofre, meu comparsa, equipado de metralhadora, me garantirá a possibilidade de fazê-lo, mantendo os guardas à distância: isto não fará dele um guardião de meus direitos.

          Para distinguir o direito das demais espécies de garantias, é preciso destacar nele mais estes dois caracteres: areciprocidade e a socialidade. Uma garantia é um direito quando é recíproca (no sentido jurídico) e quando compromete, ao menos em princípio, toda uma sociedade, não apenas indivíduos ou grupos isolados.

          A reciprocidade jurídica, como já explicou Miguel Reale ([1]) consiste em que ao direito de um corresponde uma obrigação para outro. Veremos adiante o que é propriamente obrigação. Por enquanto tome-se essa palavra no sentido corrente e considere-se a seguinte obviedade: só cabe dizer que uma criança tem direito ao alimento se alguém, ao mesmo tempo, tem a obrigação de alimentá-la. Um direito só existe quando existe e é claramente indicado o titular da obrigação correspondente. Se este não existe ou é nebulosamente definido, o direito se torna uma garantia que ninguém garante e é mero flatus vocis.

          Sendo o direito, enfim, a garantia do exercício de um poder, e não podendo um poder ser garantido senão por outro poder mais forte, independente dele e a ele preexistente, o titular da obrigação tem de possuir necessariamente algum poder que o titular do direito, por si, não possui. Mas como o exercício do poder necessário a garantir o exercício do direito alheio deve ser ele também um direito, este deve ser por sua vez garantido por outro poder, e assim por diante, o que resultaria num recuo ad infinitum e tornaria impossível a vigência de qualquer direito se aí não interviesse, precisamente, uma segunda e mais sutil acepção da reciprocidade jurídica, que pode enunciar-se assim: para que exista direito é necessário que, se não sempre, ao menos em certos casos, o titular de um direito seja também titular da obrigação de garantir por sua vez a alguém o exercício do poder necessário a lhe garantir esse direito. Assim, por exemplo, a massa dos cidadãos tem o direito à proteção policial somente na medida em que tenha também algumas obrigações que garantam à autoridade policial o exercício de suas funções, como por exemplo a obrigação de pagar os impostos com que será sustentada a corporação dos policiais.

          À reciprocidade do primeiro tipo chamarei direta; à do segundo, indireta. A reciprocidade jurídica direta existe somente entre os titulares tomados dois a dois: dois indivíduos, dois grupos, duas empresas, um comprador e um vendedor, pai e filho, etc. A reciprocidade indireta, pela sua própria natureza, só se realiza através da complexa rede de obrigações e direitos que constitui a totalidade do sistema jurídico vigente numa dada sociedade. Isto constitui precisamente o segundo caráter específico do direito, que é a sua socialidade: não há direito fora do sistema jurídico em que se expressa a totalidade das garantias e obrigações vigentes numa dada sociedade. Não há direito isolado, solto no ar, fora da sustentação do sistema. ([2])

          A reciprocidade direta equivale estruturalmente a uma simples proporção matemática: a/b = x/y, quer dizer: a tem o direito b na exata medida em que x tenha a obrigação y. A fórmula da reciprocidade direta é portanto a perfeita equivalência, ou igualdade quantitativa, de um direito e de uma obrigação, sem sobras nem faltas: os filhos sob a guarda da mãe divorciada têm direito a uma pensão alimentícia de x reais na medida exata em que o pai divorciado tem a obrigação de lhes pagar a mesmíssima quantia, nem mais nem menos. Nos casos em que o direito em questão não possa ser expresso quantitativamente, o problema do juiz – o problema da justiça – será encontrar a mais perfeita equivalência possível entre valores qualitativos. Mas, seja pelo cálculo exato das quantidades, seja pelo equilíbrio ideal das qualidades, a reciprocidade direta se resume sempre e somente na equivalência, ou seja, na idéia de igualdade quantitativa e de nivelamento das diferenças.

          Nada disso ocorre ou pode ocorrer na reciprocidade indireta, onde só por uma raríssima exceção o direito garantido pode equivaler, quantitativamente, à obrigação que o titular desse direito tem para com a autoridade que o garante. Só para dar um exemplo estridente: se, dos impostos totais que o Estado recolhe de um cidadão, digamos, mil reais num ano, somente a décima parte – cem reais – vai para a manutenção dos serviço público de assistência médica, isto não quer dizer que esse cidadão deva ter direito a somente cem reais de assistência médica por ano.

          Se a reciprocidade direta consiste em equivalência e nivelamento, a indireta, ao contrário, consiste precisamente em diferenças e desníveis que não podem ser compensados um a um e que, à medida que se sobe de plano a plano na ordem da complexidade e abrangência das relações sociais, vão aumentando conforme as quantidades cada vez maiores de poder necessárias a dar garantias aos direitos de grupos cada vez maiores de pessoas, de modo que só se pode reencontrar algum tipo de unidade, equivalência ou proporção no nível último, isto é, no nível do sistema total, da vida jurídica de toda a sociedade.

          É evidente, também, que a reciprocidade direta, abrangendo seus titulares dois a dois, não existe fora da indireta, ou seja, fora do sistema. A reciprocidade direta é direito abstrato ou potencial, que só se adquire existência concreta na vida do sistema total. Por outro lado, a rede das reciprocidades indiretas de nada valeria se não pudesse assegurar entre os membros da sociedade o predomínio do direito nas suas relações de reciprocidade direta, isto é, o reino da equivalência.

          Aí, porém, surge um problema.

          Como garantia é exercício efetivo do poder do homem poderoso para assegurar a um menos poderoso a possibilidade de exercício do poder que lhe cabe, não apenas o sistema jurídico total é hierárquico em si, no sentido lógico de um sistema dedutivo que desce das normas fundamentais às normas derivadas (na acepção de Kelsen), mas, como prática e realidade ele só existe enquanto aspecto e expressão do sistema total de poderes, sendo portanto duplamente hierárquico.

          Hierarquia é subordinação do múltiplo ao uno. Enquanto realidade agente, imbricada no sistema total de poderes, o sistema jurídico é unificação hierárquica de múltiplos estratos de obrigações e garantias, umas subordinadas às outras conforme sua maior ou menor importância para o funcionamento do sistema como um todo. Nesse sentido, a regra máxima do sistema é a sua própria soberania: não há direito acima do sistema total de direitos e garantias, ou, em outras palavras, nenhum direito isolado ou nenhum grupo de direitos isolados pode prevalecer sobre o sistema total que os garante a todos.

          Mas, se a rede de reciprocidades indiretas que constitui o sistema total é governada pelo princípio de subordinação e unidade vertical, e se cada direito garantido pela reciprocidade direta é regido pelo princípio de equivalência ou nivelamento, a contradição entre o direito como sistema total e o direito como norma das relações de reciprocidade direta só poderá ser eliminada numa sociedade que logre produzir a perfeita identidade entre a hierarquia vertical de poder e a igualdade entre os indivíduos. Isso é, no entanto, impossível não apenas na prática, mas até mesmo em teoria, de vez que, o direito sendo a possibilidade do exercício de um poder, a perfeita igualdade de direitos exigiria uma distribuição igualitária das possibilidades de exercício do poder, o que contradiz a idéia mesma da estrutura hierárquica necessária à manutenção do sistema e das garantias.

          Donde se conclui que o princípio da igualdade perante a lei, se tomado em sentido literal, plano e atomístico, considerando apenas os indivíduos como entidades numericamente distintas e qualitativamente idênticas, contradiz a idéia mesma de lei como obrigatoriedade concreta de respeitar os direitos.

          Nenhuma sociedade existente escapou dessa contradição, nem lhe escapará qualquer sociedade que porventura venha a existir.

          A contradição entre o direito como sistema e o direito como norma das relações entre indivíduos não tem solução lógica, nem deve ter, porque ela é constitutiva da própria vida social, onde cada indivíduo é ao mesmo tempo totalidade e parte em dois diferentes planos, sem poder reduzi-los a um só, o que implicaria a perfeita e impossível identidade da sua individualidade corporal com o seu lugar e função na sociedade, ou, em outras palavras, a identidade final de natureza e sociedade. A justiça como ideal social consiste portanto apenas em reduzir essa contradição ao mínimo tolerável, e não em buscar extirpá-la. Não é totalmente exato dizer que a justiça humana é imperfeita, pois não há imperfeição em uma coisa ser o que é, e a justiça humana tem a perfeição do arranjo provisório e da arte, indefinidamente variável e jamais esgotada, e não a da norma ideal eterna que ela, de algum modo imita e na qual se inspira. Toda tentativa de aproximar a justiça humana da perfeição ideal tem resultado e resultará necessariamente, seja em demolir o sistema de garantias em nome da igualdade abstrata, seja em suprimir as garantias em nome da preservação do sistema, seja numa alternância dessas desses dois males.

          Entre outras conclusões práticas que se pode turar disso está a seguinte: a vida da democracia não depende da realização máxima da justiça em sentido abstrato, mas do equilíbrio dinâmico e tensional entre o ideal de justiça e as exigências concretas do sistema que torna possível buscar a justiça.

Notas

 


[1] Lições Preliminares de Direito.

[2] Que não se entenda isto, por favor, como uma proclamação em prol da exclusiva existência do direito positivo, com exclusão portanto da hipótese do direito natural. A questão direito positivo x direito natural nada tem a ver com o tópico em discussão aqui, e na verdade a idéia de direito natural só é possível caso a natureza mesma seja enfocada como um sistema jurídico – o que basta para mostrar que a prioridade do sistema sobre cada direito isolado vale mesmo na hipótese do direito natural.