A arte de escrever, Lição 1: Esqueça o Manual de Redação

Olavo de Carvalho

22 de novembro de 1998

Como alguns leitores têm-me pedido conselhos sobre a arte de escrever, decidi tirar da gaveta estas observações que redigi seis anos atrás para um curso que tinha o título, precisamente, de Ler e Escrever, e às quais nada tenho a acrescentar:

I.

A circular da redação de Veja, reproduzida no número de julho de 1992 do Unidade, jornal do Sindicato do jornalistas de São Paulo, constitui uma amostra do estado de inconsciência quase hipnótica em que vão mergulhando a cada dia, impelidos pela mecânica do ofício, os nossos melhores profissionais de imprensa.

O documento, uma lista de 27 regrinhas baixadas pela chefia com o propósito de “combater vícios de linguagem”, é apresentado pelo jornal do Sindicato como um sinal de saúde: uma prova de que Veja, no auge da fama, não perdeu a cabeça e ainda é capaz de autocrítica.

Encarado no seu contexto mais próximo, como sinal de recuo sensato ante a tentação da embriaguez, ele pode ser de fato coisa boa. Mas, no contexto maior da evolução do jornalismo brasileiro ao longo das últimas décadas, as 27 regrinhas mudam de figura: tornam-se o sintoma alarmante da consolidação de um conjunto de cacoetes mentais como Lex maxima do bom jornalismo. Cacoetes, porque não chegam sequer a ser preconceitos. Preconceitos são crenças que, furtando-se ao exame consciente, dirigem a conduta, modelam a prática. Já estas regrinhas não se destinam seriamente a entrar em prática por serem de aplicação impossível, como demostrarei adiante, e sim apenas a ser alardeadas, oralmente e por escrito, como emblemas convencionais de boa conduta jornalística.

Não somente jornalística, na verdade. Consagradas pela repetição, máximas desse tipo acabam servir de critério para o julgamento de qualquer escrito, mesmo fora do jornalismo. Já vi muito guru de redação torcer o nariz ante Eça, Camilo, Euclides ou o Padre Vieira, porque usavam palavras vetadas no Manual interno: é como desprezar a Catedral de Chartres porque não cabe nas especificações do BNH.

Que baixem regras, vá lá. Mas deveriam ter ao menos o bom senso de admitir que especificações ditadas pela mera conveniência tecno-industrial não têm nenhum valor de critério estético, não constituem, em nenhum sentido, as regras de estilo, a não ser que se entenda por estilo a uniformidade coletiva, isto é, a falta de estilo. Servem para medir a adequação de um texto ao perfil mercadológico de um determinado produto editorial, e não para julgar sua qualidade literária, sua expressividade, sua exatidão, sua coerência, elegância e veracidade. Não servem nem mesmo para aquilatar do seu valor jornalístico, se tomado em sentido geral e fora dos cânones daquela publicação em particular. Como julgar por elas, digamos, o jornalismo de um Mauriac, de um Ortega y Gasset, de um Alain, ou, mais próximo de nós, de um Monteiro Lobato? Estilo é a adequação da linguagem de um sujeito às suas próprias necessidades expressivas, ou às exigências do assunto, e não a qualquer molde externo prévio, seja ele folgado ou estreito. É só metaforicamente, e forçando a barra, que a palavra “estilo” pode designar o sistema uniforme de trejeitos verbais imitado por todo um corpo de redatores; mais propriamente, esse sistema seria dito uma padronização da falta de estilo.

A padronização pode ser um mal inevitável. Mas para que exagerar, vendo nela um bem absoluto, o modelo mesmo de boa escrita? Que um chefete, cioso da carreira, chegue a introjetar tão profundamente o perfil do produto que lhe encomendam, ao ponto de mesmo nas horas de folga não ser capaz de formar frases fora das especificações dele sem sentir culpa e remorso, é coisa que compreendo; que ele deseje em seguida moldar a cabeça de seus subordinados segundo essas mesmas especificações, em prol da disciplina e da eficiência, é coisa que não só compreendo como também admito e até louvo. Mas que ele, enfim, num acesso de autoglorificação, se imagine transfigurado num mestre de português, literatura ou “estilo”, é demais. Nenhum tecelão da R. José Paulino, ao ajustar suas máquinas para que as blusas saiam na medida, imagina estar fixando os padrões para o julgamento da elegância mundial.

Executivos de carreira metidos a teóricos de literatura são o flagelo das redações. Em nome de um perfil de produto, contingência comercial elevada a regra áurea do juízo estético, eles impõem padrões de gosto, lascam a caneta à vontade, divertem-se sadicamente brincando de Graciliano Ramos ante uma platéia de foquinhas assustados, os quais, nunca tendo lido o Graciliano de verdade, acreditam mesmo que ele seria capaz de escrever uma coisa mimosa como esta do manual de Veja: “Frase curta é bom e eu gosto. Com uma palavra só. Assim. Tente”. Sim, tente: faça uma frescura diferente. Graciliano tinha o senso da continuidade melódica, jamais confundiria frases curtas com solavanquinhos histéricos. Nem proferiria máximas desta profundidade abissal: “Ninguém escreve direito se não ler”, sentença que seria digna do Conselheiro Acácio, se não fosse, aliás, da autoria dele mesmo. Tomando normas de produção como critérios de gosto literário, essa gente está transformando o jornalismo naquilo que seus detratores desejariam que fosse: a espécie mais típica de subliteratura.

Normas de redação, se estatuídas, devem ser apresentadas, com toda a modéstia, como convenções práticas, neutras, nem melhores nem piores que quaisquer outras, e nunca como padrões de “bom gosto”, “elegância”, etc., que são valores de estética literária muito mais sutis do que aquilo que esse gênero de manuais está em condições de delimitar. Os manuais deveriam ater-se, o quanto possível, a aspectos exteriores e “materiais” da escrita, como ortografia, abreviaturas, padronização de nomes, evitando pontificar sobre estilo ou, pelo menos, opinando nisto com extremo cuidado e tão somente em nome da conveniência utilitária, não da estética. Nos casos em que fosse absolutamente indispensável opinar sobre estilo, o melhor seria permanecer num nível genérico e abstrato, sem descer a particularidades duvidosas, como a de vetar, individualizadamente, tais ou quais palavras ou expressões. Mesmo porque o mais elementar conhecimento da estilística mostra que não há palavras ou expressões que, em si e por si, sejam inelegantes; tudo depende do contexto, do tom, da engenhosidade maior ou menor com que sejam utilizadas. No devido lugar, até o execrando “outrossim” pode cair bem, apesar da famosa tirada de Graciliano Ramos, ao revisar um artigo da revista Cultura Política: “Outrossim é a p. q. p.”.

A amoldagem da cabeça humana a um conjunto de normas práticas, não contrabalançada pela consciência do caráter meramente convencional dessas normas, pode produzir nela uma verdadeira mutilação intelectual, tornando-a, a longo prazo, incapaz de compreender e apreciar o que quer que esteja fora do padrão costumeiro. A quase absoluta incapacidade para a leitura de textos mais abstratos, de filosofia e ciência, por exemplo, que observo em tantos de meus colegas, não resulta de nenhuma deficiência congênita, mas do costume adquirido de lidar com uma só das dimensões da linguagem, deixando atrofiar a sensibilidade para todas as demais: o hábito da escrita plana e rasa produz a leitura plana e rasa.

Um dos sinais mais patentes de uma inteligência alerta é a percepção de contradições. Aristóteles já observava que o senso lógico e o senso do ilógico são uma só e mesma coisa. Quando leio alguma coisa repleta de contradições ostensivas e sei que o autor não é imbecil nem está sofismando de propósito, só posso concluir que ao escrevê-la estava distraído, sonso ou bêbado. O documento de Veja certamente foi produzido num desses estados. Prometi e vou mostrar que é um amontoado de exigências impossíveis, mutuamente contraditórias. Antes, porém, desejo fazer a seguinte constatação psicológica: Como não é plausível que um chefe de redação caia em sono letárgico justamente na hora de emitir ordens importantes, o autor do documento (que aliás ignoro quem seja) mais provavelmente vive nesse estado em caráter permanente. Como, de outro lado, também não é verossímil que Veja tenha escolhido para chefe de redação um sujeito anormalmente mais distraído que os outros, suponho que seus colegas também não repararam nas contradições que vou assinalar (como não atinou nelas o redator de Unidade que transcreveu e elogiou o documento). Se é assim, então a circular de Veja é sinal de algum entorpecimento epidêmico da inteligência, que acomete a nossa categoria profissional.

Os exemplos que dou a seguir mostram o quanto o apego à norma rotineira, sedimentado por uma prática intensa e contínua, pode tornar um bom jornalista insensível às piores contradições e transformá-lo num confiante proclamador de incongruências.

II.

A circular de Veja é um conjunto de regras, mas é também ela mesma um texto. Essas regras, aplicadas à redação do mesmo texto, resultariam em suprimir pelo menos um terço dele. Vejam o primeiro parágrafo (regra 1):

 

Cortar todas as palavras supérfluas. Encher lingüiça é a pior praga de uma revista semanal de notícias.

 

Aplicada a mesma regra à redação da mesma frase, esta ficaria assim:

 

Cortar as palavras supérfluas. Encher lingüiça é a praga de uma revista de notícias.

 

Em obediência à regra, cortei as seguintes palavras supérfluas:

1o “todas”: a expressão “as palavras supérfluas” é genérica; e como um gênero abrange necessariamente a totalidade das suas espécies, o pronome é redundante;

2o “a pior”: porque praga é necessariamente coisa ruim.

3o “semanal”: porque não se entende que a proibição de encher lingüiça deva ser revogada nas revistas mensais ou nos jornais diários.

Três palavras em duas linhas já não são lingüiça que basta? No entanto a frase não está mal escrita. A regra é que é excessiva. Já estava, aliás, infringida antes mesmo de ser escrita; porque na introdução do documento se diz:

 

Por mais que fotógrafos, ilustradores, paginadores e artistas gráficos reclamem…

 

Pois então: ilustrador não é artista gráfico? Corremos o risco de logo ver o nosso adversário de lingüiças distribuindo avisos “a todos os endocrinologistas, pediatras, geriatras e médicos”, “a todos os homens, mulheres e seres humanos”, etc.

Na mesma introdução, o indigitado elemento verbera os vícios de linguagem que

 

…estão conspurcando as nossas páginas com a mesma voracidade das heresias medievais…

 

Ô xente! Já se viu alguém “conspurcar com voracidade”? Com voracidade come-se, devora-se, engole-se, ingere-se, agarra-se. Conspurcar é fazer mancha, é deixar cair sujeira em cima, indica ou subentende um movimento para fora, do sujeito paraum objeto, exatamente o inverso do movimento para dentro designado pela ingestão voraz.

A imagem torna-se ainda mais chocante quando vemos que, na regra 14, seu autor, com ar de primeiro-da-classe, emite (deveria eu dizer “expele vorazmente”?) um preceito para a redação de imagens: “Ao optar por uma linha de imagens, mantenha-se nela”. Sim, por exemplo: comece com uma imagem gastronômica e complete-a com alguma coisa bem proctológica.

O mais extraordinário é que o supradito ainda menciona, como exemplos de imagens bem feitas, aquelas que ele mesmo usa na introdução. Poderia citar-se a si mesmo, aliás, como exemplo de modéstia, caso já não o tivesse feito ao admitir que não é Moisés e que suas regras não são as Tábuas da Lei, advertência que, se não lhe parecesse muito necessária, seria suprimida (de acordo com a regra 1).

Mas a infidelidade do autor a suas próprias regras não as invalida por completo, logicamente falando; só o desmoraliza. Para invalidá-las de vez, seria preciso uma contradição interna: entre regra e regra.

Eis um exemplo. A regra 5 adverte: “Cuidado com os advérbios”, e recomenda suprimi-los, concluindo: “Por si só, o adjetivo qualifica”. Lá adiante, porém, na regra 26, são recomendados como gurus, para o aprendizado da boa escrita, Machado de Assis e… Euclides da Cunha! Será que o chefe nunca leu Euclides? Pois este era pródigo em advérbios; a profusão deles foi um dos defeitos que os críticos de Os Sertõesassinalaram com mais freqüência, obrigando os admiradores do autor a mobilizar-se em sua defesa (cf., por exemplo, Modesto de Abreu, Estilo e Personalidade de Euclides da Cunha, Rio Civilização Brasileira, 1963, esp. Pp. 148-152). Como farão os pobres aprendizes para mirar-se, ao mesmo tempo, no exemplo de Euclides e nas palavras do chefe? E o exemplo fornecido em testemunho da unanimidade dos advérbios é, no mínimo, perjuro:

 

Cuidado com os advérbios. “Fulano é um animal ferrado nas quatro patas”, diz irritadamenteSicrano de Tal. A citação já mostra que Sicrano estava uma arara. Se não mostrasse, não seria um advérbio que melhoraria a situação.

 

Parece que o elemento não enxerga a menor diferença entre dizer uma coisa irritadamente, galhofeiramente, ironicamente, desdenhosamente, etc.

Uma das diferenças principais entre o oral e o escrito é que, neste último, as citações geralmente não dizem por si sós o tom, a ênfase, o gesto, a expressão facial com que as frases foram proferidas; e os advérbios existem justamente para, nesses casos, “melhorar a situação”, evitando descrições fastidiosas (a não ser que Veja tenha se tornado multimídia, cada declaração vindo acompanhada do vídeo respectivo).

Além das contradições, há também informações erradas. A regra 6 estabelece:

 

Salvo engano, o português é uma das poucas línguas que não desdobra o tempo futuro. Aproveitem. “Collor mudará o ministério” é muito mais preciso e elegante do que “Collor vai mudar o ministério”.

 

Aqui o chefe foi salvo pela ressalva. Pois trata-se, precisamente, de um engano. Celso Cunha, à p. 268 da sua Gramática do Português Contemporâneo (Belo Horizonte, Bernardo Álvares Editor, 1970), explica que o verbo auxiliar ir se emprega “com o infinitivo do verbo principal, para exprimir o firme propósito de executar a ação, ou a certeza de que ela será realizada num futuro próximo”; ao passo que o futuro simples admite, numa de suas acepções, a expressão da mera probabilidade. Caso, portanto, a mudança de ministério seja uma certeza firme, “Collor vai mudar o ministério” será muito mais preciso do que “Collor mudará o ministério”. É um matiz lógico e temporal da maior importância. Também em matéria de palavras, a economia pode ser, às vezes, a base da porcaria.

O exemplo dado, aliás, entra também em contradição com a regra 5, que manda não abusar do “muito”. Chamar de “muito mais preciso” algo que não é nem um pouco mais preciso, é ou não é abusar do “muito”? Mas a regra mesma de preferir o futuro simples contradiz a regra 20, que manda preferir, onde possível, a linguagem coloquial. Quem é que, no coloquial, diz “farei” em vez de “vou fazer”?

Quando à expressão “salvo engano”, o autor a emprega ironicamente, pois crê não estar enganado e aliás veta, na regra 7, o uso dessa mesma expressão. Só que, como de fato ele estava enganado, a ironia se voltou contra o ironista. O humor involuntário é o resultado quase inevitável de escrever sem pensar.

Se estas regras tivessem sido calculadas maquiavelicamente com o propósito de desnortear foquinhas, para humilhá-los e torná-los dóceis, nada poderia detê-las. Vejam a regra 13:

 

Quanto mais concreta a imagem, melhor. Não misture coisas reais com abstrações. “Os tucanos alçaram vôo rumo à modernidade” mistura uma ave com um conceito.

 

A regra é clara. Mas como aplicá-la? Escrevendo, por exemplo, como o chefe em sua introdução, que “algumas fogueiras se fazem necessárias para manter a pureza estilística da revista”? Pureza estilística não é conceito abstrato? Fogo não arde materialmente? Se tucanos não podem alçar vôo senão rumo a concretíssimos poleiros, as chamas também não podem consumir solecismos, apenas o papel que os exibe. Se, queimando esta malfadada circular de Veja, eu pudesse suprimir o ilogismo de seu conteúdo, sem dúvida teria feito isso; mas, cioso de não misturar o abstrato e o concreto, abstive-me de recorrer ao ígneo expediente, e pus-me a redigir estas longas e tediosas observações.

Se elas parecem hostis, insolentes ou malévolas, digo que desconheço quem seja o redator-chefe de Veja e que nothing personal, just business. Que a bordoada atinja o erro, não a pessoa de seu autor. Este deve ser um profissional excelente, pelo menos tão bom quanto seus colegas, e por isto mesmo o erro é significativo e merecedor de correção pública, o que não se daria no caso de mera inépcia pessoal.

Também me ocorre um episódio. Ciro Franklin de Andrade, que foi um dos meus primeiros mestres no jornalismo, tinha um hábito exemplar. Quando um foquinha escrevia despropósitos, ele o chamava a um canto e lhe dava, discretamente, paternais explicações. Mas, se a coisa era obra de um chefe, de um profissional experiente, de um figurão do jornalismo, ele simplesmente recortava o trecho e o grudava no mural, para ensinança de aprendizes e castigo de instrutores. Cruel? Inesquecível.

Diana Nedelcu entrevista Olavo de Carvalho

Rádio Nacional, Bucareste, 12 de novembro de 1998

1. Quem é você, que teve a coragem de ter um pensamento tão livre neste fim de século?

Quando era jovem eu queria me tornar escritor, já possuía um domínio sólido de minha língua natal e todos me diziam que eu escrevia muito bem, mas eu me dei conta de que não tinha absolutamente nada a escrever, de que eu estava vazio de todo conteúdo que valesse a pena escrever. Assim, deixei de lado meu plano de me tornar escritor e concebi um novo plano de vida, que era o de me tornar um homem que soubesse verdadeiramente alguma coisa, mesmo não escrevendo nada. Desde então, tenho feito grandes esforços de atenção para extrair conclusões válidas daquilo que a vida me trazia e também daquilo que eu lia. Pus-me a distinguir minuciosamente, na massa de meus pensamentos e conhecimentos adquiridos, entre aqueles que eram certos e verdadeiros, aqueles que eram ao menos razoáveis e prováveis, aqueles que não eram mais que opiniões verossímeis e aqueles que eram puras fantasias da minha imaginação. Abdiquei de toda pretensão de ter uma carreira de homem de letras, para me devotar somente àquilo que se pode chamar a pesquisa da verdade para meu uso pessoal. Foi assim que me tornei filósofo. E foi assim que o mundo foi poupado de ler os execráveis livros de juventude que eu jamais escrevi.

Até os 35 anos, eu não falava de assuntos filosóficos com ninguém a não ser comigo mesmo; vivia numa solidão intelectual quase completa. Então, comecei a dar conferências para um pequeno grupo de estudantes. Eu também escrevia, mas apenas resumos para os meus alunos, e teria continuado de bom grado a fazer o mesmo a vida inteira se as circunstâncias não me tivessem tirado de minha solidão para fazer de mim uma espécie de inspetor da saúde mental dos intelectuais brasileiros. Estou feliz por ter abandonado a modéstia da vida solitária unicamente para fazer algo de útil e objetivo, sem concessões às minhas vaidades de juventude, as quais já estavam mortas.

Publiquei o meu primeiro livro apenas aos 47 anos, a pedido de meu amigo, o poeta Bruno Tolentino, e desde então não parei de publicar livros e artigos, mas tenho ainda mais de dez mil páginas de notas de aula, que talvez venham algum dia a se transformar em livros.

Eu não diria que a liberdade de pensamento é uma questão de coragem. Trata-se unicamente de ver as coisas como elas são, e para tal é preciso tempo, paciência e modéstia. Creio que uma carreira profissional de escritor ou professor universitário pode muito bem desviar um homem da pesquisa da verdade e, como eu sempre soube que era fraco como todos os outros homens, tratei de me colocar fora do alcance dessas tentações.

Se posso dizer as coisas tais como eu as vejo, sem fazer concessões à moda ou à pressão de grupos de opinião, é precisamente porque socialmente e profissionalmente não sou absolutamente nada. Sou apenas um homenzinho que não exige de forma alguma ser levado a sério pelas pessoas que se imaginam sérias.

2. Por que você escolheu o caminho do comunismo, quando era jovem?

Eu não escolhi nada. O comunismo tinha na ocasião o prestígio de uma verdade estabelecida; bastava ser comunista para ter o prestígio de um homem de idéias. Mas eu me dei conta de que o comunismo não era para mim, como para todos os outros, nada mais que o disfarce da minha ignorância, da minha mediocridade, da minha assustadora preguiça intelectual. Foi por causa disso que eu renunciei a fazer-me um jovem escritor: eu não tinha nada a dizer além do que já havia sido escrito mil vezes por outros escritores comunistas, jovens e velhos. O que é uma pena é que muitos de meus companheiros de geração tenham continuado a escrever as mesmas coisas durante três décadas e hoje eles não possam admitir que alguém tenha abandonado as suas mesmices para se lançar à pesquisa de algo mais interessante. Eles tomam isso como um insulto à dignidade da sua filiação ideológica.

Ademais, é falso pensar que as pessoas se tornam comunistas porque têm sede de justiça. Aquele que tem sede de justiça procura, em primeiro lugar, se abster de cometer injustiças ele mesmo e nunca se toma por um justiceiro supremo que vai punir todos os maus, porque isso não é senão uma vaidade pomposa e, em suma, a pior das injustiças. Os jovens somente se tornam comunistas por vaidade e por preguiça. A diferença entre mim e meus companheiros de geração é que eles tiveram mais sucesso do que eu em enganar-se quanto aos motivos íntimos de sua conduta. Eu não pude me impedir de ver a mim mesmo tal qual eu era: nada mais que um pequeno farsante comunista, que queria se descarregar de sua responsabilidade pessoal sobre as costas de bodes expiatórios abstratos — o capitalismo, os burgueses, etc. Quando eu me dei conta disso, compreendi o que Nietzsche queria dizer quando afirmava que “a vergonha é a mãe do aprendizado”. Os jovens esquerdistas de outrora que se tornaram apenas os velhos esquerdistas de hoje nunca tiveram consciência da miséria moral de suas motivações, auto-proclamadas idealistas e humanitárias.

3. Os brasileiros são tão superficiais quanto aparenta ser a sua imagem estereotipada?

Sim, a superficialidade, a leviandade são os pecados capitais dos brasileiros. Mas eu acho que isso só é verdadeiramente grave nos círculos intelectuais, porque entre o povo uma certa falta de seriedade foi o preço a pagar para construir uma sociedade como a nossa, onde as pessoas de todas as raças e de todas as culturas podem se entender e se amar umas às outras. Veja: os Estados Unidos são também uma sociedade multicultural, mas lá os grupos diversos trilham caminhos separados, cada qual no seu gueto, e dialogam somente ao nível político, por intermédio de seus representantes e sob a proteção da polícia. Enquanto que no Brasil, os negros, os árabes, os portugueses, os italianos, os alemães, os judeus sempre viveram juntos dentro dos mesmos bairros e são todos misturados ao nível da vida social, da amizade, do casamento, etc., sem que o Estado tenha jamais feito o menor esforço para ensinar-lhes essas coisas. No Brasil nunca houve combates de rua entre grupos raciais diferentes (exceto alguns conflitos menores durante a guerra, quando as pessoas de ascendência italiana e alemã eram um pouco perseguidas, mas mesmo isso terminou por completo da noite para o dia assim que a paz foi assinada). Para um homem viver em paz com pessoas muito diferentes é preciso que ele não se leve muito a sério, e os brasileiros se habituaram a pensar que as crenças políticas ou mesmo religiosas têm menos importância, na prática, do que a paz e o amor. Os brasileiros também são cristãos pragmáticos: eles acreditam que ter razão vale menos do que fazer um amigo.

É por isso que os brasileiros são o que são: um povo maravilhoso, fraternal, generoso, mas estranhamente desprovido de convicções sólidas e profundas. Mas se naquilo que diz respeito às pessoas do povo isso não é grave, nos intelectuais a falta de solidez se torna um perigo e uma doença assustadora, porque os intelectuais têm responsabilidades incomparavelmente mais pesadas. É por isso que eu vejo os brasileiros como um povo maravilhoso que produz os intelectuais mais abomináveis do universo.

4. Qual é o seu ponto de vista sobre a cultura norte-americana e européia de hoje?

Aquele que perde o senso do absoluto perde da mesma forma o senso das relatividades. Uma cultura que rompeu seus laços com o senso de infinitude metafísica está condenada a dar uma importância absoluta a imbecilidades que não têm nem mesmo importância relativa. A cultura européia e norte-americana de hoje me parece totalmente obcecada por questões menores da atualidade política e social. Veja: são sempre essas recriminações mútuas de grupos raciais, essas briguinhas de família, essas frustrações sexuais que exigem ser tratadas pela lei e pelo Estado — tudo isso é para mim o cúmulo da mesquinharia. O pior é que recursos extraordinários são postos a serviço de debates totalmente desprovidos de importância e dos quais ninguém vai se lembrar dentro de três ou quatro décadas. Em tais circunstâncias, o automatismo e o verbalismo tendem a se substituir à consciência.

Tudo sob controle

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 12 de novembro de 1998

O ringue político brasileiro está dividido entre duas e não mais de duas forças: comunistas e social-democratas. Esquerda e esquerda.

A margem de existência de qualquer política francamente anticomunista é cada vez mais restrita. Direita e conservadorismo foram criminalizados, e as palavras mesmas que os designam adquiriram nova significação: consagraram-se como sinônimos de neonazismo e neofascismo. Usadas mil vezes nesse sentido, adquirem poder letal quando ocasionalmente referidas a algum liberal incômodo.

Conservadores simplesmente já não existem, e liberais mal são tolerados: os poucos que restam se atacam uns aos outros como cachorros loucos, cada qual procurando caprichar mais na demonstração de ferocidade para agradar à platéia esquerdista, ansiando pela chance de mostrar lealdade a alguma “união nacional” improvisada para fazer a caveira de algum desastrado remanescente direitista.

Tal como acontece invariavelmente nas situações em que a esquerda domina hegemonicamente, sua ala mais moderada é incumbida de posar no papel de “direita”, ocupando o espaço de modo que conservadores e liberais não possam entrar e, desaparecidos do horizonte, acabem por desaparecer do mundo.

Dentre os social-democratas incumbidos de posar de direita ad hoc , o principal é, evidentemente, o presidente Fernando Henrique Cardoso.

Nada mais elucidativo, para ilustrar a dubiedade desse misterioso governante, do que comparar a orientação de sua política econômica com a de sua política educacional. Um governo que faz todo o possível para ser tomado como representante fiel do capitalismo globalista ao mesmo tempo que promove a doutrinação em massa de nossas crianças dentro do mais puro cânone da luta de classes é, afinal, direitista ou esquerdista?

FHC é um tucano, dirão, aninhado, como é costume das aves da sua espécie, em cima do muro. Mas há muros e muros: há o muro retórico que separa as facções ideológicas e há o muro dos tempos que separa o hoje e amanhã, o espetáculo midiático superficial e a engenhosa gestação do futuro no ventre discreto das sombras.

FHC já se declarou um gramsciano. Como tal, ele não crê na pressa leninista que, na ânsia de “tomar o poder”, se desdobra entre a concorrência eleitoral nas cidades e a luta armada nos campos. Ele despreza a superficialidade apressada de petistas e sem-terra. Ele aposta no tempo, na lenta transfiguração das consciências, na revolução cultural gramsciana enfim, que avança a passos silenciosos, gradual e segura, sob a crosta opaca do dia. Por isso ele permanece indiferente às críticas esquerdistas e não tem medo de se comprometer, se necessário, com “alianças espúrias” destinadas a ser, no devido tempo, atiradas à lata de lixo da História: lugar apropriado, de fato, a todos aqueles que, por medo de ficar com medo, buscam acreditar na lenda de que FHC mudou. Ele mudou, sim, mas de estratégia.

Em compensação – uma compensação que na verdade não compensa nada, apenas piora tudo formidavelmente –, iludem-se também todos aqueles que, na esquerda, acreditam que a virada do Brasil rumo ao socialismo nos libertará do poder globalitário. O mundo unificado está perfeitamente apto a integrar nos seus esquemas um socialismozinho aqui, outro acolá, resguardada uma certa margem de liberdade econômica para os grandões, coisa a que aliás a esquerda mundial já deu gentilmente seu aval sob a elegante denominação de “terceira via”. E, finalmente, os mais iludidos de todos são os empresários nacionais que proclamam, com ar de tranqüilidade sapientíssima, que o novo mundo de globalismo tecnocrático está definitivamente imunizado contra o socialismo. Sim, imunizado ele está: por isto mesmo um socialismo brasileiro não lhe fará mal nenhum e, aliás, não fará diferença nenhuma.

A política nacional transformou-se num fantástico intercâmbio de ilusões, cuja única verdade só é visível a léguas de distância e se chama, em Nova York e Genebra, “gerenciamento de conflitos”. Está tudo, enfim, sob controle, e ninguém tem nada a perder, exceto os brasileiros.