Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 12 de novembro de 1998

O ringue político brasileiro está dividido entre duas e não mais de duas forças: comunistas e social-democratas. Esquerda e esquerda.

A margem de existência de qualquer política francamente anticomunista é cada vez mais restrita. Direita e conservadorismo foram criminalizados, e as palavras mesmas que os designam adquiriram nova significação: consagraram-se como sinônimos de neonazismo e neofascismo. Usadas mil vezes nesse sentido, adquirem poder letal quando ocasionalmente referidas a algum liberal incômodo.

Conservadores simplesmente já não existem, e liberais mal são tolerados: os poucos que restam se atacam uns aos outros como cachorros loucos, cada qual procurando caprichar mais na demonstração de ferocidade para agradar à platéia esquerdista, ansiando pela chance de mostrar lealdade a alguma “união nacional” improvisada para fazer a caveira de algum desastrado remanescente direitista.

Tal como acontece invariavelmente nas situações em que a esquerda domina hegemonicamente, sua ala mais moderada é incumbida de posar no papel de “direita”, ocupando o espaço de modo que conservadores e liberais não possam entrar e, desaparecidos do horizonte, acabem por desaparecer do mundo.

Dentre os social-democratas incumbidos de posar de direita ad hoc , o principal é, evidentemente, o presidente Fernando Henrique Cardoso.

Nada mais elucidativo, para ilustrar a dubiedade desse misterioso governante, do que comparar a orientação de sua política econômica com a de sua política educacional. Um governo que faz todo o possível para ser tomado como representante fiel do capitalismo globalista ao mesmo tempo que promove a doutrinação em massa de nossas crianças dentro do mais puro cânone da luta de classes é, afinal, direitista ou esquerdista?

FHC é um tucano, dirão, aninhado, como é costume das aves da sua espécie, em cima do muro. Mas há muros e muros: há o muro retórico que separa as facções ideológicas e há o muro dos tempos que separa o hoje e amanhã, o espetáculo midiático superficial e a engenhosa gestação do futuro no ventre discreto das sombras.

FHC já se declarou um gramsciano. Como tal, ele não crê na pressa leninista que, na ânsia de “tomar o poder”, se desdobra entre a concorrência eleitoral nas cidades e a luta armada nos campos. Ele despreza a superficialidade apressada de petistas e sem-terra. Ele aposta no tempo, na lenta transfiguração das consciências, na revolução cultural gramsciana enfim, que avança a passos silenciosos, gradual e segura, sob a crosta opaca do dia. Por isso ele permanece indiferente às críticas esquerdistas e não tem medo de se comprometer, se necessário, com “alianças espúrias” destinadas a ser, no devido tempo, atiradas à lata de lixo da História: lugar apropriado, de fato, a todos aqueles que, por medo de ficar com medo, buscam acreditar na lenda de que FHC mudou. Ele mudou, sim, mas de estratégia.

Em compensação – uma compensação que na verdade não compensa nada, apenas piora tudo formidavelmente –, iludem-se também todos aqueles que, na esquerda, acreditam que a virada do Brasil rumo ao socialismo nos libertará do poder globalitário. O mundo unificado está perfeitamente apto a integrar nos seus esquemas um socialismozinho aqui, outro acolá, resguardada uma certa margem de liberdade econômica para os grandões, coisa a que aliás a esquerda mundial já deu gentilmente seu aval sob a elegante denominação de “terceira via”. E, finalmente, os mais iludidos de todos são os empresários nacionais que proclamam, com ar de tranqüilidade sapientíssima, que o novo mundo de globalismo tecnocrático está definitivamente imunizado contra o socialismo. Sim, imunizado ele está: por isto mesmo um socialismo brasileiro não lhe fará mal nenhum e, aliás, não fará diferença nenhuma.

A política nacional transformou-se num fantástico intercâmbio de ilusões, cuja única verdade só é visível a léguas de distância e se chama, em Nova York e Genebra, “gerenciamento de conflitos”. Está tudo, enfim, sob controle, e ninguém tem nada a perder, exceto os brasileiros.

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