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Falsos relativistas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de março de 2013

          

Um dos vícios mentais mais deploráveis, e mais comuns entre conservadores e liberais, é o de reduzir os debates públicos a discussões puramente acadêmicas, em que as “ideias” são enfocadas pelo seu conteúdo teórico tão-somente, fora dos esquemas políticos que as geraram. Homens fiéis a valores e princípios tradicionais – filosóficos ou religiosos – já produziram milhares de refutações cabais do “relativismo”, mas nem por isso puderam deter o avanço das propostas político-sociais que vêm protegidas sob salvaguardas relativistas. Quanto mais vitoriosos no campo acadêmico, mais perdedores se tornam na luta política.
É que acadêmicos e ativistas não falam a mesma linguagem. Os primeiros não compreendem a linguagem dos segundos, mas estes compreendem a daqueles perfeitamente bem e a usam como uma camisa de força para aprisioná-los no campo das ideias puras, para que não percebam que, no quadro de uma estratégia política, uma ideia qualquer pode ter um significado prático inverso ao do seu conteúdo teórico. Este serve apenas  como o pano vermelho com que o toureiro desvia a investida do touro.
 As ideias dos ativistas quase nunca significam o que dizem. Por baixo do seu conteúdo ostensivo escondem um objetivo estratégico que, no plano histórico, virá a constituir seu único conteúdo efetivo quando o jogo dialético das ideias e das ações tiver atingido seu resultado. Assim, por exemplo, durante anos o relativismo serviu de navio quebra-gelo para demolir  resistências a propostas que, por sua vez, nada tinham de relativistas – eram, ao contrário, as mais absolutistas e intransigentes que se pode imaginar.
Note-se que é impossível discutir o relativismo em teoria sem subscrevê-lo ao menos em parte e implicitamente: toda ideia que é aceita como objeto de refutação lógica adquire, ipso facto, o estatuto de doutrina intelectualmente respeitável, digna de atenção acadêmica.
Bombardear o mundo acadêmico com um constante assalto relativista aos princípios e valores pode não persuadir ninguém a endossar o relativismo doutrinal, mas habitua todos a praticar, com relação a ele, a quota de relativismo imprescindível a qualquer discussão.
Com alguns anos desse tratamento, o mais dogmático dos tradicionalistas está amestrado para entrar no debate com menos disposição de vencê-lo que de provar que é  “tolerante” e “aberto” – compromisso do qual o oponente está automaticamente dispensado. Em vez de discutir o relativismo, é preciso exigir do relativista as provas de que adere a essa doutrina com sinceridade, de que concede aos dois lados o atenuante relativista em vez de usá-lo apenas como uma arma provisória para diluir as resistências do adversário e em seguida impor-lhe alguma exigência absolutista a intolerante, imunizada a priori contra qualquer cobrança relativista.
Qualquer um pode perceber que gayzistas, feministas, abortistas e tutti quanti nunca teriam espaço na sociedade se este não tivesse sido aberto antecipadamente pela invasão relativista, mas que, na mesma medida, entram em campo livres de qualquer obrigação relativista e armados do mais rígido absolutismo.
Você conhece algum gayzista, feminista ou abortista disposto a concordar que as exigências do seu grupo têm valor relativo, que as crenças de seus adversários têm uma parcela de razão e devem ser tão respeitadas quanto as dele? Já viu algum reconhecer ao menos em tese o direito de combater suas propostas sem medo de represálias?
No entanto, nenhum deles teria tido sequer a chance de ser ouvido com atenção e respeito se a vanguarda relativista não tivesse antes minado a intransigência dos seus adversários. Servem-se do relativismo como de uma gazua: quando a porta está arrombada, mudam  instantaneamente de conversa e tratam de condenar como crime qualquer tentativa de relativizar a autoridade das suas exigências.
Para dizer a verdade, raramente ou nunca se vê um relativista genuíno, sincero, que continue relativista quando isto já não convém à sua política, ou que conceda ao adversário as mesmas salvaguardas relativistas sob as quais ele se abriga. Praticamente todo relativismo em circulação hoje em dia é falso, é pura armadilha.
É estúpido perder tempo discutindo o conteúdo abstrato de uma teoria na qual seu porta-voz mesmo não acredita, de uma teoria que ele simplesmente emprega como ferramenta provisória para abrir caminho para um projeto político inteiramente diverso e até oposto. Se uma teoria é somente camuflagem, é óbvio que ela não tem nenhum conteúdo em si mesma, que seu único sentido real é a proposta na qual pretende desembocar tão logo o adversário abra a guarda.
Nesses casos, a coisa inteligente a fazer é recusar peremptoriamente o debate nos termos em que o espertalhão o coloca e, em vez disso, desmascarar logo a proposta política subjacente, junto com o ardil que a prepara e camufla.       É claro que a passagem do rodeio relativista à exigência totalitária não é repentina, mas sempre gradual e, idealmente, insensível. Mas, quando o processo se completa, é tarde para denunciar retroativamente a desconversa relativista que o preparou.

Escalada neofascista

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 1o de outubro de 1998

Desde a extinção da URSS, o programa da esquerda mundial resume-se nas reivindicações de homossexuais, abortistas, feministas, pedófilos e racistas do anti-racismo. Tais reivindicações podem parecer modestas em comparação com os objetivos revolucionários francamente prometéicos do velho movimento comunista, mas, quanto mais concessões essa gente obtém de uma sociedade infinitamente complacente, mais irados se tornam os seus gritos, mais vastas as suas ambições, mais profundas e temerárias suas exigências.

Os homossexuais, por exemplo, que começaram choramingando pelo direito de não ser presos pela prática da sodomia entre adultos em recinto privado, agora falam grosso em defesa da pedofilia, exigindo que não apenas seja tolerada pelo Estado, mas ensinada nas escolas. Já existe, nos Estados Unidos, uma “Associação dos Homens que Amam Meninos”, e ninguém ousa acusar os seus membros de apologia do crime, pois todo mundo sabe que, se o fizer, correrá o risco de ser espancado, preso, ou no mínimo esmagado sob as patas do lobby midiático homossexual.

Os ativistas negros, que começaram reivindicando a oportunidade de desfrutar em paridade com os brancos dos direitos e benefícios criados pela civilização ocidental, agora que os obtiveram exigem que, nas escolas, essa civilização seja abertamente condenada, e exaltadas aquelas culturas africanas que desprezavam a vida humana e lutaram de armas em punho para preservar o sistema escravista quando a Inglaterra começou a reprimir o tráfico negreiro.

Os ecologistas, que começaram bradando alertas em favor das espécies animais em vias de extinção, hoje cobram do governo a proibição de matar mesmo espécies em irrefreável crescimento quantitativo, como os coiotes, cuja proliferação apocalíptica ameaça de extinção os rebanhos de ovelhas do Estado norte-americano de Utah. Os filmes de ideologia ecológica, que começaram com idílios arcadianos entre vacas e leões para o deleite de velhinhas e criancinhas, hoje apresentam como supremo ideal moral a destruição sangrenta da humanidade por lobos e leopardos, elevados à condição de anjos vingadores a serviço de não sei qual divindade justiceira das trevas, contrafação technopop do Jeová bíblico.

Quanto às feministas, que começaram reivindicando simplesmente o direito de votar, nada revela melhor o fundo de suas ambições atuais do que esta declaração de uma amiga de Lorena Bobbit: “Cortando o pênis do marido e depois chamando uma ambulância para socorrê-lo, Lorena tornou-se um símbolo da mulher ideal do nosso tempo.” Non raggionam di lor, ma guarda e passa.

Qualquer pessoa adulta que, consciente da absurdidade grotesca desses discursos, se limite a ridicularizá-los como a meras extravagâncias inofensivas, ri apenas da desgraça de seus próprios filhos, condenados a viver num mundo onde tais caprichos delirantes serão lei e terão a maciça força policial do Estado para garanti-los. Uma amostra dos critérios morais que determinarão a vida no Estado futuro já foi dada pelo presidente Clinton, que, concedendo direito de asilo a todos os homossexuais que se sintam incomodados nas suas pátrias de origem, negou idêntico direito às mães chinesas que se neguem a abortar seus filhos, bem como aos médicos ameaçados de fuzilamento por se recusarem a praticar as cirurgias de aborto impostas pelo governo chinês: nossos filhos viverão sob a guarda de um Estado onde as fantasias do erotismo mais frívolo terão proteção oficial e a consciência moral será, no mínimo, reprimida como um desvio de comportamento.

Todo riso, aí, é no fundo apenas o risinho histérico de uma convulsão de pavor. Por toda parte, escorados numa retórica de ódio cada vez mais feroz e insano, no apoio cada vez mais global e avassalador do grande capital e da mídia milionária, bem como na cumplicidade cada vez mais cínica de autoridades oportunistas, esses movimentos espalham uma atmosfera de medo e auto-repressão obsessiva, onde o mero pensamento de desagradá-los infunde na alma do cidadão os mais sinistros presságios.

Essa atmosfera é inconfundivelmente fascista, e sua disseminação se torna tanto mais fácil quanto mais se apóia num discurso fingidamente alarmista voltado contra a ameaça de ressurgimento dos regimes nacionalistas de direita extintos 50 anos atrás – ressurgimento que tanto mais se denuncia como iminente quanto mais se tem a certeza de que as atuais condições de economia globalizada o tornam completamente impossível: açoita-se o cavalo morto para que o coice do cavalo vivo seja aceito como uma carícia.

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